Um brasileiro em campos de refugiados vizinhos da Mossul em guerra

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A cidade de Zahko, Iraque. Foto: Reinaldo Nascimento

Terceira maior cidade iraquiana depois de Bagdá e Basra, Mossul foi capturada pelo Estado Islâmico em 2014.  A cidade é a peça mais importante no califado que o grupo terrorista tenta implantar com a ocupação e consequente eliminação de fronteiras de parte da Síria e do Iraque. A tentativa de retomada do controle de Mossul por uma coalização de forças oficiais iraquianas vindas de Bagdá, de soldados do Curdistão baseados em Erbil e de milícias xiitas apoiadas pelo Irã, com o apoio aéreo e logístico norte-americano, faz da cidade o palco de uma guerra sangrenta. O EI, para defender o território ocupado, usa de todos os armamentos, inclusive ataques suicidas com carros e motocicletas e franco atiradores posicionados nos telhados das casas. Nas residências ocupadas, armadilhas explosivas são instaladas e seus moradores são tomados como reféns. Um verdadeiro inferno.

Não há números exatos, mas estima-se que antes da ocupação do Estado Islâmico, Mossul tinha uma população de mais de 2 milhões de pessoas e, segundo a ONU, 1 milhão e meio lá permanecem. Ainda segundo a ONU, 1 milhão de habitantes devem ser desalojados pela guerra e 700 mil vão necessitar de abrigo.

Campos de refugiados, a poucos quilômetros de Mossul, crescem aceleradamente. Entre as vítimas do conflito, milhares de crianças e adolescentes que passaram por experiências traumáticas. Elas sofrem opressões étnicas, vivenciam guerras e são torturadas. Algumas são usadas como soldados.

A associação alemã Freunde der Erziehungskunst Rudolf Steiner (Amigos da Arte de Educar de Rudolf Steiner) atua em campos de refugiados a fim de trabalhar com crianças e adolescentes com traumas psíquicos em regiões de crise. Uma equipe de oito educadores sociais da associação está, neste momento, em um campo de refugiados em Zahko, no Iraque, perto de Erbil, cidade curda, a 80 quilômetros ao norte de Mossul. Entre eles, o brasileiro Reinaldo Nascimento, de 38 anos, nascido na cidade de São Paulo. 

Nascimento está lá para fazer o que chama de Pedagogia de Emergência, uma intervenção pedagógica para esses jovens em situação de extrema vulnerabilidade. Por meio de artes, jogos, tempo livre para brincar e fases de expressão criativa e artística, cria-se recursos de sobrevivência para jovens soterrados por conflitos.

A partir de hoje, Reinaldo Nascimento escreve o diário da Pedagogia de Emergência em Zahko, onde está desde o dia 4 de novembro.

O DIÁRIO

Dia 4 de novembro de 2016

A viagem do Brasil para a Alemanha foi bem tranquila! Nem a turbulência me abalou. As poucas horas que dormi foram suficientes para eu chegar bem na Alemanha.

O controle do passaporte mais uma vez queria saber o motivo de um brasileiro ir para o Curdistão-Iraque, principalmente agora onde as coisas não estão fáceis? Expliquei o trabalho e o policial, com uma cara de espantado, me desejou muita sorte.

Depois de uma corrida, consegui pegar o trem e fui direto para o escritório. Tinha ainda muitas coisas para arrumar. Conferir os capacetes e os coletes à prova de bala. Mochilas, lanternas, documentos, spray de pimenta, canivete. Tudo conferido!

No hotel, encontrei duas colegas. Jantamos e fomos direto para os nossos quartos.

Hoje, 4 de novembro de 2016, acordei às 4h e fomos direto para o aeroporto. Check-in, café e fomos para Viena. Lá, encontramos os outros colegas. Somos oito desta vez. No voo para Erbil, fica claro o medo que as pessoas têm do Iraque neste momento. Esta é minha quarta viagem ao Curdistão-Iraque e os voos sempre estiveram lotados. Desta vez, somente 25% do avião estava ocupado!

Quase todos jornalistas. Alguns médicos sem fronteiras, alguns curdos e nós, pedagogos de emergência. O voo foi bem tranquilo. Do lado de fora do aeroporto, já era possível ver helicópteros do Exército. As pessoas estão mais tensas. Tudo pode acontecer nos próximos dias.

De Erbil fomos para Zahko e essa viagem normalmente dura  quatro horas. Mas precisamos de quase seis, pois o motorista não queria passar muito perto de Mossul, que foi ocupada pelo Estado Islâmico e agora está num processo de liberação.  Todos estão apreensivos, pois qualquer que seja o resultado final,  milhares de pessoas deixarão suas casas e se refugiarão em outras cidades.

Amanhã, teremos uma reunião para nos atualizarmos e ver o que realmente devemos fazer. Nós nos encontraremos com o time de pedagogos de emergência que se formou nos últimos anos e com os outros times que devem ser formados nos próximos meses!

Aqui já é quase uma da manhã. Volto amananhã com mais detalhes, ok?

Reinaldo Nascimento escreve o diário Pedagogia de Emergência em Zahko para Brasileiros
Reinaldo Nascimento escreve o diário Pedagogia de Emergência em Zahko para Brasileiros

Zahko, 5 de novembro de 2016.

Os dias escurecem mais cedo agora aqui no Curdistão e eu sinto falta dos dias longos de verão que já vivenciei aqui! Era sempre um teste de limites. Era muito estranho ver os termômetros marcarem 50 graus, porém acho estranho hoje ver o mesmo termômetro marcando 13 agora, às 22h, e saber que durante a noite chegará a 8.

Ainda estamos bem cansados da viagem. Para os outros colegas, foram 19 horas de viagem. Para mim, foram 31 horas. Mas acordei bem. Sabia que veria os colegas curdos e é sempre uma grande alegria estar ao lado deles.

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Campo de refugiados Chamuski. Foto: Reinaldo Nascimento

Jakob, Haman, Najila, o senhor Ramid. Bom abraçar este povo! O senhor Ramid é uma inspiração. Esse senhor perdeu tudo o que tinha. TUDO mesmo! Estou seguro de que muitas pessoas cometeriam suicídio se tivessem vivido o que esse senhor viveu! Foi preso e como castigo ganhou um livro, mas um livro escrito em inglês e ele não falava este idioma. Com esse livro, aprendeu inglês e, quando saiu da prisão, foi trabalhar com o Exército americano, pois falava muito bem o idioma. Ganhou muito dinheiro. Construiu a casa dos sonhos e casou todas as filhas. O Estado Islâmico chegou e destruiu tudo. Não ficou nada de pé! Teve de correr para não morrer. Hoje vive no campo junto com mais de 20 mil pessoas numa barraca pequena, mas não perde o sorriso.

É honesto consigo e com os outros.

Lembro-me com muito carinho de um dia em que o sol era mesmo de matar! Era difícil respirar e muitas pessoas estavam reclamando e ele me disse “Reinaldo, este povo está reclamando do sol. Está quente mesmo, mas você imagina se o sol não existisse?” A única coisa que consegui fazer foi apertar a sua mão e convidá-lo para dividir a água que eu carregava comigo. Ainda pensei comigo que aquela água sem aquele sol não seria tão especial.

