O domingo amanheceu gelado em Paris, o Sol brilhava forte, mas não esquentava, e o vento cortante não parava de soprar nem por um segundo. Mesmo assim, parecia que ninguém estava dentro de casa. Parisienses andavam pela cidade determinados a fazer daquele dia o melhor da semana, durante a manhã as feiras livres e cafés ficaram cheios. As tradicionais missas das dez nas igrejas centenárias do Quartier Latin abrigavam fiéis de todas as idades. No mesmo bairro, os carros da famosa Boulevard Saint Germain davam lugar a tratores de camponeses vindos de todas as partes da França, como um interminável desfile que tinha como tema os velhos costumes franceses passados de geração em geração.
Naquele dia, os turistas não foram visitar a Torre Eiffel, o Louvre ou a Champs Elisée. Jornalistas internacionais de todas as partes do mundo trabalhavam incessantemente, espalhados pela cidade conversavam com especialistas sobre terrorismo, jovens apaixonados pela oportunidade de fazer a diferença, chefes de Estado e vítimas. Até os policiais franceses perderam o tom de deboche que lhes parece tão essencial: desceram do pedestal para acolher e, mais do que isso, serem acolhidos pela população.
Por volta do meio dia todos caminhavam em direção à Place de la Republique, um lugar afastado do centro, na região nordeste da cidade. Era como uma marcha antes da marcha. Era possível sentir no ar o entusiasmo de cada um. Apesar da Marche Républicaine ter sido convocada para rechaçar os atentados da semana anterior ao jornal satírico Charlie Hebdo e ao supermercado kosher que haviam deixado 17 vítimas ao todo, não havia espaço algum para luto ou medo naquela caminhada.
A concentração do ato estava marcada para as três da tarde, mas duas horas antes já era impossível chegar a dois quilômetros da praça. As ruas estavam completamente tomadas e a passeata – que mal havia começado – já alcançava a Place de la Nation, quatro quilômetros distante, e passava pela Place de la Bastille (a mesma que há mais de 200 anos marcou o início da Revolução Francesa). Ao caminhar no contra-fluxo da marcha por um dos grandes bulevares que dão acesso a essa última praça, a impressão era de que a marcha finalmente estava andando e de que logo menos, as ruas estariam vazias. Grande engano: a marcha resistiria até a madrugada.
A caminhada era silenciosa e o ambiente familiar. Muitas crianças caminhavam ao lado dos pais empunhando lápis e declarando que sonham ser jornalistas ou desenhistas. Do outro lado, a passeata abria caminho para os idosos de Paris que já presenciaram tantas agitações e estavam lá para dizer que liberdade de imprensa era a fundamental para o país. A grande Marche Républicaine para marcar o fim das diferenças no início de 2015 foi como uma majestosa tarde de domingo onde crianças, grupos de amigos, idosos, policiais e até cachorros se uniram para dizer que são Charlie. A cada metro, alguns sorrisos amontoados de costas para a manifestação para registrar o momento em uma selfie. Nenhuma palavra de ordem, nenhum grito de guerra e poucos cartazes.
A concentração de bandeiras tricolores e cartazes declarando “Je suis Charlie” aumentava com a proximidade da praça. Os painéis do metrô também declaravam que Paris era Charlie e que a prefeitura estudava a possibilidade de fornecer auxílio às famílias dos policiais mortos nos atentados. De tempos em tempos era possível ouvir sirenes policiais se aproximando a distância e de repente a população criava um grande corredor para que as viaturas passassem. Eles não estavam lá para coibir o ato, muito pelo contrário: quando passavam eram ovacionados pelos manifestantes. As palmas e gritos emocionados eram um agradecimento pelo serviço, uma homenagem àqueles que deram suas vidas e, mais ainda, uma declaração: “estamos juntos nessa”.
No meio da praça, o monumento em homenagem aos cidadãos que lutaram na Revolução havia sido completamente ocupado por jovens que cantavam a Marseillaise (hino nacional francês) a plenos pulmões. Um grito de guerra, sim. Mas também um grito pela união. Muitas pessoas carregavam cartazes a favor da liberdade de expressão e da liberdade religiosa, eles faziam questão de declarar que além de Charlie, todos eram Ahmed (o policial muçulmano que perdeu a vida no ataque ao jornal), todos eram judeus.
A estimativa é de que 4 milhões de pessoas marcharam pela cidade naquele domingo ensolarado. Com certeza, esta era a sensação: as ruas da velha Paris estavam abarrotadas de indivíduos que se uniram para trazer esperança e compaixão de volta à vida cotidiana. Todos haviam saído de casa para mostrar que se importavam não só com a França, mas uns com os outros.
*Isabella Amaral é estudante do 4o ano de Jornalismo da PUC-SP e integrou a redação da Editora Brasileiros durante um ano.
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