Aos 13 anos, Clóvis Rossi se apaixonou pelo mundo, ao acompanhar os desdobramentos da revolta húngara contra a dominação soviética pelas páginas do jornal O Estado de S.Paulo, que o pai assinava. “Ficava fascinado pelos personagens e pelos locais descritos, inclusive a rota de fuga da Hungria para a Áustria”, lembra Rossi. “Eu queria conhecer as pessoas que faziam a história e os locais em que as histórias se passavam.” Dezessete anos depois, Rossi já atuava havia uma década como jornalista quando embarcou para a sua primeira cobertura internacional, o golpe militar que culminou na morte do presidente Salvador Allende, no Chile. De lá para cá, não parou mais.
Como correspondente, Rossi trabalhou em Buenos Aires, na Argentina, e em Madri, na Espanha. Na condição de enviado especial, acompanhou de perto episódios que marcaram o mundo, a começar pelo processo de redemocratização de pelo menos 11 países. No mundo árabe, que gostaria de conhecer melhor, ele teve um improvável encontro com o líder palestino Yasser Arafat que, depois de lascar um beijo em seu rosto, avisou: “Você é muito conhecido por aqui”. Detalhe: o jornalista chegou a Arafat pelas mãos do rabino Henry Sobel, que chegou a rezar um salmo junto com o líder palestino.
Dono de uma coleção de prêmios, entre eles o mais antigo do jornalismo internacional, o Maria Moors Cabot, entregue pela Universidade de Columbia, de Nova York, Rossi integra o seleto grupo de jornalistas que compõem o International Media Council, do Fórum Econômico Mundial. Três vezes por semana, ele assina uma coluna na Folha de S.Paulo, onde trabalha desde 1980, sempre vinculado à reportagem: “Fiz a carreira ao contrário. Comecei como chefe e vou morrer, graças a Deus, como repórter. Repórter que está colunista, mas no fundo é um repórter”.
Brasileiros – Falta um projeto de País. Com essa frase, você encerrou recentemente uma coluna. Em mais de meio século de jornalismo, já encontrou um cenário tão trágico como o atual?
Clóvis Rossi: São 52 anos de jornalismo. No Brasil, tenho a impressão de que trágico foi o governo Collor. Tenho birra do Collor, até por razões pessoais. Leopoldo, irmão dele, me ameaçou depois de uma entrevista que participei, no Roda Viva. Ele disse para um repórter da Folha que acompanhava o Collor: “Nós vamos acertar as contas com ele depois da eleição, qualquer que seja o resultado”. O que significa acertar as contas ficou para a história. Não acertaram.
Deu medo?
Assustei-me porque, depois de eleito, Collor tinha todos os poderes na mão. Uma vez, inclusive, recebi um depósito na minha conta. Fui checar com o banco, tinha vindo de um doleiro. Pensei que os filhos da puta tinham depositado dinheiro de doleiro na minha conta para me expor, mas não. Era uma colaboração que eu tinha feito para o Clarín, de Buenos Aires, meses antes, e tinha esquecido.
E o que você fez de tão terrível contra Collor?
Só as críticas que tinha de fazer, quando ele era endeusado por quase toda a mídia. Contei o que eu via na gestão dele em Alagoas. Isso deve tê-lo irritado profundamente, porque ele era o queridinho da imprensa. É possível até que meus sentimentos estejam influenciados por esse episódio, pela invasão da Folha, promovida logo nos primeiros dias do governo dele. O Brasil perdeu três anos com ele, dois dos quais foram de recessão, fora o processo de impeachment, a desmoralização das autoridades e todos os escândalos. Então, muito pior foram os momentos Collor. Agora, em matéria de ridículo, este momento do governo Dilma é o pior que já vi. Não precisa de crítico um governo que tira um ministro e ele fica sabendo pela imprensa, como aconteceu com o ministro da Articulação Política.
Tem alguma semelhança entre o período Collor e o atual que justifique o “Fora Dilma”, um processo de impeachment?
Não vejo até agora motivo para impeachment. Não tem como comparar uma coisa com outra, por mais que existam esses Vaccaris da vida. Não dá para comparar, a não ser que se descubra mais coisas.
