Os modelos econômicos e sociais dos países latino-americanos que se autointitulam bolivarianos aproximam-se muito mais do antigo projeto de estado de bem-estar social, do que do comunismo de Cuba. A avaliação é do filósofo, sociólogo, cientista político e economista José Luís Fiori, professor titular de Economia Política do Instituto de Economia e do Núcleo de Estudos Internacionais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Para ele, a vitória do partido de esquerda Syriza na Grécia tem uma importância extraordinária, como contraponto às políticas austeras da zona do euro, comandadas em grande medida pela Alemanha. Fiori não se precipita em analisar a guinada da política econômica do segundo mandato de Dilma Rousseff: “terá de ser avaliada e criticada a cada momento, em função dos objetivos de longo prazo”. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida à Brasileiros.
Brasileiros – Como o senhor avalia a recente vitória eleitoral, na Grécia, do partido de esquerda Syriza e a formação do novo governo liderado por Alexis Tsipras?
José Luís Fiori: É difícil de avaliar e prever as consequências dessa vitória no médio prazo. Mas, sem dúvida, é um acontecimento de extrema importância e um momento decisivo na trajetória de crise e desintegração que está vivendo o projeto de unificação europeia, liderado hoje, e com mão de ferro, pela Alemanha. O Syriza não tem o objetivo de deixar a UE, apenas exige uma revisão radical dos termos do acordo e das políticas de austeridade impostos à Grécia em troca da ajuda financeira concedida pela Alemanha e pelo FMI, em 2010. Políticas que destruíram nestes quatro anos a estrutura produtiva e a sociedade grega. Mas, atenção, porque o significado da vitória da esquerda grega vai muito além da questão econômica e da pura renegociação da dívida e do acordo. Ela de fato dá voz e força a um movimento subterrâneo que está atravessando toda a Europa neste momento, de insatisfação e de questionamento de um projeto de unificação que perdeu vigor com o desaparecimento do seu grande inimigo externo, a União Soviética, mas sobretudo deixou de ser um sonho coletivo, perdeu sua dimensão utópica e se transformou apenas num projeto realista e incremental de construção da supremacia europeia da Alemanha. Uma supremacia que traz lembranças trágicas para toda a Europa, e para a Grécia muito em particular. A vitória do Syriza é um grito de protesto dos desempregados da Grécia e de toda a Europa, dos deserdados do estado de bem-estar social, mas também de todos os europeus que se resistem à dominação alemã, vazia de qualquer conteúdo utópico ou societário. A pobreza ideológica da senhora Merkel e de sua retórica vazia e autoritária reflete apenas a fragilidade a que se viu condenado um projeto que foi concebido depois da II Guerra Mundial pelos aliados, para conter a Alemanha, e que acabou se transformando em um instrumento de dominação europeia da própria Alemanha.
Os países latino-americanos – ou a maioria deles – optaram por um modelo mais intervencionista e considerado desenvolvimentista, com foco maior no social. Exemplos como Venezuela, Bolívia, e até recentemente o Brasil, podem servir de paradigma para um novo rumo, entre capitalismo e o dito socialismo?
Depende do que você chame de “socialismo”. De fato, os governos boliviano, equatoriano e venezuelano têm utilizado essa palavra para se referir ou definir a nova estratégia de desenvolvimento que adotaram na primeira década do século XXI. Mas se formos mais “ortodoxos” e fiéis às definições clássicas, o que se pode dizer é que esses governos – e também o brasileiro – estão revolucionando a trajetória tradicional e secular de suas sociedades e estão mudando uma face e uma estrutura extraordinariamente elitista e desigual. Assim mesmo, as economias desses países seguem capitalistas e, neste sentido, seus governos me parecem mais próximos do antigo projeto socialdemocrata europeu, de construção de um estado de bem-estar social, do que do projeto cubano clássico de estatização da propriedade e construção do socialismo.
Com a equipe econômica nomeada pela presidenta Dilma Rousseff, o Brasil abandona as políticas anticíclicas e retoma o rumo da ortodoxia. Qual a sua visão sobre esta guinada? Significa um abandono dos aliados latino-americanos?
Já escrevi em vários momentos e reitero no meu livro [História, Estratégia e Desenvolvimento] que não acredito que existam políticas econômicas estritamente de esquerda, nem mesmo considero que o único caminho progressista seja o da heterodoxia. A política econômica sozinha não define nada, até porque todas elas são, em grandes linhas, pró-capitalistas. Neste sentido, cada política econômica deve ser analisada e julgada dentro do seu momento e contexto, e sobretudo em função da sua consistência ou não com os objetivos estratégicos de médio e longo prazo de cada governo. A mesma política econômica pode ter efeitos completamente diferentes em distintas circunstâncias geopolíticas e geoeconômicas. Por isso, a atual política econômica do governo brasileiro terá de ser avaliada e criticada a cada momento, em função dos objetivos de longo prazo deste governo e dos seus antecessores imediatos.