Haman se casou e só dá risada. Seu inglês melhorou muito e ele está superorgulhoso! Najila era muito tímida e não tínhamos certeza se ela aguentaria trabalhar com tantas crianças. Ela não só conseguiu como virou referência para os novos colegas curdos.

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Crianças do campo de refugiados Chamuski. Foto: Reinaldo Nascimento

Hoje, trabalhamos com um time curdo formado por 20 colegas, a maioria moradores dos três campos, Berseve I e II e o Chamiska. Juntos esses campos acolhem quase quarenta mil pessoas. Eles estão trabalhando muito bem. As crianças vêm para os centros de proteção Infantil e juvenil com muita alegria. Ficam tristes quando não há atividades. Os centros estão muito bonitos, limpos, coloridos e até árvores e flores foram plantadas. É fácil perceber que o trabalho aqui tem sido um grande sucesso!!!

Os campos em si me surpreenderam. Quando cheguei ao Curdistao-Iraque pela primeira vez, a situação era desastrosa. Muita gente nas ruas, muito caos, muito desespero. Os campos estavam lotados e as pessoas não paravam de chegar. Mas eu percebia certo desejo de não arrumar as coisas, pois eles queriam voltar o mais rápido para suas casas e de certa forma, acreditavam que isso era possível.

Hoje, os três campos estão muito calmos. A impressão que tive é que as pessoas não acreditam mais que poderão voltar às suas casas… Alguns colegas me disseram que em suas cidades não sobrou nada a não ser milhares de minas espalhadas por todos os cantos. Voltar para quê? Eles não têm dinheiro para a reconstrução e a situação econômica do Curdistão e do Iraque não são as melhores há muito tempo… E realmente a situação dos campos melhorou. O comércio no campo cresceu muito. Pode-se encontrar quase de tudo. Frutas, roupas, colchões, celulares, etc e é possível tomar o famoso chá preto com muito açúcar! Uma pequena cidade tranquila!!!

Mas o grande medo ainda é a incerteza do que do que acontecerá com Mossul, caso ela seja liberada pelas tropas iraquianas e pelos aliados. Ninguém está seguro. Ninguém quer dar um palpite! Muitos acreditam que se o Estado Islâmico deixar Mossul, mais de um milhão de pessoas deverão deixar a cidade em busca de refúgios. As pessoas estão sempre acompanhando os noticiários.

Para terminar ainda quero que saibam que decidimos investir na formação de mais educadores. Estamos nos preparando para o pior e isso significa realmente contar com a chegada de mais de um milhão de pessoas, a maior parte é sempre formada por crianças e jovens. Também sabemos que muitas mulheres são mantidas como escravas e escravas sexuais.

Para receber tantas pessoas, precisaremos de mais pessoas capacitadas e nessas duas semanas, vamos trabalhar nos campos com os colegas que estão em formação e à tarde teremos seminários com teoria e muitas oficinas práticas. Também trabalharemos com os pais, com os professores e provavelmente realizaremos um seminário na Universidade de Dohuk.

Uma boa noite!

Reinaldo


Zahko, 6 de novembro de 2016.

A noite foi longa para mim. E não foi só por causa da longa viagem e do fuso horário.

Como já escrevi antes, esta é a minha quarta vez no Curdistão-Iraque e sei que não será a ultima e mesmo assim, muitas vezes me pergunto por que tanta maldade neste mundo? Fiquei pensando nas tantas pessoas que me perguntam o tempo todo o motivo dessas minhas viagens, por que me arriscar tanto por pessoas tão desconhecidas?

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As montanhas de Zahko, Iraque. Foto: Reinaldo Nascimento

Minha cabeça fervia e assim não consegui dormir. Acordei muito cansado e fui para o terraço do hotel onde estamos hospedados. A visão é magnífica e rara de ver. Como chove pouco por aqui, a poeira é enorme e pouco se aprecia a beleza das montanhas. Hoje, deu para ver tudo. A fronteira com a Turquia estava clara como nunca tinha visto antes…

Mas foi a chegada ao Campo Chamuski que tive a resposta… Os nossos colegas curdos estão trabalhando muito bem. O ritmo, as músicas, o cuidado, a alegria é fácil de perceber. As crianças chegam correndo com seus crachás balançando no pescoço e vão direto para o centro onde a roda está sendo formada. Juntos, falamos um verso, cantamos uma canção curda e fazemos um trabalho de movimento. Tudo com muita harmonia. As crianças me olham com aquela cara espantada e se perguntam como este homem sabe as coisas que sabemos. Nadja tem só 4 anos e corre para segurar a minha mão, Ahmed tem 7 e segura a outra. Depois a dura decisão de ter que escolher a sala da Nadja ou do Ahmed. A Nadja foi mais forte. Ela me mostra tudo, onde tenho que tirar e deixar o meu tênis, onde posso me sentar e que temos que esperar um pouco. Tudo isso em curdo e ela explica tudo como se eu estivesse entendendo tudo. O que eu entendo de curdo foi somente o suficiente para saber que eu estava me comportando bem!

Duas horas de trabalho. O tempo passou muito rápido. Nadja já estava cuidando de outras crianças com o desenho e com as outras brincadeiras… No intervalo, encontrei o Ahmed com aquele sorriso enorme correndo em minha direção com os cabelos loiros brilhando com o sol. Mais explicações em curdo. Me mostra  a sua sala, o seu desenho, o seu chinelo. Meu colega explica para ele que sou brasileiro e que não falo muito bem o curdo. Ele me olha, balança o ombro e diz que sou um bom homem.

A resposta é esta. De onde vemos é o que menos importa. Ele nunca ouviu falar do Brasil. Vive há cinco em campos diferentes e está feliz! O que estas crianças querem são pessoas boas aos seus lados!

De volta à sala, Nadja me pergunta se está tudo bem comigo. Eu digo que sim. Ela me deixa e vai se sentar ao lado de uma outra criança.

A roda final é feita com muita alegria. Muitas crianças não querem deixar o espaço! Querem ficar…

A vida escolar nos campos aqui em Zahko, onde estamos trabalhando não é muito fácil. Temos contato com uma escola onde 750 alunos são divididos entre 17 professores, ou seja, quase 45 alunos por sala. Salas que só deveriam receber 30 alunos. Muitos dos professores perderam suas casas, muitas de suas esposas ainda estão presas pelo Estado Islâmico. Ou seja, a maioria destes professores precisam de ajuda e estão recebendo. Eu só consigo respeitá-los e admirá-los. Conversei com o professor de inglês, mas ele não fala inglês. Achei que tinha se candidato ao cargo para ter um salário, mas a verdade é que ele realmente lecionava inglês, mas depois que teve que se refugiar, não consegue mais se concentrar num outro idioma. Ele acha que está falando inglês, mas o que realmente sai de sua boca, são frases incompletas e difíceis de entender. Ele, no momento, entende mais do que fala!

Espero dormir melhor hoje, o dia será longo amanha!