Não dá para comparar pela dimensão, pelos atores ou por causa da falta de proximidade com a Presidência da República?
Principalmente pela falta de proximidade. Posso estar enganado. Dilma já me enganou muito. Eu achava que ela era uma técnica competente. Sempre achei. Tenho com ela uma relação muitíssimo boa. Em uma conversa, especialmente sobre o problema de energia, ela é capaz de citar quatro casas depois da vírgula sobre qualquer aspecto do problema energético brasileiro. E sem nenhum papel na frente dela. Eu me lembro de uma discussão sobre trens, para essa famosa linha Rio-São Paulo.
O trem bala.
Uma vez fiz uma viagem com a comitiva de Lula na Alemanha, de Berlim para Hamburgo. Horas tantas, Dilma apareceu no vagão dos jornalistas. Eu caí na besteira de perguntar sobre os trens. Ela explicou detalhes do trem. Perdemos meia hora de conversa que poderia ser legal, sobre política. Então, eu achava que ela entendia dos assuntos. De repente, estou descobrindo que não entende. Ou se perdeu no meio do caminho. Mas não vejo que seja do caráter dela roubar, desviar dinheiro.
Como chegamos a esse ponto grave da vida nacional? Você, que sempre foi um homem muito cético, previa isso?
Fomos resvalando de crise em crise. Quando não há um projeto de País, cada governo cuida de um aspecto da realidade brasileira. Nos governos anteriores a Fernando Henrique e no próprio governo Fernando Henrique, o problema era eliminar a inflação, o que realmente melhorou o País, mas é um aspecto da questão. Deveria ter um planejamento sobre o que fazer depois de melhorar a inflação. Isso faltou. A mesma coisa no governo Lula, aquela coisa de dar três refeições por dia para todas as pessoas, fazer inclusão social, sem que houvesse uma transformação estrutural.
Qual a saída?
Não tenho condições intelectuais para elaborar um modelo de país, mas conto uma coisa com a qual concordo. Em 1994, quando era candidato, contra o Plano Real, Lula foi fazer uma palestra na Alemanha. Quando estávamos entrando na sede do partido da social-democracia alemã, Lula virou para mim e falou: “Quer saber de uma coisa? Se nós chegássemos ao ponto de bem-estar social que esses caras chegaram, já estava de muito bom tamanho”. Isso quando ele era considerado um revolucionário socialista. Concordo com ele. Se a gente conseguisse chegar ao ponto que chegou a atual democracia europeia, especialmente a escandinava e a alemã, já estaria de bom tamanho. Seria até demais.
Por causa do desencanto com o jornalismo e o País, já pensou em sair do Brasil?
Já. E uma vez se concretizou. Fui para a Espanha em 1992, para trabalhar. Fui embora do País, com um projeto de ficar pelo menos cinco anos na Espanha, mas desgraçadamente foi no ano do impeachment do Collor. Logo me chamaram de volta para cobrir o impeachment, alegando que não fazia sentido ter um jornalista com a minha experiência na Espanha, enquanto o Brasil pegava fogo.
E hoje?
É tarde para fazer isso. Naquele tempo, dava para levar a família toda, como eu levei, tanto para Buenos Aires, em um período anterior que passei fora do País, como para a Espanha. Hoje não dá mais. Cada filho tem a sua vida. Os netos também já têm vida própria.
Tirando a questão familiar, você teria essa vontade?
Teria, mas não pela política, pela crise, mas pela questão da segurança. Sou paranoico com a segurança. Fico inquieto quando sei que os filhos, os netos, estão fora. Quando minha filha Clarissa morava em Londres, saímos para passear e ela disse: “Pai, você não sabe como é bom andar pela rua sem precisar olhar para trás”.
Como foi o começo da sua carreira e a ligação com o resto do mundo?
