Para professor da Unicamp, Exército do Egito é antidemocrático e possibilidade de guerra civil não pode ser descartada

Fotos reprodução

Manifestantes vão às ruas para pedir a volta de Morsi

Após grande mobilização popular, o primeiro presidente eleito democraticamente no Egito, Mohamed Morsi, foi destituído do poder por uma Junta Militar, há quase dois meses. Morsi, apoiado pela Irmandade Muçulmana, era acusado de tentar islamizar o Estado egípcio (laico) e de não dar conta de resolver questões políticas, econômicas e sociais urgentes. A ação militar que derrubou Morsi, com grande apoio da sociedade, foi logo taxada por toda a mídia internacional como um golpe, apesar de que o Exército prometeu mudar a Constituição e realizar novas eleições em poucos meses. A Irmandade Muçulmana, tirada do poder, saiu as ruas para pedir a volta do presidente, e mobilizou milhares de seus seguidores islâmicos em protestos e acampamentos.

Na época, há um mês, a Brasileiros entrevistou o professor titular da Unicamp, Mohamed Habib (nascido no Egito e hoje membro do Instituto de Cultura Árabe no Brasil), que afirmava que a derrubada de Morsi ainda não podia ser considerada um golpe (leia aqui a entrevista). Para ele, se o governo militar seguisse os três passos que prometia (elaboração da nova Constituição; eleições para o Legislativo; eleições para Presidente) estaria seguindo uma reivindicação popular e dando sequência à revolução iniciada com a derrubada do ditador Hosni Mubarak em 2011. Na última semana, no entanto, a repressão aos manifestantes da Irmandade Muçulmana deixou cerca de mil mortos no Egito, e as atitudes violentas e antidemocráticas dos militares colocam em questão a verdadeira intenção do atual governo. O futuro do Egito é incerto.

Para entender melhor o quadro e os mais recentes acontecimentos, a Brasileiros conversou novamente com o professor Mohamed Habib, que afirma a possibilidade de ocorrer uma guerra civil não pode ser descartada. Leia abaixo

Brasileiros – Há um mês o senhor afirmou que ainda era cedo para definir a derrubada de Mursi como um golpe. Podia ser a correção de uma revolução que desviou de seu objetivo, ou algo assim, e havia de fato uma demanda da sociedade. Após os recentes acontecimentos, o senhor mantém essa avaliação?

Mohamed Habib – Houve uma evolução, de fato. A ação militar para desfazer as concentrações da Irmandade Muçulmana, com medidas bastante agressivas e sangrentas, matando centenas e ferindo milhares, já revela indícios de uma atitude totalmente antagônica à cultura do povo egípcio. Porque nunca houve na história do Egito um momento em que o Exército atacasse a própria população. E a desigualdade de forças é gigantesca. É como alguém que foi caçar um passarinho usando um caminhão. Então isso me dá uma sensação de que por trás de tudo há algum plano estratégico onde as Forças Armadas estariam aproveitando a simpatia da sociedade de um jeito estratégico. E estaria agradando aqueles que apoiam os militares, e amedrontando os que resistem a essa parceria com os militares. Então é uma postura que pode ser interpretada com preparação para o próximo passo, que seria lançar um candidato das próprias forças armadas.

Brasileiros – Para ter candidato, o exército então seguiria antes aqueles três passos (elaboração da Constituição, eleição para o Legislativo e para Presidente). Então o senhor ainda acredita que aqueles passos devem ser dados em breve?

M.B – Se a elaboração da Constituição for correta, e sair uma constituição democrática, afasta a ideia de um golpe. Se a Constituição sair mantendo a junta militar acima do próprio Congresso, aí sim se confirmaria o golpe.

Brasileiros – Mas a disposição do Exército – com a repressão, a prisão de opositores etc – não parece ser exatamente muito democrática…

M.B – Exato. Os militares estão tentando vender a imagem dos correligionários e militantes da Irmandade Muçulmana não como oposicionistas, mas como terroristas. E tentam aí ganhar a simpatia da sociedade…

Brasileiros – Mas pelas notícias que chegam, a Irmandade Muçulmana não parece ser um grupo exatamente violento. Ainda assim, o seu líder Mohammed Badie foi preso e será julgado por incitar a violência e fornecer armas aos manifestantes. As acusações não são exageradas?