Um forte abraço deste país onde também se pode comer arroz com feijão!!!

Reinaldo

Zahko, 7 de novembro de 2016

A televisão está sempre ligada. Só se fala sobre Mossul e a ofensiva iraquiana e curda. Quando começa o comercial, eles mudam para o outro canal para continuar vendo as outras notícias. É o dia inteiro assim. Quando voltamos para o almoço, a televisão continua ligada e à noite também. Por outro lado, ninguém nunca tem certeza de nada.

Temos um colega que está na guerra. Luta pelo Exército iraquiano. Ele deve voltar nos próximos dias e quem sabe as informações sejam mais concretas. Todos querem tirar o Estado Islâmico de Mossul, mas ninguém fala o que será da cidade. Os iraquianos têm medo de que os curdos queiram ficar com a cidade. Os curdos têm medo que os turcos queiram ficar com ela. Os turcos temem uma rebelião curda, já que na Turquia vivem milhões de curdos que sonham com um país próprio.

O dia foi muito bom. As crianças que atendemos, 200 por dia, estão bem! Há crianças muito traumatizadas e algumas ainda sentem medo, mas no geral o trabalho tem sido um grande sucesso. Os colegas curdos estão mais seguros e a Pedagogia Waldorf já se transformou em algo diário em sua vidas…

Hoje, fiquei com o pequeno Alkan, 4 anos com energia de dez homens. Ele tem um problema no coração. Sua mãe disse que ele não pode ser contrariado. “É preciso deixá-lo fazer o que ele quiser!”. O que ele exatamente tem no coração ela não sabe! Eu fiquei ao seu lado. Cantamos, brincamos com os nossos dedos e de repente ele me pega pela mão e saí correndo. Pensei em seu coração. Ai, meu Deus!!! Mas depois pensei no que a mãe dele disse. “É preciso deixá-lo fazer o que ele quiser!” Deixei. Corri atrás dele!

Sabe aquele garoto que você vê uma única vez e já gostaria que ele fosse o seu filho. Esse é o Alkan! Isto acontece em todas as intervenções. No Quênia foi o Mimi. No Líbano, o Dahal. Nas Filipinas, o Pacquio. No Nepal a Asdha e a Fratima. Sei que isso não é possível e muitas vezes nem sei o que eles estão fazendo, mas esses, assim como os outros, sempre são adotados em nossas vidas e pensamentos.

A Asdha foi deixada no orfanato, pois seus pais perderam tudo depois do terremoto. A Astha cuidava de todas as outras crianças e dos adultos e, quando chegamos, ela sempre queria saber se estávamos bem e se precisávamos de alguma coisa. Todo esse cuidado com apenas 9 anos de idade.

Antes de eu voltar ao Brasil, ela me presenteou com uns dois milhões de piolhos e garanto que tirá-los dos meus cabelos foi, durante aquela semana, a coisas mais bonita, pois a cada piolho que saía eu via o seu sorriso!

Quando voltamos ao Nepal, fui direto procura-la e recebi a notícia de que ela não vivia mais ali. Fiquei superpreocupado, mas a minha colega Rashi me dissera que os pais tinham conseguido novos empregos e que por isso foram buscá-la! Começar uma intervenção com uma notícia assim é sempre muito bom!

Aqui em Zahko, vivo isto todos os dias. As crianças são bem recebidas. Os nossos colegas curdos estão cada dia mais confiantes e se sentem a vontade com a pedagogia waldorf.  O carinho que eles tem por estas crianças é algo grande, não caberia neste diário!

Hoje, à tarde durante três horas, trabalhei com todos os colegas turcos. Vinte e cinco. Brincamos, cantamos, corremos, demos muitas risadas e criamos alguns novos jogos. A maioria, como escrevi antes, é de refugiados, vivem em tendas minúsculas com suas famílias, passam dificuldades. Muitos deles sustentam suas famílias com o que ganham trabalhando conosco, cerca de US$ 400 por mês. O Curdistão está caro. Vivem de petróleo e o preço baixou muito. 80% do que é consumido aqui é produzido fora do país. 70% dos curdos são funcionários públicos. Ninguém sabe ao certo, mas a quantidade de refugiados aqui já passa de um milhão e quinhentos, no mínimo!

A impressão é o que os curdos, mesmo solidários, começam a perceber que a guerra na Síria e que o Estado Islâmico é grande mesmo! Como receber e cuidar bem de tantas pessoas? Alfred, meu colega suíço, trabalhou numa sala de aula, terceiro ano do ensino fundamental, que tinha 63 alunos onde caberiam 25. Tudo apertado. No oitavo ano, numa sala que cabia os mesmos 25, só tinha 13 alunos. Os alunos não conseguem aprender e desistem. Os pais ficam com vergonha dos filhos, que precisam repetir o ano e acabam tirando essas crianças da escola. Outros desistem por conta própria.

Já é bem tarde aqui e eu já deveria estar dormindo!

Abraço,

Reinaldo

P.s.: Todos os nomes deste texto foram mudados….

Zahko, 8 de novembro de 2016.

Chauani? As bachim! Como vai você? Estou bem!

Eu gosto muito de idiomas e sempre tento aprender o máximo durante as intervenções. Eu sempre me divirto. Ontem, quando terminei de escrever deveria ter dormido, mas resolvi preparar toda a minha aula em curdo e quase não dormi, mas foi muito divertido! Como educador físico e pedagogo de vivencia tenho a “sorte” de precisar de poucas palavras: direita, esquerda, pra frente, pra trás, gato, rato, corram, devagar, rápido, vocês são muito bons! Banana, maçã e outras! Eles se divertem muito, pois falo quase tudo errado e eles adoram o meu sotaque e eu estudando a noite inteira achando que falaria o curdo mais clássico do mundo! Mas a aula foi um sucesso!

Eu conheci o Amir em 2014, numa das intervenções mais intensas que já participei. Era criança demais! Em alguns dias chegamos a trabalhar com 800 numa única tarde. Tínhamos 15 voluntários curdos. O mais novo tinha 13 e a mais velha uns 24. Apesar do cansaço, foi uma intervenção superespecial. Esses jovens  tinham percebido que só colchões, comidas e roupas não estavam ajudando essas pessoas como imaginaram. Eles entraram em contato conosco por meio das autoridades curdas, que conhecem o nosso trabalho, e juntos atendemos mais de três mil crianças. Incrível!

O Amir ficou sabendo que eu estava aqui e veio ao meu encontro. Ele chegou na hora da oficina e confesso que fiquei um pouco chateado, pois não poderia falar com ele como gostaria. Eu me desculpei por não ter tempo e ele, com aquela cara de pau, disse que sabia que eu daria a oficina e por isto veio nesse horário. Ele me disse que estava com muitas saudades dos jogos e das brincadeiras. Em sua homenagem, refiz algumas daqueles jogos e brincadeiras!

Amir cresceu. O trabalho em 2014 mexeu muito com ele. Hoje, é presidente de uma associação que trabalha com voluntários para prestar auxílio aos refugiados. Ele me prometeu voltar amanha só para tomarmos chá!