Meu pai era assinante do Estadão, que trazia grandes reportagens internacionais, de jornalistas e de intelectuais de prestígio. Comecei a ler aquele noticiário na revolta húngara contra a dominação soviética, em 1956. Eu tinha 13 anos. Ficava fascinado pelos personagens e pelos locais descritos, inclusive a rota de fuga da Hungria para a Áustria. Queria conhecer as pessoas que faziam a história e os locais em que as histórias se passavam. Tive isso desde os 13 anos de idade. E comecei no jornalismo, no Correio da Manhã, praticamente como chefe. E no Estadão mais ainda. Entrei em meados de 1965. No comecinho de 1966, com 23 anos, eu já era chefe de reportagem e editor de assuntos gerais. Fiz a carreira ao contrário. Comecei como chefe e vou morrer, graças a Deus, como repórter. Repórter que está colunista, mas no fundo é um repórter.
Como foi a entrada na reportagem?
Eu era assistente do editor-chefe, quando ele, Oliveiros Ferreira, que deu um berro na redação, ao saber do golpe no Chile: “Quem está com o passaporte em dia?”. Levantei a mão. Como assistente dele, eu era o que estava mais próximo. E fui eu mesmo.
Você viveu quase a metade da carreira na ditadura. A outra metade na democracia. O que foi mais marcante em cada um dos períodos? O que você diria aos que estão pedindo a volta dos militares?
É um bando de imbecis que não sabe o que foi aquilo. Um dos episódios que me marcaram foi o anúncio do AI-5. Era madrugada. Depois que fechamos o jornal com aquele noticiário, fomos para um boteco com a sensação de que o futuro tinha acabado. Claro que depois vieram as consequências todas.
E o mais marcante na democracia?
Tenho recorde mundial, absolutamente inútil, de cobertura de transição do autoritarismo para a democracia. Cobri a redemocratização na Argentina, Brasil, Chile, Bolívia, Paraguai, Portugal, Espanha, África do Sul, Nicarágua, El Salvador, Guatemala. Não sei se lembrei de todos. As festas pelo retorno da democracia foram as matérias que eu mais gostei de fazer, porque escritas com prazer também. E a tristeza imensa de que não houve festa no Brasil. Depois, ainda deu o azar de Tancredo Neves cair doente, morrer e ser substituído pelo cara que tinha sido presidente do partido da ditadura. No Brasil, a redemocratização começou tarde e mal. Já a festa na Argentina foi realmente uma coisa, um ano e meio depois da derrota nas Malvinas.
Como foi o episódio em que o ditador Leopoldo Galtieri convocou a população, que atirou moedinhas nos jornalistas?
Galtieri chamou a população para fazer um anúncio. Chamou pela televisão, no dia que jogavam os dois adversários da Argentina no grupo dela, na Copa do Mundo de 1982. A Seleção havia perdido o primeiro jogo. Dependia daquele resultado. Quer dizer, todo mundo estava assistindo à televisão quando apareceu a mensagem do presidente. Encheram literalmente a praça em frente à Casa Rosada.
E o anúncio?
Ele anunciou a rendição na Guerra das Malvinas. Causou uma revolta monumental. Atacaram primeiro a Casa Rosada. Depois, jogaram moedas não só nos jornalistas, mas nos soldados também. Jogavam nos jornalistas porque eles enganaram o tempo todo. Pela imprensa, a Argentina estava ganhando a guerra. Com o anúncio da rendição, foi uma confusão, bomba de gás lacrimogêneo, tiro para o ar. O que Galtieri, um general do Exército, imaginava? Que anunciaria a rendição e seria aplaudido?
Nelson Rodrigues escreveu uma vez que a situação tinha chegado a um ponto em que os idiotas estavam perdendo a modéstia. É isso que você sente ao acompanhar o embate de petistas e tucanos?
Exatamente. É uma indigência mental. Vocês viram Sibá Machado (líder do PT na Câmara dos Deputados) dizer que há uma conspiração da CIA para derrubar a Dilma? Porra, Dilma está negociando com os Estados Unidos todo santo dia, para ir para lá, para esquecer o negócio da espionagem. Está no melhor nível possível. Quer dizer, o cara não pensa. Se o líder é idiota dessa maneira, imagine os liderados. O PSDB e os outros partidos não ficam longe. Dá desespero.
A crise atual é mais aguda do que a que culminou com o golpe de 1964?
