Os episódios do thriller em que se transformou a negociação da crise de endividamento grega assumiram, em julho de 2015, um caráter de tensão e suspense poucas vezes visto em processos de concertação internacional. Diante do reconhecimento inicial pelo país de sua incapacidade de reembolsar um empréstimo do Fundo Monetário Internacional (FMI), assim como os vencimentos seguintes previstos, o governo grego lançou-se na solicitação de um empréstimo de 85 bilhões de euros para cobrir esses compromissos. Esse governo de esquerda, eleito em janeiro de 2015, já como expressão de um basta à austeridade, mesmo tentando reações surpreendentes para amenizar o astronômico custo das políticas de ajuste propostas pelos credores, continuou sitiado, sem muita margem de ação.
Nas intermináveis reuniões de julho entre governantes, tecnocratas europeus e o FMI, à medida que as peças mudavam de lugar no tabuleiro, uma possível saída para o jogo parecia ficar cada vez mais improvável. Mais do que isso, as movimentações individualizadas, por mais surpreendentes e arrojadas que pudessem parecer, tornavam o jogo sem expectativa de ganhador. A conclusão inevitável, nesse caso, é de que a única solução é a coletiva, a da cooperação.
Para aqueles que imaginavam que a saída da Grécia da zona do euro resolveria a questão, ainda considerando o custo da transição e as feridas para a União Europeia e para a estabilidade econômica da região, os desdobramentos dessa crise evidenciaram que o processo histórico de integração do continente é ainda mais vivo do que as muitas instituições que criou.
A crise do endividamento força a União Europeia a lidar com questões há muito debatidas em arenas políticas e acadêmicas.
85 bilhões de euros é o valor do empréstimo solicitado pelo governo da Grécia ao Fundo Monetário Internacional para saldar os compromissos que estão vencendo
Em duas palavras, se poderia dizer que é uma crise de integração incompleta. Tradicionalmente, a cada Estado, uma moeda.
Estando tanto as decisões de política monetária como a política fiscal circunscritas a uma situação nacional específica, a definição de metas e prioridades dependerá do processo político daquele país, evidentemente. No caso de uma moeda única para vários países, por definição, a política monetária é unificada – ou seja, os bancos centrais nacionais perdem o poder de determinar o valor da taxa de juros e da taxa de câmbio – e suas metas devem levar em conta fatores relevantes para o conjunto dos países, ou para casos críticos específicos. Portanto, a autonomia nacional da política monetária desaparece. Acontece que, se o arranjo permite que os países mantenham certa autonomia fiscal – definindo gastos e receita públicos –, estes podem endividar-se sem que mantenha uma coordenação com a política econômica geral do bloco, na prática, pois pelos tratados, existem limites sobre essas “liberdades fiscais”. Como tem sido amplamente discutido nos últimos anos, no caso europeu, a integração incompleta e as falhas do projeto de unificação monetária teriam origem, entre outros aspectos, nos descompassos entre as políticas nacionais.
Os problemas mais imediatos são a ausência de integração fiscal e orçamentária, a suposta baixa flexibilidade do Banco Central Europeu, a ausência de uma real política financeira unificada na zona do euro.
Desde 2010, quando a crise do endividamento de países do “sul” da Europa se agravou, medidas fundamentais foram adotadas, algumas das quais viáveis apenas em um bloco integrado e, em certa medida, federalizado, como a UE. Foram criados um fundo de estabilidade financeira, mecanismos de governança econômica e houve, de fato, uma reestruturação da dívida grega em 2012. Desde então, as instituições financeiras privadas estão “protegidas”, já que cerca de 75% da dívida grega está em mãos de credores públicos (BCE, Fundo Europeu de Estabilidade Financeira, outros países da zona do euro). As taxas de juros foram reduzidas e prazos foram alongados. No entanto, e apesar de seis anos de política de austeridade – ainda que se considerem críticas a sua efetividade –, a dívida grega continua impagável e qualquer novo empréstimo será destinado aos próprios credores, deixando pouca margem para a retomada da atividade econômica.
E qual o significado do thriller ambientado em Bruxelas exibido pela imprensa mundial durante o mês de julho? O brutal recente confronto, não apenas entre a Grécia e outros países europeus, mas as divisões entre aliados tradicionais, discursos inflamados e humilhantes no Parlamento mostraram a complexidade do impasse em que se encontra a integração europeia. Segundo um querido amigo alemão, profundo defensor da integração: “A Grécia talvez não mereça estar na zona monetária, mas, em estando, a União Europeia deve defendê-la”. O que está em jogo é o futuro da integração e essa foi uma decisão com determinantes históricos cruciais que não podem ser deixados de lado.
75% do débito da Grécia está em mãos de credores públicos: o Banco Central Europeu, o Fundo de Estabilidade Financeira e outros países da zona do euro
Nos momentos de mais alta tensão, vimos o governo francês deslocar técnicos do ministério da Economia para apoiar o Syriza no desenho de uma contraproposta de plano de ajuste, ao mesmo tempo que o ministro alemão de Finanças já tinha uma proposta elaborada. E, de fato, não só os alemães se mostraram irredutíveis. Também espanhóis e portugueses, segundo a mídia, discordaram da concessão de um alívio maior à Grécia, uma vez que eles mesmo se submeteram a seus próprios ajustes.
Para aqueles que pensavam que bastaria a volta de um drachma desvalorizado para restabelecer o status quo na zona monetária europeia, o leque de opções de política ficou muito mais complexo. Não apenas a restruturação da área do euro foi paralisada pela inviabilidade de se excluir o membro mais fraco no auge da crise, como também veio à tona um choque de visões e perspectivas políticas no interior dos próprios países e mesmo dos partidos políticos nacionais. Como fica a questão europeia nos debates políticos domésticos?
O esforço de concertação feito pelos europeus nos últimos 60 anos está sendo posto à prova e parte importante da população do continente talvez não tenha a mesma sensibilidade de seus antepassados para a importância da integração. Os custos envolvidos em um eventual retrocesso são tão elevados que é possível vislumbrar grandes esforços para um novo arranjo, por mais lento e doloroso que venha a ser.
*Economista, professora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo
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