Eu realmente estou cansado! Dormi pouco, mas estou superfeliz! Foi um dia especial! Quem me conhece sabe o quanto gosto e aprecio o trabalho com os jovens. E ter revisto Amir com todo o seu engajamento foi incrível!

Muitas pessoas têm me escrito. Desejando boa sorte. Enviando pensamentos bons, orações, beijos e abraços. Querem saber se estou dormindo bem? Comendo bem? Eu estou dormindo pouco, mas é sempre assim durante as intervenções. A cabeça não para. Muita coisa para organizar, muitas crianças com suas histórias em nossos pensamentos. Pais desesperados, jovens largados. Eu ainda quero escrever mais sobre os jovens. É uma tristeza a situação dos que trabalhavam e estudavam tanto em suas cidades e hoje vivem o dia inteiro esperando por alguma coisa, qualquer coisa além da noite e do dia…

Se você vir uma criança ou um jovem hoje em qualquer lugar, e você verá, dê um sorriso para ele! Aqui um simples sorriso ou um aceno curam!!!

S bahe – Até amanhã

Reinaldo

Zakho, 09 de novembro de 2016.

Como é o nosso dia aqui em Zahko?

Nós começamos às 7h30 com uma roda no terraço do hotel. Nesta roda, falamos o nosso verso, cantamos uma música em curdo e depois fazemos movimentos de euritmia ou de ginástica Bothmer.

Depois temos um café de trinta minutos. Às 8h15, já divididos em dois grupos partimos para os nossos campos. Berseve I, Berseve II e Chamishku. Apartir das 9h, nestes campos, atendemos mais de 200 crianças por dia, inúmeros pais, professores, educadores, crianças doentes ou machucadas!

Temos oficinas de pintura, música, educação física, circo, eurritmia, teatro. As crianças passam por todas estas oficinas durante a semana. Todo este trabalho é realizado com os nossos colegas curdos. Hoje, temos vinte! Gente boa demais!

Às 12h40, estamos almoçando… É uma festa! O dono do restaurante admira muito o nosso trabalho e por isto sempre somos muito bem vindos. O duro é explicar que sou vegetariano. Não como carne. Ah, ok! Temos frango e por aí vai…O engraçado é que eles realmente não acreditam e todos os dias tentam colocar carne no meu prato…

Às 14h, um grupo é responsável pela formação dos colegas curdos e um outro grupo volta para os campos para atender casos especiais, graves e para continuar a formação com os professores e educadores das escolas nos campos. Muitos professores e educadores, a maioria, estão traumatizados!

A Formação vai até às 17h30. Às 19h, o time internacional se encontra para fazer uma retrospectiva do dia. Falamos sobre o dia seguinte e cada um fala como se sente e se precisa de algo. Quando alguém precisa, prontamente é atendido. Em todas as intervenções, formamos duplas e estas se cuidam durante toda a intervenção. Desta vez, estou com meu colega (hoje, grande amigo) Alfred da Suiça. Sempre nos perguntamos se estamos bem? Se precisamos de alguma coisa? Hoje, ele estava com vontade de comer banana e junto com a Minka fomos comprar. Só saímos nas ruas se estivermos em três. É totalmente proibido sair sozinho. Sempre em três!

Temos coletes e capacetes a prova de bala. Quando vamos para os campos ou qualquer outro lugar de carro, temos que levar conosco! O nosso material de segurança é pesado. Em 2013, quando fomos trabalhar em vários campos de refugiados no Líbano, o nono andar do hotel onde estávamos hospedados pegou fogo e dois dos nossos colegas ficaram presos. Uma loucura. OS Bombeiros chegaram e a escada era curta demais para tirá-los de lá e o pior é que eles não tinham escadas maiores. No final, deu tudo certo e desde esta intervenção temos uma máscara que nos permite respirar por cinco minutos em caso de fumaça… Faz parte!

Nesta semana, sou o responsável pelas oficinas de ritmo e educação física. A maioria dos nossos colegas são refugiados e sofreram muito na mão do Estado Islâmico. Ainda sofrem nos campos. As condições melhoraram muito, mas é duro viver em tendas se a maioria destas pessoas tinham a liberdade das montanhas.

Khokha, uma de nossas colegas morava nas montanhas de Sinjar como os outros quinhentos mil que estão refugiados no Curdistão. A maioria da etnia Yazidis. O estado Islâmico só consegue ver os Yazidis como adoradores do Diabo e todos que não aceitam se converter ao Islamismo são assassinados. Ela me disse que muitas mulheres foram sequestradas para serem “noivas” do estado Islâmico e que muitas pessoas, inclusive crianças morreram de sede e de fome ao tentar cruzar as montanhas para fugir desta situação. Os relatos são terríveis! Doloridos!

Khokha, Asma, Susan, Amen e me disseram hoje que as minhas aulas são legais porque os levam às suas infâncias. Eles acreditam muito no nosso trabalho porque cantamos, dançamos, sorrimos, nos divertimos. Amen me disse que quando as crianças pedem para seus pais contarem histórias, os pais logo começam a falar da guerra, dos amigos assassinados e ele disse descobriu conosco que estas histórias não alimentam as crianças com “comida” boa. Quando ele se candidatou para ser nossa colega, ficou impressionado com as histórias que contávamos e teve certeza que queria fazer parte do nosso time!

Amen é um cara super gentil. Fino. Me beija todos os dias de manhã e na hora de ir embora! Sempre que pode se senta ao meu lado para aprender inglês e me ensinar curdo. Hoje, eu disse a ele que quando eu crescer eu quero ser como ele! Ele me olhou e pediu para eu falar de novo. Amen, quando eu crescer eu quero ser como você! Ele me olhou e disse que um me levará para Sinjar, o lugar mais bonito do mundo!

Com você, Amen, vou a qualquer lugar, mas só se você deixar eu levar a minha namorada e parar de me beijar na frente dela!!! Ele sorriu…

Saudade do Brasil!

Reinaldo Nascimento

Zahko, 10 de novembro de 2016.

Eu prometi escrever sobre os jovens e hoje de manhã, ao fazer as compras para a oficina de pintura, encontrei dois jovens de 11 e 13 anos no máximo fumando cigarros como se fossem adultos. Nunca fumei, mas para mim, eles fumavam como pessoas que fumam há muito tempo. Estavam muito seguros  no que faziam.

Um deles queria tocar os meus cabelos. Eu respondi em curdo que somente se eles parassem de fumar. Um deles tomou um susto (mais pelo meu curdo terrível!!!)  e jogou o cigarro fora! Brincou um pouco com os meus cabelos e logo foi buscar o cigarro no chão!

Nos campos onde estive, e já foram muitos (Quênia, Líbano, Iraque e também na Faixa de Gaza), os jovens parecem ser os que mais sofrem. Os menores e os mais velhos acabam sendo atendidos primeiro – e é bom assim. Muitas crianças acordam em outras cidades durante as fugas. Muitos pais entram em desespero por terem perdido tudo e, muitas vezes, essa agonia faz com que muitos abandonem seus filhos por um período. Não que os deixem largados nas ruas, não estou dizendo isso, mas não entendem as dores das crianças. Não entendem porque voltam a fazer xixi na cama, porque não dormem à noite, porque não querem comer o pouco que ainda resta.