Não, por uma questão muito simples. Em 1964, era no contexto da Guerra Fria. Havia a ameaça, que na minha opinião nunca foi real, de que os comunistas tomassem o poder no País. Os Estados Unidos apoiaram com dinheiro, com todo o processo conspiração. Hoje são amiguinhos da Dilma. O relacionamento entre o Brasil e os Estados Unidos é o melhor desde o governo Fernando Henrique. E tornou-se ainda melhor com Lula. Basta dizer que Marco Aurélio Garcia (assessor especial da Presidência), que é espinafrado pela direita como perigoso conspirador, comunista, tinha contatos frequentes, telefônicos, diretos, com o general James Jones, chefe do serviço americano de Segurança Nacional.
Resumindo, não é uma crise sem precedentes?
É uma crise, mas volto a dizer, a do Collor foi pior, inclusive porque tinha desemprego, queda de poder aquisitivo e até aquela maluquice do sequestro da poupança. Hoje não tem nada disso. O índice de desemprego é bastante aceitável, a renda continua subindo, muito mal e porcamente, mas continua subindo. Não há uma crise social tão grave assim. O problema grave é a inflação. Eu me lembro de Getúlio Bittencourt, assessor de imprensa de Sarney na Presidência. Ele andava pelo Congresso com duas tabelinhas na mão, uma com a coluna da inflação e outra da popularidade do presidente. Quando a inflação subia, a popularidade do presidente caía, e vice e versa.
Nesses anos todos, qual a matéria mais difícil que você fez no Brasil?
Sem dúvida nenhuma, a cobertura da agonia do presidente Tancredo Neves. Difícil porque o objeto da notícia estava no quarto andar do InCor, na terapia intensiva, e os jornalistas no térreo, na calçada. É muito difícil reportar algo que não se vê, dependendo de terceiros para saber o que está acontecendo. Segundo, não entendo porra nenhuma de Medicina. Por sorte, meu irmão é um belíssimo de um médico e me ajudava a traduzir as notas oficiais. A terceira dificuldade era o estresse. Em determinado momento, tinha de escrever e publicar. E as bactérias não obedecem o deadline do jornal.
Lembrei agora que no dia 21 de abril de 1985, eu (Ricardo Kotscho) e outros jornalistas combinamos de ir ao cinema, em São João del Rei, onde seria o enterro de Tancredo, quando você ligou avisando que iriam anunciar a morte do presidente. E foi o que aconteceu.
Mas aconteceu isso comigo também. Trabalhava com um olho na notícia e outro no time table das companhias aéreas, pois já havia sido escalado para cobrir o velório em Brasília. Depois de uns 40 dias trabalhando direto, me deram uma folga no dia 21 de abril. Lá pelas duas horas da tarde, me ligaram do jornal avisando que Tancredo não passaria daquele dia. Foi aí que liguei para você. Depois, voltei para o InCor.
Nesse ponto da história, sem ter eleito diretamente nenhum presidente, o PMDB assumiu o poder com José Sarney em 1985 e nunca mais o abandonou. Como você explica isso?
Nunca me dediquei muito a pesquisar o PMDB, inclusive porque é um partido que se transformou em uma confederação de caciques regionais. A força do PMDB vem do fato de estar enraizado no País inteiro. Eles sempre conseguem fazer maioria nas eleições legislativas. Não têm um nome nacional e as bancadas obedecem muito à movimentação estadual. Então, os governos ficam nas mãos deles.
Não tem outro jeito?
Talvez a minha opinião seja equivocada, mas acho que o grande erro de Fernando Henrique foi não ter peitado esses caras. Primeiro, ter se aliado com o PFL, com Antônio Carlos Magalhães. Até aquelas eleições, os tucanos sempre haviam sido contrários ao PFL. Como se aliar com um cara que você foi sempre contra? Só pode dar merda, só pode dar traição.
E Lula fez a mesma coisa.
Tenho a impressão, principalmente no caso do Lula, que se ele resolvesse peitar de cara, com a força que tinha naquele momento, teria conseguido ganhar os votos nos projetos que precisava, sem ter de ceder ao PMDB. Essa é uma opinião muito peculiar, que provavelmente levaria Lula a se estrumbicar. Ou Fernando Henrique antes. Ainda bem que eles nunca me perguntaram.
