No segundo dia do ano, o governo da Arábia Saudita executou 47 presos, todos condenadas por terrorismo. Dentre eles, o clérigo xiita Nimr Baqir al-Nimr, alto líder da oposição do regime saudita.
Os xiitas logo reagiram, principalmente no Irã. O ministro de Negócios Estrangeiros do país, Hossein Ansari Jaber, afirmou que a Arábia Saudita, de maioria sunita, iria pagar um “preço elevado” pela execução de al-Nimr. No dia seguinte, a Embaixada da Arábia Saudita em Teerã foi alvo de invasões e protestos, 40 pessoas foram presas e as relações diplomáticas entres os dois países foram rompidas.
Para o professor de Relações Internacionais da PUC-SP, Reginaldo Nasser, o crescimento da tensão entre os dois países, que mantêm uma disputa no Oriente Médio há décadas, pode ameaçar o combate ao Estado Islâmico: “Creio que pode complicar possíveis articulações para resolução do conflito na Síria. Qualquer negociação tem que ter consentimento de ambos. Se estava difícil antes, agora pode ficar mais ainda”. A animosidade, no entanto, não deve abalar a aliança dos Estados Unidos com o governo saudita, que é acusado de sustentar o grupo terrorista. “São anos de bilhões de dólares em armas, lobby e muitos negócios em jogo”. Nasser ainda defende que potências ocidentais se beneficiam de um “ponto de equilíbrio” no cenário de instabilidade da região. “Não interessa atingir um nível muito alto de antagonismo que leve mais conflito a outros lugares, como o Iraque. Mas interessa muito, e é isso que eles têm feito, alimentar a tensão entre sunitas e xiitas”.
Leia a entrevista com Nasser abaixo:
Revista Brasileiros – A tensão entre o Irã e a Arábia Saudita ameaça o combate ao Estado Islâmico?
Reginaldo Nasser –Creio que pode complicar possíveis articulações para resolução do conflito na Síria. Há grupos rebeldes apoiados pela Arábia Saudita e o Irã, como se sabe, apoia o Bashar al-Assad, presidente da Síria. Qualquer negociação tem que ter consentimento de ambos os países. Se estava difícil antes, agora pode ficar mais ainda.
Por que essas execuções aconteceram agora e o que elas significam no cenário de instabilidade do Oriente Médio?
Esse acontecimento não é um ponto de partida, mas de chegada. Ou seja, as disputas geopolíticas entre Arábia Saudita e Irã não são de hoje, vêm desde a Revolução do Irã, em 1979, mas nos últimos anos têm crescido consideravelmente. Principalmente durante o contexto da Primavera Árabe, porque na medida em que começaram a aparecer as revoltas, vislumbrou-se a possibilidade de mudança de regime em todos os países do mundo árabe. Isso fez com que cada um desses atores, Arábia Saudita, Irã e seus aliados, passassem a querer influenciar o rumo dos acontecimentos. Em contextos onde há guerra civil, como a Síria e o Iêmen, por exemplo, isso aumenta as tensões mais ainda.
Por outro lado, o Irã também tem feito execuções. Segundo a Anistia Internacional, em 2015 houve por volta de mil execuções no Irã. Esses dois países tem agido tanto externamente quanto internamente. A Arábia Saudita fez isso também porque tem um contexto muito complicado e desfavorável. Há uma discussão sobre o trono saudita, o preço do petróleo está caindo, a situação na Síria e os grupos que a Arábia Saudita apoia estão se dificultando e o Irã se aproxima dos EUA. No momento em que o Irã passa a ser visto com outros olhos por parte dos EUA e da Europa, as sanções econômicas caem, a Arábia Saudita vem aguçar o confronto com o Irã. Porque com certeza sabiam no que ia dar ao executar esse clérigo, né?
A morte do líder xiita foi uma afronta direta ao Irã? Agora que o Irã está com uma relação mais amigável com o Ocidente, a Arábia Saudita teria apoio para isso?
Não sei, estão cutucando a onça com a vara curta. Provocou, as pessoas vão para a rua. Sempre tem um ou outro acontecimento que vai municiar a direita americana e a direita israelense a fazer as suas pressões. Os EUA estão em ano eleitoral, tem o Donald Trump que está despontando como um dos favoritos, tudo isso agita o ambiente. Se a gente pensar racionalmente, não tem porque os EUA comprarem essa versão da Arábia Saudita, mas não é sempre isso que acontece. Acredito que foi um jogo da Arábia Saudita em um momento de fraqueza dela em ser parceira no Oriente Médio, uma tentativa de voltar a ser aquele que é mais confiável, como sempre foi. Faz suas execuções, desrespeita direitos humanos, há várias informações que a Arábia Saudita apoia o Estado Islâmico mas nada disso é suficiente para afastar ela dos EUA.