Os jovens ficam largados e precisam da mesma ajuda. Quando estive em Gaza, me disseram que 90% dos jovens não tinham trabalho. Nos campos aqui de Zahko, não há trabalho nem para os adultos. Hoje, já existe um comércio dentro do campo. Refugiados que conseguiram salvar suas coisas tentam transformar isso num sustento.

Esses jovens, muitas vezes, são induzidos ao trabalho militar por ser a única opção. No Quênia, a quantidade de ex-crianças soldados era impressionante. Muitas delas, agora jovens, não tinham o que fazer no Campo Kakuma além de esperar o dia passar para fazer suas refeições. Muitos desistem da escola e outros tantos desistem da vida!

A verdade é que esses jovens precisam de desafios maiores. Há pouquíssimos projetos nos campos para eles. Na intervenção passada, criamos um projeto e este foi financiado. Era impressionante ver os jovens serrando, lixando, pregando, construindo as coisas. Como a maioria deles vivia nas montanhas, eles têm muitas facilidades com construções. O projeto, mesmo sendo burocrático demais, não durou muito.

Um jornalista hospedado aqui no hotel me disse que o déficit educacional na Síria já é desastroso para a próxima geração! Aqui no Iraque, muitos conseguem ir à escola. Mas elas estão superlotadas e os professores, mesmo sendo heróis de verdade, não conseguem fazer com que os jovens permaneçam até o fim do ensino médio.

Minka e eu estamos pensando em como deixar mais clara a importância desses jovens não serem largados. Sem a devida atenção, eles podem se tornar os terroristas de amanhã. Não porque querem, mas sim porque para muitos essa se apresentará como a única opção de mostrar seus valores.

Minka é minha colega no time internacional desde agosto de 2013 e minha grande amiga desde agosto de 2013, quando fomos para o Líbano. Paixão à primeira vista. Logo, estávamos trocando ideias, músicas, ritmos, livros, cartas, etc. Juntos, estivemos em sete intervenções. Além do Líbano, estivemos nas Filipinas, Faixa de Gaza, Nepal e Iraque.

Juntos, já passamos por grandes histórias. Lembro-me com carinho no Nepal, quando demos uma oficina e pedi para ela buscar uma bola. No caminho até a caixa de matérias, a terra tremeu e todas as crianças vieram para cima de mim. Ela não sentiu o terremoto de 6.3 e ainda ficou brava comigo. “Por que pede a bola, se não vai usá-la?!

Seis meses depois, no mesmo Nepal, quase todos do time ficamos doentes em algum momento, mas Minka não tinha condições de entrar no avião. Quando fizemos a nossa última reunião e ela ainda na cama, todos sabiam que eu ficaria com ela até que tivesse condições de voar. Foi o que foi feito.

Com a Minka, me sinto seguro. Tenho respostas claras. Dividimos as nossas oficinas e no final de cada dia ainda tomamos uma água juntos, enquanto ela fuma seu cigarro. Aqui, ela é a nossa chefe!

Nessa intervenção, ainda temos Alfred, um suíço que acabou de se aposentar. Um cara incrível. Coração enorme. Sempre sorrindo. Professor Waldorf e apaixonado por circo, aquarela e desenhos de forma. Charlote vem de uma pequena cidade perto de Friburgo, na Alemanha, e vive sua primeira intervenção. Elisa é alemã e o bonito é que fui seu mentor há oito anos, quando ela prestou serviço voluntário na Liga Solidária em São Paulo. Aqui ela é a nossa médica! Gabriela vem de Stuttgart, também na Alemanha, e trabalha com a ginástica Bothmer. Rafaela e Jessica, alemãs, estão vivendo no Iraque e cuidando de todo o trabalho aqui.

É muito trabalho. Muita burocracia, muita jogada política, jogos de interesse. É preciso ouvir, tomar muito chá preto e realmente não perder a paciência. 

Amanhã é o nosso dia de folga. No Curdistão-Iraque o dia de descanso é sexta-feira. Dia de lavar roupas, terminar os relatórios. Lavar os cabelos. Colocar a fisioterapia em dia (espero que o dr. Enio não esteja acompanhando este diário!).

Um forte abraço de um homem cansado, mas feliz!

Zahko e Dohuk, 11 de novembro de 2016.

Quando comecei o meu trabalho com o time internacional, eu achava muito estranho ter um dia de folga. Achava e tinha certeza de que precisávamos trabalhar e atender sempre as crianças, os jovens e todos os que precisassem. E aí está a verdade: Nós também precisamos nos cuidar.

Somos pessoas normais. Muitos nos chamam de loucos, de corajosos, de malucos. Alguns colegas são criticados por deixarem seus filhos em casa para cuidar dos filhos dos outros. Outros querem colocar em nossas cabeças que esta guerra não é nossa e que este lado do mundo está ferrado mesmo! Que queremos aparecer, etc.

Hoje, depois de cinco anos no time internacional e 11 intervenções em oito países, aprendi que cuidar de si é crucial para fazer parte desse time. É preciso ceder e dizer não quando realmente não dá mais. Muitos colegas sofrem no começo, pois, como eu, acham que precisam estar o tempo inteiro trabalhando e prestando auxílio e, muitas vezes, o corpo não aguenta. É muito normal ficarmos doentes: diarreia, dor de cabeça, dor de barriga, etc. É muita coisa e, muitas vezes, muita miséria e desgraça num lugar só!

Com Minka, divido toda a responsabilidade desta intervenção. Ela é a chefe e, na ausência dela, por qualquer motivo, assumo. Minka e o professor Bernd sempre me disseram que para cuidar dos outros é preciso estar bem. É preciso se higienizar psicologicamente. E fazemos isso sempre que possível…

Hoje, foi o nosso dia de folga! Grandioso! O difícil é aceitar que sexta é o mesmo que domingo e que domingo já é o segundo dia da semana. Uma confusão desastrosa.

Pudemos dormir até as 9h. Decidimos ir para Dohuk, cidade vizinha onde já trabalhei! É uma cidade cercada por montanhas, o que proporciona muita segurança aos seus moradores e refugiados.

Quisemos visitar algumas ruínas e ao, chegarmos à entrada do parque, no alto da montanha, fomos barrados, pois o Exército iraquiano já está posicionado lá. Ninguém entra! Isso realmente significa que as coisas vão tomando seus rumos e uma ofensiva deve estar muito próxima. Aqui dizem que 70 mil pessoas conseguiram fugir de Mossul. Para nós, já significa que é bem provável que voltemos em dezembro para atender essas crianças e jovens.

Decidimos ir para a represa de Dohuk. Um lugar lindo! Infelizmente quando pensamos no Iraque e agora na Síria, a maioria só pensa em desgraça… Eu sou apaixonado pelo Curdistão. Adoro a comida, as montanhas, a bagunça nas ruas parece o Largo Treze de Maio, em Santo Amaro, São Paulo, nos anos 1990.