E fora do Brasil, algum episódio marcou seu trabalho como enviado especial?
Alguns, como o processo de redemocratização na Espanha. Cobri a Espanha em vários momentos, mas, em 1977, fiz uma série de reportagens que gosto muito sobre o reencontro da Espanha com ela mesma. A metade da Espanha que havia ficado submergida em função da repressão franquista emergiu naquele momento. Eu me lembro, inclusive, do começo de uma matéria, absolutamente atípico, que refletia as mudanças no país. Era mais ou menos assim: “As mulheres nos cartazes de cinema da Gran Vía (a principal avenida de Madri) estão cada vez mais nuas. À medida que o tempo vai passando e a hipocrisia da censura franquista vai se dissolvendo, elas vão tirando as roupas nos cartazes”. Gosto também das reportagens sobre o reencontro com a democracia em vários países latino-americanos. Minha primeira grande cobertura foi no Chile. Fiquei apaixonado pelo Chile.
E conseguiu publicar as matérias do golpe no Chile? O Brasil estava em plena ditadura.
Publiquei, menos os trechos que diziam respeito à participação de brasileiros nos interrogatórios e na tortura. Foi cortado pela censura, mas foi escrito e enviado normalmente. No lugar desses trechos, saíam poesias, não me lembro bem. Sei que saía a marca da censura nos pedaços que falavam da atuação de brasileiros nos interrogatórios e na tortura, no Estádio Nacional e em outras dependências.
Em alguma dessas reportagens, você ficou abalado a ponto de ter medo?
Sou intrinsecamente covarde. Sempre tenho medo, mas sou do tipo que pensa “Olha, não tem jeito, tem de fazer”. No processo de Independência de Moçambique, houve uma revolta de negros, que queimaram propriedades de brancos, mataram brancos e havia rumores de que estupraram mulheres. A caminho do país, fiquei retido no aeroporto de Joanesburgo, na África do Sul, porque o aeroporto de Lourenço Marques (hoje Maputo, capital de Moçambique) estava fechado. Até que chegou um avião de Moçambique, com passageiros em fuga, contando histórias de arrepiar os cabelos. O bom senso dizia: “Não vá”. Fui. O que estiver reservado para mim, vai acontecer. Sou fatalista. Na guerra civil salvadorenha, eu caí em dois ou três fogos cruzados.
Um carro em que você estava foi alvo de tiros.
Foi, mas ou você vai ou não faz a matéria. Não tem sentido o jornal gastar uma fábula de dinheiro para não ter a matéria. E naquela época não tinha televisão, internet, porra nenhuma. Em El Salvador, muitos correspondentes ficavam na piscina do hotel. Depois, conversam com o pessoal da inteligência americana ou salvadorenha, sei lá com quem. Ou não conversavam com ninguém, inventavam pura e simplesmente.
Em algum momento, você tomou alguma precaução do tipo usar colete?
Não. Na América Central, a recomendação oficial era circular em comboio. Em carros com a inscrição “Imprensa”. Uma vez, a guerrilha ameaçava bloquear a eleição presidencial na cidade de Usulután, e fomos para lá. Nove jornalistas em três carros. Eu me lembro até hoje de Orlando, o motorista do carro que eu viajava. Era um craque, piloto de guerra. Na estrada, também havia um comboio de carros-tanque, que levava combustível para Usulután. Orlando queria ficar longe deles, pois se a guerrilha disparasse algum foguete, por menor que fosse, explodiria tudo. Por duas vezes ele ultrapassou o comboio a toda velocidade.
Por que duas vezes?
Porque depois de cada ultrapassagem, nosso carro, muito velho, começava a fazer puf-puf-puf e parava. Depois, chegamos a um cruzamento e pegamos a direção contrária à do comboio. Logo à frente tinha um combate entre o Exército e a guerrilha. Vi soldado saindo com a perna toda estropiada, essas loucuras. Na volta, pegando a entrada para San Salvador, Orlando atropelou um cachorro. Eu estava na frente. Com o impacto, me assustei. Ele falou: “Não se preocupe, que aqui em Salvador é mais comum morrer gente do que cachorro”.
