Foi uma tragédia amorosa que despertou o jovem venezuelano Simón José Antonio de la Santísima Trinidad Bolívar de la Concepción y Ponte Palacios y Blanco para as injustiças coloniais da América Espanhola. Em 1800, depois de breves períodos no México e em Cuba, Simón foi para a Europa terminar os estudos. Nascido em uma família rica de Caracas, de que quem herdou bens que seriam motivo de conflitos depois de sua morte (minas de cobre, terrenos e fazendas), ele se integrou rapidamente à nobreza espanhola, onde, em um baile, foi apresentado a María Teresa Rodríguez del Toro y Alayza, a segunda filha de um nobre aristocrata de Caracas que vivia em Madri.
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Os dois se casaram em 1802, na capital espanhola. Depois de uma viagem à França, voltaram para a Venezuela, onde viveram até a morte de María, oito meses depois do casamento, em janeiro de 1803, vítima de febre amarela, aos 22 anos. “Depois da morte de minha mulher, jurei que jamais me casaria outra vez e cumpri a minha palavra. Na verdade, a morte de Tereza me colocou cedo no caminho da política. Se eu não tivesse me tornado viúvo, talvez minha vida teria sido outra: não seria o general Bolívar e tampouco o ‘Libertador’. Meu gênio não era para ser nem administrador de San Mateo” (fazenda onde morava), escreveu ele em uma de suas últimas cartas.
Simón Bolívar morreu quase três décadas depois, aos 47 anos, em 17 de dezembro de 1830, na distante Santa Marta, hoje Colômbia, desiludido com o passado. “A única coisa que se pode fazer na América é emigrar”, escreveu ao general venezuelano Juan José Flores, em carta datada dois meses antes de sua morte. “A América é ingovernável para nós. Quem faz uma revolução aqui ara o mar”, escreveu no mesmo documento.
Bolívar liderou a independência da Venezuela, da Colômbia e do Equador. Colaborou com a Independência do Peru e fundou a Bolívia. Nesse processo, se iludiu com uma América unida e forte diante do Império Espanhol. Por tais feitos, é chamado de “Libertador” pela história desses países. Porém, ao mesmo tempo que é considerado herói, sua biografia é repleta de tendências distintas das que hoje alimentam a esquerda latino-americana. “Ele entrevia a solução política na República autoritária, com um presidente vitalício e um corpo eleitoral reduzido, garantindo predomínio estável às elites pré-revolucionárias. Esse regime poderia, para ele, deitar raízes na América Espanhola. A República boliviana, fundada por ele, foi organizada segundo tais princípios”, observa Túlio Halperin Donghi, historiador argentino, autor de História da América Latina (Editora Paz e Terra, 1975).
A peruana Marie Arana, biógrafa de Simón Bolívar, alerta para um traço ainda mais distante do “Libertador”. “Em certos momentos, ele foi um ditador de direita. Em meio ao caos de uma revolução, ao tentar criar países, ele precisava ter uma mão forte. Dizia desprezar a ditadura, mas ele a usou, porque sabia que assim poderia concretizar suas ideias. Bolívar se preocupava com o contrário, que a elite seria destituída e excluída do processo.”
Um dos pensadores políticos mais importantes da história, o alemão Karl Marx (1818-1883) escreveu um texto, em 1857, chamando Bolívar de “medíocre” e “grotesco” pelo culto à sua personalidade construída por ele próprio. “O que Bolívar realmente almejava erigir toda a América do Sul como uma única República federativa, tendo nele próprio seu ditador. Enquanto, dessa maneira, dava plena vazão a seus sonhos de ligar meio mundo a seu nome, o poder efetivo lhe escapou das mãos”, diz um dos trechos do texto.
As apropriações de seu nome e de seus ideais na Venezuela, porém, são mais velhas do que o modelo político que Hugo Chávez imaginou no início dos anos 1980, quando ainda estava no Exército.
Até 1842, o Parlamento venezuelano se recusava a prestar homenagens a Bolívar. A situação começou a mudar quando o então presidente José Antonio Páez patrocinou o traslado dos restos mortais de Bolívar, de Santa Marta a Caracas, e mudou o nome da principal praça da cidade de Plaza de Armas para Plaza Bolívar. Depois, em 1879, o então presidente Antonio Guzman Blanco batizou a moeda do país de “bolívar venezuelano”, que se mantém até hoje.
O bolivarianismo do qual Chávez se apropriou já era um conceito debatido, criticado e elogiado, com interpretações variadas, da ilusão de um continente unido às experiências autoritárias latino-americanas. “Ser bolivariano é ser unificador. Significa se livrar de qualquer estrutura opressora. Se olhar para seus escritos, a educação é algo muito importante para ele. A apropriação de seu nome por essa aliança de esquerda e socialista é errada historicamente e inapropriada”, finaliza Marie Arana.
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