Claro que a cultura é bem diferente, os caras me beijam o tempo todo aqui, mas nunca os vi beijando suas esposas. Respeito a cultura aqui e, no entanto, sofro com algumas coisas em relação às mulheres.

O que quero dizer é que o país tem uma beleza impressionante. Ruínas em todos os cantos, pontes de mais de dois mil anos, templos religiosos incríveis construídos nas montanhas e tantos outros lugares. É possível ficar viajando por aqui por anos e não daremos conta de ver a quantidade de belezas. Mas aqui as preocupações são outras. Há dois anos busco cartões postais e ainda não achei.

Hoje, conseguimos fazer uma caminhada de duas horas pelas montanhas. Depois fomos conhecer o escritório dos Amigos da Arte de Educar. De lá fomos tomar um café num local muito aconchegante e depois jantamos no apartamento onde vivem Jessica e Raphaela.

Na volta, claro que fiquei pensando em como seria bonito poder caminhar com algumas crianças e jovens por essas montanhas. Hoje, falar em montanhas é duro para muitos refugiados, principalmente os Yaziadis que viviam nelas e não têm a menor ideia se um dia poderão voltar para lá!

Há muito que fazer por aqui. A situação, por mais esperançoso que sou, não será fácil. O Estado Islâmico é conhecido por chegar impondo medo e terror e por sair, quando não expulso, por não deixar nada em pé: o grupo destrói tudo o que pode e ainda coloca minas por todos os lugares.

Amanhã, Mana, um colega-amigo, que voltou da guerra, prometeu participar do seminário e já me mandou o recado que gostaria de tomar um logo chá comigo! Como gostaria que ele só ficasse conosco em vez de estar todos os meses com esta arma não mão…

Desejo que todos vocês descansem bem. Andem descalços na rua mesmo. Convide aquele amigo de que você tem saudade, mas sempre acha que ele está ocupado demais para tomar um café!

Reinaldo

P.S. O Brasil ganhou da Argentina. Como fiquei sabendo? Quando desci para entregar a chave do quarto, os dois recepcionistas vieram me abraçar e dizer que eu era o melhor jogar do mundo! Eu melhor jogador do mundo? Eles então me explicaram que o Brasil ganhou de 3 x 0 da Argentina e que eu fui o melhor jogar em campo. Estou ferrado mesmo.

Nota da redação: Reinaldo Nascimento já contou para a reportagem que, muitas vezes, é confundido com o jogador Ronaldinho Gaúcho. 

Zahko, 12 de novembro de 2016.

No meio do seminário, o telefone tocou. Ninguém queria atender… Mas ele foi atendido e com ele todo desespero de uma colega que acabara de entrar no grupo. Ela começou a chorar, saiu correndo e foi para o canto. Eu entendia a palavra morte no desespero dela. 

Era difícil entender a situação. Quase todos se levantaram para estar ao lado de Ashia. No final das contas, como Minka não estava e eu era o chefe, decidi levá-la para a sua “casa” no campo de refugiados em que vive. Levei uma médica e Alef comigo. 

O campo estava uma loucura. Muitas crianças correndo. Adultos angustiados e muita confusão! No lado de fora, um senhor mais velho começou a dar tapas nas crianças que se acumulavam na vizinhança. Dentro de “casa”, o desespero era ainda maior. Umas 20 mulheres e todas gritavam e muitas se batiam. Ashia não aguentou e desmaiou. Voltou rápido e começou a se bater também. 

A verdade era que eu ainda não sabia realmente o que tinha acontecido e estava com dificuldade de lidar com a situação. Como pedir para o senhor parar de dar tapas nas crianças? Como ajudar Ashia que não fala nada de inglês e, mesmo que falasse, não tinha condições de expressar além de chorar… 

Eu a levei com a notícia de que alguém de sua família tinha morrido de câncer. Eu a deixei com sua família com uma nova notícia de que seu sobrinho tinha sido morrido atropelado e só horas mais tarde é que realmente entendi o que aconteceu. 

Dois sobrinhos, gêmeos, de 5 anos, estavam comendo salgadinhos quando foram atropelados por um pequeno caminhão. Os dois morreram. 

Aqui é tudo rápido. As crianças foram levadas para o hospital e de lá para as montanhas onde nasceram para serem enterradas. A ideia de que os dois chegaram e partiram juntos deste mundo me fascina e claro que posso entender todo aquele sofrimento no campo.

Conversamos com todos os colegas. Fomos ao terraço do hotel e depois de alguns minutos de silêncio, decidimos que continuaríamos com a nossa formação.

Na hora do almoço me sentei ao lado do Maná.

“Que saudades de você, Reinaldo!” Maná foi meu tradutor, pois tinha vivido na Alemanha. A ideia era somente traduzir por duas semanas e depois continuar com a sua vida, mas ele gostou muito do trabalho e das brincadeiras. Não parava de cantar as músicas além de termos uma afinidade por termos vivido na Alemanha.

No final, ele perguntou se poderia fazer parte do time e ficou para a nossa grande alegria!

Maná tem uma filha de 9 anos e sua mãe tem 75 e é muito doente. Tem problemas sérios nos joelhos e, por isto, dificuldades para andar, além de problemas nos rins. Suas consultas e medicamentos custam US$ 400 americanos por mês e ele ganha US$ 450 pelo seu trabalho conosco. 

Para poder também criar a filha e viver melhor, decidiu ir para a guerra lutar contra o Estado Islâmico. Ele já tentou levar sua mãe filha para a Alemanha, mas a mãe não quer pois uma de suas filhas foi para lá e dois meses depois, morreu.

Era fácil ver em sua fisionomia a merda que essa guerra é. Ele começa a falar, suas mãos tremem, seus olhos ficam encharcados. Todos os dias ele vê pessoas morrendo. Chega a ficar duas semanas sem tomar banho. Muitas vezes, só descansa na hora de orar e em seguida começa tudo de novo. Passa fome assim como os outros soldados. 

Muitas vezes encontram civis carregando bombas e precisam decidir se atiram ou não, pois o Estado Islâmico prende essas bombas nos civis e os soldados acabam atirando, pois não sabem se o grupo terrorista pode acionar essas bombas.

Ele também me disse que fica dias sem poder ouvir direito. Muitos tiros e bombas o tempo todo!Maná está cansado, mais magro, enrijecido… Ele tenta sorrir e fazer piadas, mas é fácil perceber o seu sofrimento. Ele ficará conosco somente até amanhã. Precisa voltar para a guerra. 

É muito estranho ouvir alguém dizer que vai para uma guerra! É estranho também ouvir a pergunta: “Reinaldo, por que o governo brasileiro não ajuda a gente?” Eu queria dizer:

“Ah Maná, se você soubesse o que acontece no Brasil, ficaria assustado também. Você iria querer voar para lá e nos ajudar. Tenho certeza de que no Brasil mais de dez pessoas são assassinadas por dia e não estamos em guerra como vocês. Tenho certeza de que muitas mulheres são violentadas todos os dias, que crianças são abusadas e largadas. E tudo isso na maioria das vezes não é causado por inimigos! Ah Maná, se você soubesse como o Brasil é corrupto!”