E o Fórum Econômico Mundial? Há quanto tempo você vai ao fórum? O que mudou?
Vou desde 1992, ainda no governo Collor. Mudou o enfoque, que era mais político. Hoje é muito mais econômico, centrado em negócios. É muito chato. Há ondas. Até 2007 houve a onda de euforia com a economia mundial. No começo, tinha um economista, Stephen Roach, da Morgan Stanley, que era o catastrofista de plantão. Todo ano, ele dizia que o mundo iria acabar. E não acabava. Depois, tiraram o Stephen Roach. Puseram o Nouriel Roubini, que errou no primeiro e segundo anos, mas depois acertou.
E estourou a crise de 2008.
Estourou e ele estava por cima da carne seca. Durante os anos que o mundo iria acabar e não acabava, Roubini se hospedava no mesmo hotel que eu, um três estrelas, familiar. Ninguém dava a menor bola para ele. Aí, ele acertou. No ano seguinte, ele foi para o Belvedere, o único cinco estrelas de Davos, com todo mundo em cima dele. Também nunca mais acertou nada. É a tal história. Relógio parado acerta duas vezes por dia.
Nesse período, o que mudou em Davos quanto à percepção do Brasil?
O Brasil ficou importante. Antes, era uma esculhambação. Em 1992, depois que o ministro Marcílio Marques Moreira discursou, fazendo previsões sobre PIB, sobre inflação, falei com empresários estrangeiros. Ninguém tinha acreditado. Hoje em dia, o Brasil é levado a sério.
Quando mudou?
Começou a mudar quando Fernando Henrique foi a Davos pela primeira vez. Ele é um belo orador. E com Lula mudou mais ainda, porque ele tem a grande vantagem de ter uma história de vida absolutamente fascinante. Além disso, Lula fazia o discurso pró-mercado. Era sopa no mel.
E a última reunião?
No ano passado, Dilma participou. Esse ano, a ausência do Brasil é que foi notada. O ministro Joaquim Levy esteve lá, mas a presidente não foi a Davos.
O Brasil se tornou menos relevante. É isso?
Sem dúvida nenhuma. E por omissão. Não só pela crise, pelo escândalo da Petrobras. Eu me lembro inclusive de que Gabrielli, o ex-presidente da Petrobras, fazia um puta sucesso no debate sobre energia em Davos. Era um técnico de primeiro nível. Me surpreendeu vê-lo incluído nessa confusão, porque ele é muito respeitado. (Leia mais à página 62.)
Há uma crise profunda na imprensa, não só no Brasil. É culpa das novas tecnologias ou a imprensa tradicional não está conseguindo se diferenciar?
Acho que não é nem uma coisa nem outra. A imprensa está envolvida em uma crise vital, pois está em jogo a sua existência. Um dos problemas é ganhar dinheiro com a notícia na internet, ganhar o suficiente para montar redações como haviam nos bons tempos. Espero que descubram um jeito no pouco tempo de vida que me resta. Vai ser uma maravilha, porque não vai ter gastos com impressão, distribuição, papel.
Um dos reflexos dessa crise na imprensa é a falta de investimento em reportagem. Como era antes?
Fui a Cuba em 1977, quando ainda era proibido para brasileiros viajar para a famosa ilha. Sabe como cheguei lá? Primeiro, fui para Paris, para tirar o visto cubano. De Paris, fui para Madri, para pegar um voo para Havana, com escala, acho, que na Jamaica. Saí de Cuba via Panamá. De lá, para Miami. Que jornal hoje paga uma viagem dessas? E não é que tivesse tido um golpe.
Qual era a pauta?
Acompanhar a excursão de uma equipe de basquete americana, patrocinada pelo senador George McGovern. Todo mundo imaginou que seria como a diplomacia do pingue-pongue na China. E não aconteceu nada.
Onde você não foi que faz falta em seu currículo?