M.B – Claro. Primeiro, o Exército não é uma instituição democrática. Depois, o país ainda não tem uma cultura da democracia. Então é fácil para o Exército falar para o povo todas essas acusações. Agora, acredito que a própria sociedade está aguardando novos indicadores. Por exemplo, a flexibilização da prisão do Mubarak (antigo ditador) ou a fabricação de processos jurídicos para rever condenações… essas coisas são mais pistas para nos convencer que de fato os militares querem retornar ao poder. Mas como o espírito da democratização ainda está forte no país, eles devem tentar reconquistar o poder através de processo de eleições. Ou seja, acho que se o Exército percebesse que dá para aplicar um golpe sem passar pelos três passos de que falamos, eles fariam. Mas acho que o mais provável é que sigam os passos. Agora, esses passos podem ser bem feitos ou mal feitos…

Brasileiros – Até mesmo o Tamarod (grupo que foi às ruas para derrubar Morsi e de tendência mais democrática) ainda está apoiando o Exército…

M.B – Sim. E o Tamarod não é politicamente de grande expressão, mas representa o espírito dos jovens…  

Brasileiros – Há um mês, o senhor considerou que o Egito estava longe de uma guerra civil. Agora, até parte da sociedade (como membros do Tamarod) dizem que as mortes são o preço a ser pago; o exército disse que vai endurecer; e a Irmandade Muçulmana diz que não vai deixar de se manifestar. Ou seja, a disposição de todos os lados parece ser mais para o conflito do que para o diálogo. Isso pode levar o país a uma guerra civil?

M.B – Se a polarização deixar de um lado apenas a Irmandade Muçulmana e do outro todas as outras forças políticas, aí não teremos guerra civil. A Irmandade não tem essa força. Agora, se a postura dos militares revelar que há tentativa de golpe e a desconfiança da sociedade com eles aumentar, aí essa frente vai se dividir. Um rompimento pode levar a guerra civil, e não apenas entre dois lados, entre mais grupos.

Brasileiros – E a comunidade internacional começa a se manifestar, a pressionar o país. Ainda assim, o governo militar não demonstra muita disposição para o diálogo?

M.B – O governo está seguro de que tem aliados dentro e fora do país. Porque mesmo se for um golpe, estamos falando do retorno ao poder de militares que desde 1952 foram aliados do Ocidente dominante. E voltariam a ser. A ajuda militar dos EUA, por exemplo, continua.

Brasileiros – Uma questão para entender melhor o contexto. Quando a gente fala que são os islamitas que pedem a volta do Mursi, temos que lembrar que é uma pequena parcela dos islamitas do país. A maior parte da população, que também é islamita, é a favor de um Estado laico. É isso?

M.B – Sim, 90% dos egípcios são muçulmanos. Mas a grande maioria defende o Estado laico, onde todo mundo é livre para ter sua espiritualidade. Agora, a Irmandade Muçulmana (que é apenas uns 10% desses 90%) acredita no Estado religioso. Mas é uma minoria. De qualquer modo, mesmo que a maioria da população se oponha a eles, isso não significa que tolerem a violência do Exército contra a Irmandade. Afinal, é uma violência contra seres humanos, contra os próprios egípcios.

Brasileiros – Em uma análise publicada no New York Times, um jornalista avalia que as convulsões no mundo árabe são dolorosas, mas inevitáveis. O senhor concorda com essa visão? Não é possível haver mudanças pacíficas?

M.B – Isso está diretamente relacionado ao papel do Ocidente na região. Vamos pensar assim: o ocidente dominante, por causa do petróleo e do gás natural no Oriente Médio, interfere em tudo que acontece no cotidiano da região, desde a Primeira Guerra. Se não tivesse colocado as mãos lá, não haveria acontecido tanta tragédia. Os povos do Oriente Médio são milenares, vivem juntos há 1400 anos. Será que de repente ficaram malucos? Pois diferenças religiosas e políticas entre grupos sempre existiram, mas só começam a se manifestar em termos de conflitos a partir da interferência do Ocidente. Tem a frase do Winston Churchil: “Se nós queremos dominar o inimigo, nos temos que rachá-lo e dividi-lo”. E é o que eles fazem.

O presidente deposto Mohamed Morsi


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