Para quase toda a mídia internacional e para grande parte dos governos pelo mundo, é inquestionável: a derrubada de Mohamed Morsi da presidência do Egito, no início deste mês de julho, foi um golpe militar. Afinal, tratava-se de um governo eleito democraticamente – o primeiro após a derrubada do ditador Hosni Mubarak, em 2011.
Segundo o professor titular da Unicamp Mohamed Habib, no entanto, a situação não é tão simples, e ainda é cedo para definir os acontecimentos recentes. Em entrevista esclarecedora à Brasileiros, o pesquisador – nascido no Egito e hoje membro do Instituto de Cultura Árabe no Brasil – analisa a situação do país, fala sobre a Constituição que começa a ser alterada e explica porque o que é chamado de “golpe” pode ser, na verdade, uma correção no caminho da revolução que começou em 2011. Leia abaixo:
Brasileiros – O senhor considera que exista alguma legitimidade no golpe que derrubou o presidente Mohamed Morsi?
Mohamed Habib – Primeiro, é muito cedo para tentar dar a este acontecimento um título preciso: se é um golpe ou uma correção de uma revolução que se desviou de seu objetivo principal. Nós precisamos aguardar alguns meses para ver indicadores reais.
Brasileiros – Mas quando um governo democraticamente eleito é derrubado pelo Exército, isso não configura um golpe?
M.B. – Não necessariamente. Senão você chamaria também o que aconteceu com Collor, no Brasil, de golpe. E não foi, foi uma manifestação da sociedade civil que levou o Congresso a destituir o presidente. Então temos que olhar para a questão do Egito com um pouco mais de detalhes. Não se trata aqui de defender uma posição ou outra, mas de analisar academicamente esse acontecimento, em um país que durante 61 anos viveu sem democracia.
Em 2011, um movimento espontâneo da sociedade civil, liderado pelos jovens, acabou destituindo o ditador Mubarak. E o que os jovens estavam reivindicando ali? Eles estavam reclamando de uma situação dramática no campo socioeconômico, em termos de possibilidade de empregos, de salários, de combate à miséria etc.
Brasileiros – A exigência por democracia não era o principal motivo da mobilização?
M.B. – A democracia estaria em um segundo nível de prioridade, depois das necessidades básicas. E constatar isso é fundamental para entender os acontecimentos atuais.
Brasileiros – Quer dizer que o fato de os jovens que lutaram para derrubar a ditadura Mubarak anteriormente serem os mesmos que apoiam agora a derrubada do primeiro governo eleito democraticamente não é contraditório?
M.B. – Exatamente. Temos que entender como pensa a sociedade civil egípcia. Quando eles perceberam que Morsi não realizou nada daquilo que se esperava dele, eles se levantaram. Quando perceberam que o grupo ao redor de Morsi tinha uma ideologia de política religiosa, viram que isso entra em choque com a cultura de um país milenar que sempre foi um Estado laico.
Brasileiros – Mas a Irmandade Muçulmana, que dava suporte a Morsi e pede a sua volta, parece ser muito forte. Qualquer novo governo precisa negociar com ela…
M.B. – A Irmandade foi praticamente a única instituição organizada existente no Egito durante todas essas últimas décadas. Ela tinha um papel importante até mesmo para as ditaduras, já que fazia ações humanitárias, ajudava em campanhas sociais etc. Mas em termos de política e administração eles não tinham experiência, e também por isso não tiveram êxito agora no governo.
Brasileiros – A Constituição aprovada pelo governo Morsi no ano passado sofreu diversas críticas, e o plebiscito que a aprovou foi boicotado pela oposição. No fim, ela não parecia representar exatamente a vontade da população, ao mesmo que foi feita dentro das regras democráticas. Agora, uma comissão de juristas e magistrados nomeada pelo presidente interino começa a modificar a Constituição. Isso é legítimo, estando o país fora de um governo democrático?
M.B. – A Constituição da época do Morsi foi aprovada em um plebiscito com pouquíssima participação da população, e com uma votação frágil. Então voltamos ao princípio: nós só vamos poder compreender se isso que aconteceu agora foi um golpe ou uma correção de um levante popular quando algumas coisas ocorrerem. A reivindicação da sociedade civil egípcia é de que esse governo cumpra, nos próximos seis, oito meses, as seguintes missões: Primeiro, vem a elaboração da nova Constituição, que está começando a ser feita, e que deve passar por um plebiscito; depois vem as eleições para o Legislativo; e em terceiro lugar vem a eleição para presidente.
Brasileiros – Mas o senhor considera que a nova constituição tem chances de ser aprovada, mesmo com a oposição da Irmandade Muçulmana?
M.B. – Aí voltamos à questão da força que eles têm. Na verdade, estima-se que a Irmandade teria uma força política de 10% ou 12% da população, se a eleição fosse hoje. Dependendo dos acontecimentos, se as manifestações [capitaneadas pela organização] ficarem mais radicais e violentas, essa porcentagem pode diminuir.
Brasileiros – Existe uma situação próxima a uma guerra civil?
M.B. – Não. Está longe disso. Na verdade, a situação no Egito é bastante diferente da que se em alguns de seus vizinhos, como Líbia, Síria e Iêmen. É uma sociedade mais estável politicamente. Não há, por exemplo, uma constituição étnica que propicie o conflito. Se você olhar o que aconteceu no Egito em 2011 [derrubada de Mubarak], foi algo muito mais pacífico do que o que ocorreu em situações semelhantes nos países vizinhos.
Brasileiros – Mas houve muitas mortes…
M.B. – Não é um número tão significativo assim, pensando em um levante popular que tenta mudar 180º o sistema de governo em um país que viveu 61 anos em uma ditadura. Quer dizer, não podemos pegar “noticiários de suspense” para usar como dados estatísticos…
Brasileiros – A cobertura da mídia tem sido muito “dramática”, nesse sentido?
M.B. – Claro. Porque o sabor político e ideológico acaba se manifestando para dramatizar situações. Eu converso todos os dias com a minha família, que mora em algumas grandes cidades do Egito, e a situação é tranquila.
Houve, de fato, nessas últimas semanas, uma união de forças entre as Forças Armadas e os grupos políticos organizados, para tirar a Irmandade Muçulmana do poder. Essa união não é um casamento – tanto que a luta, pouco tempo atrás, era contra os militares. É como um pacto para salvar o país, e por isso mesmo é cedo para caracterizar como golpe.
Brasileiros – E as promessas das Forças Armadas parecem confiáveis?
M.B. – A sociedade civil está confiando… Se a Constituição sair; se for elaborada sem manipulação; se ela expressar claramente que está se construindo um Estado democrático de Direito, aí sim vamos ver que foi um acordo, não um golpe. Agora, se aparecer uma Constituição colocando a Junta Militar com poder máximo, aí vamos ver que, de fato, foi um golpe militar.
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