Fiz pouco o mundo árabe, mas é uma dificuldade. Uma vez, o ministro Celso Amorim se preparava para uma viagem por países árabes. Queria acompanhá-lo, mas não consegui tirar os vistos. No consulado da Síria, por exemplo, disseram que precisavam consultar Damasco, pois eu tinha visto de Israel no passaporte. A previsão de demora era de três meses.
Ainda assim, você esteve com o líder palestino Yasser Arafat, não é verdade?
Em uma situação muito divertida. Estava cobrindo a primeira eleição dele como presidente da Autoridade Palestina, em 1994. Horas tantas me liga o rabino Henry Sobel, que estava em Jerusalém. Perguntou se eu queria acompanhá-lo em uma audiência com Arafat. Seria a primeira entrevista dele. Fui eu, o rabino e outros três jornalistas, um português, outro da agência judaica de Nova York e um da África do Sul. Entramos na Faixa de Gaza pela passagem de Erez. Imagine, um rabino, acompanhado de quatro jornalistas, no meio da noite, um poeirão desgraçado.
Ainda por cima era de noite?
De noite. Quando o rabino me apresentou, Arafat me beijou no rosto e disse: “Você é muito conhecido por aqui”. Opa! Pensei comigo. É a coisa do político. É o que Ulysses Guimarães faria. Certamente, a segurança palestina sondou quem eram os acompanhantes do rabino. E eu conhecia muito um cara que se tornara ministro do Planejamento de Arafat e antes tinha sido embaixador da Organização pela Libertação da Palestina no Brasil. Obviamente, foram perguntar para ele quem era Clóvis Rossi. E aí, Arafat, malandro, me conquista! Cheguei lá, uma estátua como aquela, me beija no rosto e ainda diz que sou muito conhecido. Me ganhou. Na hora.
Nas muitas situações que viveu como jornalista, em algum momento você chorou?
Que eu me lembre, uma vez, em 1983, em Buenos Aires. As madres de Plaza de Mayo tinham marcado uma manifestação e a polícia fechou toda a região. Cheguei por uma das avenidas que desemboca na praça. Na minha frente, caminhava uma senhora, com o nome do filho desaparecido bordado no lenço branco, o rosto sulcado pela idade, pela dor. E tinha aquela fileira de policiais, caras de 2 m de altura, verdadeiros armários, ombro a ombro. Não passava nada. E aquela senhorinha miudinha se atira em cima de um deles e diz: “Me deixe passar que eu tenho um encontro marcado com meu filho às 15 horas”. O filho desaparecido e morto. Eu não aguentei.
Como terminou?
Fizeram a manifestação em volta do cordão policial. À noite, já de madrugada, uma outra cena me emocionou bastante. De uma rua transversal, saiu uma coluna da Juventude Peronista, que era na verdade o braço político dos Montoneros, com velas nas mãos, cantando: “Se va a acabar esta costumbre de matar!”.
Você tem três netos. Aconselharia um neto a ser jornalista?
Não, porque não acho que devo interferir. Continuo gostando da profissão. Não sei se eu gosto porque gosto ou porque não sei fazer outra coisa. Jamais teria conhecido a quantidade de países, de pessoas interessantes, que conheci se não fosse jornalista.
Das personalidades que conheceu, quem mais o marcou?
Nelson Mandela. Por várias razões, a começar pela história de vida dele. Quando foi eleito, Mandela deu uma entrevista coletiva. Perguntei como ele faria para conter a ansiedade da população negra, que tinha ficado séculos marginalizada e esperava que tudo fosse resolvido no dia seguinte, que os empregos aparecessem, que os brancos fossem expulsos. Mandela respondeu: “Olha, quando eu der a primeira casa para uma pessoa negra, o vizinho vai saber que a próxima será a dele. E ele, portanto, vai saber esperar”. Esse tipo de sabedoria me fascinou, porque o cara tinha todas as razões para ter ódio. Ficou 27 anos preso. A rigor, perdeu a vida na prisão. Poderia responder: “Nós vamos matar todos os brancos, tomar as casas deles e entregar para os pretos”. Uma lição de sabedoria. Acho que o último estadista do século se chama Nelson Mandela.
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