Mas só tive coragem de dizer: “Ah Maná, como eu queria que você não fosse para a guerra!”

Reinaldo Nascimento

 

Zahko, 13 de novembro de 2016.

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O dia começou com um belo céu azul. Lá no fundo, perto das montanhas, se via uma neblina que eu nunca tinha visto antes. Foi o Alfred que me disse que era fumaça e não neblina. Fumaça do que?
 
O trabalho com as crianças no campo Chamishku foi incrível. As crianças se sentem bem ao nosso lado e elas nos fazem muito bem. Elas já chegam perguntando porque não teve atividades ontem? Perguntam “bravas”. Tentei dizer que os adultos também tinham atividades, mas Maia, de dez anos me disse que os adultos podem ter atividades à noite quando ela estiver dormindo!!! Faz todo o sentido para mim.
 
Maia é sem dúvida a garota mais velha da turma e mesmo assim nunca falta. Participa com “fome” de todas as atividades. Aproveita tudo mesmo. Chega com aquele sorriso e na hora de embora, é sempre a ultima. Ela também ajuda muito, mas não perde a chance de segurar a mão de um educador e por isto, às vezes, até discute com os menores.
 
Todo o time foi visitar a família das crianças que morreram atropeladas ontem. Homens visitam os pais e as mulheres visitam a mãe.
 
Fomos recebidos pelo pai da criança. Ele nos recebe com um beijo no rosto. Mas que merda. É muito sofrimento num rosto só! Fico imaginando uma família que larga tudo o que tem para fugir das mãos do Estado Islâmico. Chegam num campo de Refugiados onde conseguem um pouco de paz e perdem os dois filhos num acidente de carro.
 
A barraca estava cheia. Somos servidos com água, cigarros e depois com chá. O clima é bem pesado. Se fala pouco e os visitantes são sempre servidos. O pai fica o lado de fora. Depois de um determinado tempo nos é dado um sinal de que podemos deixar o espaço. Na saída, e entregamos o envelope com o dinheiro que juntamos para a família. Faz parte da tradição ajudar a família arcar com os custos de todo o processo funerário.
 
Fomos direto encontrar com as nossas colegas e de lá fomos almoçar. Ashia não está bem e provavelmente não a verei mais antes de deixarmos o país…
 
Eu sempre quis saber como seria a noite no campo. Sempre sou convidado para visitar as famílias dos meus colegas para jantar, mas nunca é possível, pois os campos, à noite, a não ser em casos de emergência, é proibido para quem não vive lá.
 
Hoje, porém, Minka eu fomos trabalhar com professores do ensino fundamental de algumas escolas do Campo Chamishku. Terminamos o trabalho às 19h30, e já estava bem escuro. Durante o intervalo, fui tomar água e vi uma fogueira enorme no final do campo.   
 
Meus olhos estavam ardendo desde que entrei no campo e estava bravo por ter esquecido meu colírio. A umidade do ar aqui é muito pouca e sempre sofro com isto. Minha pele parece pele de cobra ;-)
 
A fumaça que eu vi do terraço do hotel é todo o lixo produzido nos campos durante o dia e que é queimado durante a noite. É muito lixo! Quase tudo aqui é servido em plástico para não precisar ser lavado!
Muitos dos professores pedem a nossa ajuda para levarmos esta questão para Erbil, capital do país. Durante o seminário, eles prestam atenção. Entendem o que falamos, mas sempre que há espaço para perguntas, eles querem saber se podemos livrar suas mulheres do Estado Islâmico. Se podemos conseguir que seus salários atrasados sejam pagos, etc.
 
Preciso me concentrar bastante para não perder o foco. É duro estar na frente de senhores, muitos, vinte anos mais velhos do que eu. Eles me olham com aquela cara de quem quer saber o que este moleque de cabelos azuis quer me dizer. Mas eu me concentro e me esforço para falar o que aprendi em curdo e isto ajuda muito. Eles têm um profundo respeito pelas pessoas que tentam falar o seu idioma e assim termino o que fui fazer e confesso que é muito engraçado ver estes senhores todos dançando comigo…
 
No final querem tirar fotos comigo. Eu finjo que cada foto custa 10 dólares e todos se divertem.
 
 
Reinaldo Nascimento

Zahko, 15 de novembro de 2016

A fumaça não para de chegar ao campo. Os olhos ardem. A boca seca, a garganta arranha e só fiquei duas horas no campo Chamishku. A molecada chega tossindo de manhã. Os professores ficam “raspando” a garganta durante todo o seminário.

É impressionante como ainda nada foi feito. É impressionante como permitem a construção de um campo ao lado de um local assim.

Em três dias, voltarei para casa e, mesmo sabendo que o ar de São Paulo não é o melhor do mundo, sei que estarei melhor do que aqui. É uma loucura…

Hoje, fui convidado para passar um ano aqui. Deveria me sentir lisonjeado e me senti, mas depois de dois minutos fiquei pensando na loucura que esse convite na verdade é. Como passar um ano respirando um ar desses. Essas pessoas precisarão de médicos especialistas e não mais de pedagogos em poucos meses.

Mas o convite me foi feito para implementar e coordenar o trabalho com os jovens. Seu eu fosse pensar somente neles, aceitaria na hora. Todos os dias, eu me desespero com a situação desses jovens… Uma falta de perspectiva que assusta! Claro que muitos vão parar no Exército já que a única opção que lhes restam. Uma covardia!

O que salvou o meu dia e salvou mesmo foi a pequena Djoanna. Linda! Um sorriso enorme. Uma simpatia. Ela chegou toda arrumada com uma blusinha amarela. Quando me aproximei, vi que era um uniforme infantil da Seleção Brasileira. Usar camisas de times de futebol é muito comum entre as crianças e jovens daqui como no mundo inteiro.

Na segunda vez que estive no Iraque havia muitos jovens e crianças usando camisas com o nome do Ronaldinho Gaúcho. Isso fez com que meu nome passasse de Reinaldo para Ronaldinho. Hoje, é o Neymar que estampa as camisetas. Quando ficam sabendo que sou do Brasil, querem saber se conheço o Neymar, o Ronaldo ou o Ronaldinho. “Não. Só os conheço como vocês. Pela televisão.” Certo desapontamento em seus rostos. “Mas você é brasileiro!”

Um garoto me fez prometer que se, um dia, me encontrasse com um dos três, eu lhes entregasse um abraço. 

Hoje foi também o último dia de seminário para os 38 professores. Todos estavam superorgulhosos pelos certificados e esperam ansiosos pela nossa volta em janeiro e março. A maioria está sofrendo! Muitos estão doentes. Estômago, rins, dores de cabeça, diarreia e outros sofrem a dor de não poderem voltar para suas casas. De não saberem como estão suas filhas. Suas esposas…

Um senhor nos explicou que um garoto de 10 anos conseguiu fugir do Estado Islâmico. Chegou sozinho. Sem família. Ninguém entende como ele conseguiu chegar. O que eles sabem é que o garoto não está nada bem. Ele ficou nove meses com os terroristas. Está bem machucado e “doido”. Fala o tempo todo com seu melhor amigo invisível. Não consegue sair de casa. Não consegue dormir direito. Quando dorme, acorda do nada gritando e assustando os outros da casa. Fala de morte o tempo todo!