A política comercial do Brasil sofre muitas críticas. Para alguns economistas, o País não pode ser refém do Mercosul e de outros emergentes. Teria de fazer acordos bilaterais com grandes economias, como a europeia e a norte-americana, para expandir seu comércio e integrar-se às cadeias produtivas globais. O senhor concorda com essa avaliação? O que significa em termos geopolíticos?
Temos de começar pela análise e pela compreensão de como funcionam os mercados internacionais, que mais se assemelham a uma “guerra de movimentos” entre forças desiguais do que a um “jogo de troca-troca” entre unidades iguais e bem informadas. Uma guerra assimétrica entre Estados e capitais, que atuam como “grandes predadores” na luta pelo controle monopólico de posições de mercado, inovações tecnológicas e lucros extraordinários. Por isso, o problema do Brasil não é apenas o de multiplicar acordos comerciais de todo e qualquer tipo, ou de se integrar a qualquer preço em algumas cadeias produtivas, cujo centro de comando e inovação se encontre fora do País. O verdadeiro desafio é saber como construí-las e/ou conquistá-las a partir de sua própria capacidade expansão e inovação. Para avançar nesse campo, os empresários e os economistas brasileiros, de dentro e fora do governo, teriam de deixar de lado por um tempo os seus manuais e as suas fórmulas ideológicas, para aprender com a história e a estratégia dos grandes ganhadores, os grandes Estados e capitais vitoriosos que lideraram e lideram os mercados, a inovação tecnológica e a acumulação de capital, em todo o mundo, desde o século XVI. O México, por exemplo, calculou que poderia se juntar às grandes cadeias produtivas mundiais, abrindo sua economia e se integrando de forma radical à economia norte-americana e canadense. O Nafta já tem vinte anos e até hoje o México não avançou quase nada na sua participação ou na integração nas cadeias produtivas globais e nem mesmo naquelas capitaneadas pelas grandes empresas dos EUA. Porque, no balanço final dos acordos de livre comércio entre economias assimétricas, os países mais fracos só conseguem ganhos tecnológicos infinitesimais, e acabam sempre ocupando a posição da presa dos grandes predadores. Por fim, são os objetivos estratégicos de longo prazo do país, geopolíticos e geoeconômicos, que devem definir a natureza e a extensão dos seus acordos comerciais, em distintos momentos de sua trajetória interna de desenvolvimento e da projeção externa do seu poder internacional.
Há um modelo de desenvolvimento ideal para o Brasil, a exemplo da influência da escola cepalina em passado recente?
Acho que não há nem nunca houve nenhum modelo ideal de desenvolvimento. O que existem são algumas regularidades estreitamente associadas ao momento e à localização do país dentro da luta internacional dos Estados e das economias pelo poder e pela riqueza mundiais. Isso depende da coesão interna de suas elites e da capacidade de mobilização de suas sociedades em torno de objetivos prioritários. A escola cepalina nunca teve um modelo ideal de desenvolvimento, nem nunca se propôs definir regras de validade universal. O que sempre defendeu e que me parece que segue sendo válido era a industrialização dos países latino-americanos, como forma de expansão progressiva da sua capacidade tecnológica, e do controle soberano de suas próprias políticas econômicas.
A retomada das relações diplomáticas entre Cuba e os EUA significa o quê para o pensamento e a prática dos governos latino-americanos?
A reaproximação dos dois países foi uma extraordinária vitória da sociedade cubana, mas refletiu também a necessidade de os EUA redefinirem suas políticas para a América Latina, em face do forte avanço da presença econômica da China. E, mais imediatamente, foi uma tentativa de resposta dos EUA ao projeto chinês de construção do Grande Canal da Nicarágua, que anuncia uma concorrência direta com os norte-americanos pelo controle comercial do Mar do Caribe. De qualquer maneira, a reaproximação também foi uma vitória dos demais países latino-americanos que sempre se colocaram ao lado de Cuba e contra o bloqueio econômico norte-americano. Neste sentido, a vitória fortalece também o objetivo e o ideal de uma comunidade latina mais autônoma e soberana com relação à tradicional hegemonia hemisférica dos EUA.
O Banco do Brics [Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul] tem qual importância para esse grupo tão heterogêneo? Qual a relevância geopolítica frente ao FMI [Fundo Monetário Internacional], por exemplo?