Nessa situação em que o Irã é parceiro na luta contra o Estado Islâmico e a Arábia Saudita é acusada de sustentar o grupo terrorista, a tendência é que o apoio das potências que também lutam contra o Estado Islâmico migrem da Arábia Saudita para o Irã?
Difícil fazer essa migração. Atenuar a pressão já foi uma grande mudança. Suspender as sanções econômicas, vislumbrar um Irã que dialogue na perspectiva do Ocidente já é um grande passo. Mas é complicado porque dentro desses países, dos EUA, França, Inglaterra, foi construída uma ideia de que o Irã é o grande inimigo no Oriente Médio. Então não é fácil mudar a mentalidade e opinião pública com relação a isso. E o Irã tem aliados que se colocam contra a política de Israel, como o Hezbollah, Hamas, então entra também na questão palestina – coisa que não é da Arábia Saudita. Pelo contrário, ela se relaciona muito bem com Israel.
Como que o senhor avalia a reação das grandes potências mundiais depois dessa provocação da Arábia Saudita?
É recente, estou olhando ainda. Vi que a Rússia, sempre mais próxima do Irã, tem sido cada vez mais pragmática, se dá bem com a Arábia Saudita. Já vi declaração do ministro do exterior da Rússia dizendo que pode fazer uma mediação. Cada potência vai querer ser o mediador diplomático do Oriente Médio. Se não houver outros acontecimentos, esse é o curso mais natural – ficar na mediação. Mas outros países do Oriente Médio estão seguindo a Arábia Saudita, como o Sudão, Bahren. Isso já era esperado. Atingiu o ápice de algo que já estava configurado na disputa entre esses países. O que pode trazer uma complicação maior para os EUA é que no Iraque o aliado deles são os xiitas e eles se aliam com o Irã, de maioria xiita. Essa é a maior complicação para os países ocidentais. O pior que pode acontecer é piorar ainda mais a situação com o Iraque.
O combate ao Estado Islâmico então não seria capaz de afetar a parceria com a Arábia Saudita?
Acho que não. Essa aliança é de muitos anos. Não é um fato desse que vai trazer uma mudança repentina. São anos de bilhões de dólares em armas, em lobby, são muitos negócios em jogo. O vice-presidente dos EUA, Joe Biden, deu uma declaração dizendo que a Arábia Saudita apoiava o terrorismo. E mesmo assim os EUA continuam tendo relações muito estreitas com a Arábia Saudita. Isso nos leva a entender que o Congresso americano é a peça chave nas relações exteriores. Mesmo que o presidente ou o vice tenham suas posições, não é isso que muda a política externa dos EUA. Israel é isso também. Condenações por parte do presidente e do vice e nada se altera. O congresso é em sua grande maioria pró Israel. No Congresso as coisas funcionam de forma muito invisível, por meio dos lobbys.
Para fazer a execução desse clérigo, também acho que não foi sem pensar, sem calcular os riscos com relação às alianças.
Interessa às potências ocidentais alimentar essa disputa entre Arábia Saudita e Irã?
Tem dois aspectos: não interessa atingir um nível muito alto de antagonismo que gere mais apoio a grupos armados dos dois lados e criar uma instabilidade no Iraque, por exemplo. Mas interessa muito, e é isso que eles têm feito, alimentar a tensão entre sunitas e xiitas. O caso do Iraque é exemplar. A ideia dos americanos era: Saddam Hussein era apoiado pelos sunitas, nós vamos apoiar os xiitas. Logo depois da invasão dos EUA, os sunitas e xiitas estavam juntos, em 2003 e 2004. Isso foi vazado pelo Wikileaks: os generais americanos dizendo que esse era o pior dos mundos, vê-los unidos. Isso é deliberado e gera uma série de equívocos. Estou vendo uma série de manchetes de jornais falando em conflito religioso. Não existe conflito religioso nenhum. É o uso da religião para interesses políticos e econômicos. O Oriente Médio dividido é muito interessante para as potências ocidentais. É o que acontece na Síria, no Iraque.
As potências não querem levar o conflito para levar para outros lugares e gerar mais instabilidade. Mas elas apoiam grupos armados. O que tem no Oriente Médio são guerras patrocinadas pelas grandes potências e seus aliados regionais. É um certo ponto de equilíbrio: manter os conflitos e a divisão, dar armas, mas não a ponto de incendiar todo o Oriente Médio.
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