Estar na frente desses professores é algo grandioso! Hoje, pedi para Minka dar a palestra sozinha. Não tive coragem e nem força! Assumi toda a parte rítmica do seminário. Consegui realmente fazer com que todos “brincassem” e cantassem comigo por uns dez minutos. Alguns não conseguiam se mexer de tão duros que estão! Outros vieram me agradecer no final. “Oh, cabeludo, não sabia que poderia voltar a dar risadas como dei esses dias. Quando você chegou, três dias atrás, te achava mais louco do que eu, mas ontem a música que você me ensinou não saiu da minha cabeça e comecei a cantar para os meus filhos e eles me olharam com muita alegria e  percebi que deixei de cantar há muito tempo!”

Obrigado pelas mensagens de apoio, de carinho, de coragem e de respeito. Obrigado mesmo!

Usar camisas de times de futebol é muito comum entre as crianças e jovens daqui como no mundo inteiro.
Usar camisas de times de futebol é muito comum entre as crianças e jovens daqui como no mundo inteiro.

Zahko, 16 de novembro de 2016.

O trabalho desta intervenção está chegando ao fim… Hoje foi o último com as crianças nos dois campos. A sensação é muito boa, pois os times que foram formados aqui estão bem animados e a qualidade do trabalho já é reconhecida pelos quase 40 mil moradores. As pessoas nos param nas ruas para agradecer o trabalho que fazemos com as crianças e perguntam por que não abrimos mais espaços para as crianças? Vontade não falta!

Disseram-nos hoje que existe a possibilidade de ganharmos mais duas salas. Assim, poderíamos atender mais crianças. Disseram também que o nosso trabalho tem sido muito recomendado nos outros campos aqui no Curdistão-Iraque e há uma grande possibilidade de podermos formar mais professores que trabalham nos campos. Trabalho não faltará!

Hoje também conversei com Susan, nossa colega. Ela só poderá trabalhar conosco alguns dias da semana, pois decidiu voltar à escola e tentar uma nota melhor. Como teve de fugir do Estado Islâmico, não terminou o ensino médio, mas agora conseguiu uma vaga na cidade e, claro, não pode perder a oportunidade. Todos do time ficaram felizes por ela!!!

Maia, minha aluna de 10 anos, me cobra o curdo, mas é Susan quem mais me ensina. No começo, eu ficava meio confuso. Ela me ensinava palavras, frases, eu estudava e decorava o que precisava para as aulas seguintes. As crianças entendiam bem e se divertiam com o meu sotaque, mas os colegas curdos de Zahko e de outras cidades não me entendiam.

Só depois é que tudo se explicou. Susan vem das montanhas, falava um dialeto que não se fala nas cidades. As crianças me entendem porque 90% delas vêm das montanhas. Parece que cada cidade no Curdistão fala outro dialeto, mas os curdos se adaptam rápido.

A situação em Mossul permanece delicada! Os exércitos aliados ainda não conseguiram chegar ao cerne do Estado Islâmico. Muitas pessoas têm conseguido fugir. Ao todo, de acordo com os noticiários daqui, quase 75 mil pessoas. Cada um fala uma coisa em relação ao fim da guerra. Trinta dias, 60 dias, 90 dias. A verdade é que tudo pode acontecer a qualquer momento.

Campos já estão sendo montados para receber os refugiados. Um pesadelo que parece não ter fim por aqui!

Também se fala muito, mas menos do que eu esperava sobre a vitória de Donald Trump. Muitos parecem não se importar com ele ou nem conhecê-lo direito. Alguns acham que, por ele ser louco e falar muita merda, pode ser perigoso também. Pergunto o que pode ser perigoso e alguns dizem que Trump dissera uma vez em sua campanha que os EUA deveriam usar s curdos para acabar com o Estado Islâmico. Mas não estão certo do que esse “usar os curdos” realmente significa. Alguns acreditam que ele quer que os curdos se danem lá na parte da frente da guerra para que o Exército norte-americano chegue mais tarde acabando com o restante; outros acreditam que ele só quis dizer o quanto o soldado curdo é corajoso. Sei lá!

Amanhã não vou para o campo e sinto certa tristeza! Estamos todos cansados, mas todos do time gostariam de voltar lá amanhã. No entanto, temos tantas coisas para resolver com os nossos colegas curdos. Precisamos comprar panos, arrumar as malas. Esses coletes e capacetes à prova de bala são pesados e chatos para colocar nas malas.

É bem provável que eu volte algumas vezes no ano que vem… Maia me disse para não ser preguiçoso neste tempo e continuar aprendendo. Se vocês souberem de alguém que fale curdo de Zahko ou de Sinjai, por favor, me avisem!

Muitas pessoas me escrevem querendo saber se acordei melhor hoje? Acordei sim. Uma grande amiga me mandou uma mensagem pedindo para eu olhar o que fizemos e não o que ainda não foi feito! Esta frase me ajudou, pois a verdade é que o nosso trabalho aqui, apesar de tudo, tem sido um grande sucesso!

Eu me pergunto, todas as noite, se Maná está bem. Ele me prometeu escrever, mas quem está numa guerra tem lá tempo para escrever? Se o garoto de 10 anos poderá ser atendido. Se os professores doentes conseguirão tratamento necessário? Se o lixo deixará de ser queimado na cara de quem vive no campo Chamishku. Como isso me deixa triste. Estamos contatando outras organizações aqui para pedirmos uma solução para esse problema.

As pessoas que vivem nos campos aqui não querem voltar para sua terra natal? Para mim, isso é muito raro. Minha avó, antes de morrer, sempre dizia que queria morrer em sua casa. Meu pai, quando se aposentou, foi viver no Estado em que nasceu. E aqui, as pessoas não querem voltar. Não consigo imaginar a dor que sofrem.

Elas não são fracas e nem covardes. Elas saberiam reconstruir suas casas, pois estão reconstruindo os campos e fazendo deles suas novas moradias. Muitos dos adultos com quem conversei me disseram que o medo e o terror que viveram em suas terras foram grandes demais para ser suportados por seres humanos normais.

O medo de que tudo possa acontecer novamente não os permitem voltar para as suas casas.

Eu gostaria de ficar mais uma semana, mas isso não é possível e, sendo assim, o que eu mais quero agora é voltar para a casa! Estar ao lado das pessoas que amo, das ruas que conheço, da padaria em frente ao condomínio, da represa Guarapiranga, do sofá branco e de quem se deita ali ao meu lado, do pastel e do pão de queijo, da tapioca, do arroz e feijão feitos no Brasil…

Um forte abraço!

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Comentários

Uma resposta para “Um brasileiro em campos de refugiados vizinhos da Mossul em guerra”

  1. Avatar de Luana Galdino
    Luana Galdino

    Por favor, alguém sabe qual é o endereço de contato do Reinaldo Nascimento? Muito obrigada!

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