A criação do banco de desenvolvimento junto com o fundo de compensações, acordada na VIº Reunião de Cúpula, em Fortaleza, em julho de 2014, representou uma mudança qualitativa na trajetória do grupo do Brics, porque é de fato a sua primeira materialização concreta. A partir dessa decisão, por mais longo que venha a ser o processo de montagem e institucionalização, o Brics deixou de ser apenas grupo diplomático e político informal e passou a ter um instrumento concreto de ação econômica e de administração conjunta. Talvez tenha sido a decisão mais importante no campo financeiro internacional das últimas décadas, e a primeira que escapa inteiramente aos desígnios da finança pública e privada anglo-americana, mesmo sem confrontá-la. A decisão não muda de forma imediata e radical a velha ordem monetário-financeira do planeta, que foi liderada em um primeiro momento pela moeda inglesa, papel assumido pela moeda norte-americana. O mais importante é a forma como foi dado este passo, assumido como um gesto simbólico e político, e como parte de uma estratégia de construção de circuitos monetários e financeiros paralelos e de contenção, mas que não necessariamente contraditórios com a ordem monetária e financeira anglo-saxônica.
As recentes crises financeiras puseram em xeque a hegemonia do capitalismo. Paralelamente, contudo, não surgiram modelos que pudessem aperfeiçoar o substituir o vigente. Como o senhor avalia esse cenário?
Não creio que as crises econômicas recentes, ou mesmo as grandes crises financeiras dos séculos XIX e XX, tenham posto em xeque, em algum momento, a hegemonia do capitalismo. Talvez tenham posto em discussão a supremacia do modelo liberal anglo-saxônico de organização e gestão do capitalismo, mas não o próprio capitalismo. Cada uma dessas crises contribuiu sim para o surgimento de novas formas ou novos modelos de organização e gestão do capitalismo. O próprio sucesso da China hoje e do modelo asiático de capitalismo desde os anos 1970 parecem sugerir a existência de muitas formas distintas, alternativas e renovadas de desenvolvimento do mesmo capitalismo.
O Brasil poderia retomar o protagonismo nos fóruns mundiais? Aparentemente, após Lula, o País perdeu voz nos grandes temas, ou essa é uma visão equivocada?
De fato, a política externa do governo Dilma teve menos presença e destaque do que a do governo Lula. Em parte, porque o próprio Lula foi e é um fenômeno de interesse e destaque internacional por si mesmo. Além disso, seu governo contou com um ministro de relações exteriores que sempre valorizou a presença ativa mais do que a simples tomada de posições no campo internacional. Mas isso não quer dizer que este governo não tenha tomado ou mantido posições extraordinariamente corajosas e inovadoras. Exemplos são a crise da Ucrânia, o ataque de Israel à Faixa de Gaza, a expansão do Brics e da Unasul [União de Nações Sul-Americanas], a crise política da Venezuela e do Paraguai, a política de renovação e modernização do material bélico brasileiro, entre vários outros eventos. Ou mesmo com relação a situações conjunturais, como foi o caso de espionagem norte-americana do governo brasileiro, denunciada pelo senhor [Edward] Snowden.
O uruguaio José Mujica foi um presidente admirado e quase endeusado na América Latina. Trata-se de um ponto fora da curva ou uma forma de administrar que pode ser replicada?
Considero o ex-presidente Mujica uma pessoa e uma figura política extraordinárias, igual ao presidente Evo Morales, por exemplo. Mas é necessário ter em conta as pequenas dimensões territoriais, demográficas e econômicas do Uruguai, para que se possam extrair lições úteis e replicáveis do estilo de gestão de Mujica.
Quais os desafios principais da América do Sul neste momento?
Enfrentar os efeitos críticos imediatos e de médio prazo da desaceleração econômica global, sem abrir mão da estratégia da maioria dos seus países, de ataque à desigualdade social, promoção e mobilização social ativa da população mais pobre e, ao mesmo tempo, sem abrir mão do projeto comum de unificação política do continente, de expansão da sua presença, da sua influência, do seu poder e de sua participação na riqueza internacional.
O recente ataque ao jornal Charlie Hebdo reflete um mundo cuja intolerância é uma característica? Como lidar com a absorção de crenças diferentes?
Após o fim do guarda-chuva ideológico da Guerra Fria, e do rápido fracasso da utopia da globalização e do projeto imperial e unipolar dos EUA, aumentou em vários pontos do mundo a intensidade dos conflitos e da intolerância, sobretudo religiosa e racial. O esvaziamento ideológico do projeto de unificação europeia e sua progressiva desintegração vêm contribuindo decisivamente para o aumento da intolerância dentro da própria Europa e de sua antiga zona de dominação colonial: África e Oriente Médio, onde os europeus e a OTAN seguem atuando como se fossem povos escolhidos por Deus para gerir o mundo. Você me pergunta como lidar com essas diferenças e antagonismos crescentes entre crenças e civilizações? Parece-me que segue válido o modelo helênico da convivência, do diálogo, do respeito pelas diferenças, além de aceitar de uma vez por todas que não existem mais apenas dois ou três países responsáveis pela produção dos valores e pela arbitragem e gestão da ética internacional. E, acima de tudo, enterrar definitivamente a fantasia arrogante de que existam povos que tenham sido escolhidos e nominados por Deus, e por isso possuam um mandato divino para civilizar, converter ou mandar nos demais.
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