A alegria dispensa palavras: está no semblante. O mesmo rosto que há meses carregava um olhar pesado, ainda triste, hoje é totalmente diferente. Yolande Mabika sorri, brinca com as crianças, emociona-se ao relembrar todo o caminho até a sexta-feira (03). Ela e o compatriota Popole Misenga, judocas nascidos na República Democrática do Congo e há três anos refugiados no Brasil, estão entre os dez atletas que vão integrar o time olímpico de refugiados que vai disputar o Rio 2016.
Na edição 106 da Brasileiros, o repórter Eduardo Marini contou a história em “Fuga para a vitória”, em que ele relata o direito de disputar a Rio 2016.
“Estou muito feliz. Treinei muito. Cheguei aqui com 84 kg; agora, graças ao Geraldo, estou com 70 kg. Pode ter certeza que vou treinar todo dia até lá. Estou tremendo, nem conseguindo falar direito”, disse Yolande, com um português também mais solto e mais claro.
“Geraldo” é o sensei Geraldo Bernardes, coordenador de Alto Rendimento do Instituto Reação, organização não governamental que promove a inclusão social por meio do esporte e que acolheu os dois judocas há pouco mais de um ano. O desafio era grande: havia nas costas de ambos o peso de uma história de sobrevivência à guerra civil, de fuga, de dificuldades para recomeçar em um país onde os desafios passam pela língua, pelo dinheiro, pelas distâncias. Mas vieram o esporte e a transformação.
Presidente do Reação, o judoca medalhista olímpico Flávio Canto, que abriu as portas para a dupla, também se sentiu recompensado. O sensei Geraldo passou a treiná-los na unidade do instituto que funciona na Faculdade Estácio, em Jacarepaguá, na zona Oeste do Rio de Janeiro.
Os “filhos adotivos”, como Geraldo diz, ganhavam do Reação cesta básica e ajuda de custo para transporte. O judô, que já praticavam no Congo e que fazia falta na vida de ambos, era um grande alento na vida em reconstrução. E a chance de participar dos Jogos Olímpicos se tornou o maior estímulo. Mas as dificuldades financeiras permaneciam. Dormir ainda era uma tarefa árdua. Popole é casado com uma brasileira, tem um filho de um ano e quatro meses e precisava ajudar nas contas. Yolande morava de favor na casa de uma amiga e mal conseguia contribuir.
O dinheiro começa a aparecer
Nos últimos meses, a situação melhorou. Eles passaram a ganhar uma ajuda financeira da Faculdade Estácio, onde, além de treinar, também fazem aulas de reforço para melhorar o Português. Pelo Programa Solidariedade Olímpica do Comitê Olímpico Internacional (COI), receberam, ao todo, doze mil dólares cada um – cerca de 43 mil reais – que trouxeram alívio e permitiram dedicação ainda maior aos treinos.
Yolande conseguiu também sair da casa da amiga na comunidade de Cidade Alta, zona Norte do Rio, e agora mora sozinha no bairro de Bonsucesso, na mesma região. Para completar, o projeto olímpico deixou de ser apenas um sonho. O motivo da insônia, a partir de agora, será outro.
“A história mudou. É muita emoção junta. Nem sei como vou dormir. Sou atleta – e o sonho de qualquer atleta é lutar em um Mundial, numa Olimpíada. Eu ainda vou contar essa história para os meus filhos”, disse Yolande.
“Quero agradecer ao Comitê Olímpico Brasileiro, ao Comitê Olímpico Internacional, à Estácio e ao Reação, que me ajuda muito até hoje. Estou feliz mesmo, é um dia emocionante. Agora, é buscar mesmo a medalha”, acrescentou Popole.
Não basta participar
Os dois atletas concordam: se vão estar nos Jogos, o objetivo é o pódio. Nada de se satisfazer apenas com a participação. “Todo lutador, todo atleta, se está treinando, é para ganhar. Ninguém treina para perder. Estou me preparando para chegar ao pódio. Se a medalha vier, é para o Brasil, para o Comitê Olímpico Brasileiro. Eu estou aqui, sou refugiada, tenho documentos neste país. Este já é meu país. Sinto que é minha casa”, afirmou Yolande.
Geraldo é o primeiro a dizer que eles têm condição de lutar por uma medalha, mas já considera a participação nos Jogos Olímpicos uma grande vitória. “Apesar de ter ido a quatro Jogos como técnico, com várias emoções, isso é diferente. É um trabalho humanitário, de vida, que culmina com a participação deles. Minha missão é treiná-los. Se vou estar ou não com eles lá na hora é uma decisão do COI. Claro que gostaria, mas se não puder, fico feliz pela transformação que conseguimos realizar. Eles já são vitoriosos”, diz o sensei.
Velocidade, força e regra
De volta ao semblante: além de mais alegre, o rosto de Yolande está mais fino. Os 14 quilos que ela perdeu nos últimos meses têm a ver com a melhora na alimentação e com a dedicação aos treinos.
“Ela tem treino de judô todo dia e treino físico três vezes por semana. Tem também a motivação por estar conseguindo as coisas. Yolande aumentou a massa muscular, a gordura corporal baixou. Agora vamos intensificar o treino de força”, explicou Paulo Caruso, preparador físico e treinador do Reação.
O potencial de Popole chama a atenção de Caruso. O desafio até os Jogos é focar nas correções técnicas e no conhecimento das regras. “Popole é um atleta extremamente forte, muito rápido e perigoso. Ele tem pouca experiência internacional, isso pesa contra. Mas tem o lado de que ninguém o conhece, não sabem qual o golpe mais forte. Vão tentar usar a regra para vencê-lo. No judô, tem muito ganhador pela punição, e você é punido por não saber usar a regra, e isso a gente quer evitar”, disse.
O judoca tem consciência do tamanho da oportunidade e não vai economizar suor. O empenho não é só pelo esporte, mas por todos os refugiados e pela família dele. “Já me separei da minha família há muito tempo, até esqueci a cara do meu irmão. É a minha chance de aparecer na televisão e minha família saber que estou vivo no Brasil. É a oportunidade da minha vida, vou lutar por todos os refugiados”, disse.
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