Em São Paulo, para divulgar o lançamento do CD duplo e do DVD Uma Travessia, 50 Anos de Carreira ao Vivo, o cantor e compositor Milton Nascimento recebeu nossa reportagem no mezanino do hotel Emiliano, nos Jardins, bairro nobre da capital. O encontro estava marcado para as 18h30 e deveria ter durado 40 minutos. Mas a conversa teve início quase duas horas mais tarde. Para nosso prazer, o bate-papo teve quase a mesma duração do “atraso” de Milton: 1 hora e 40 minutos.
Mesmo enfrentando uma maratona de fotos, entrevistas e coletivas de imprensa desde as 11 horas de uma quinta-feira de setembro, Milton se trancafiou com o repórter de outro veículo, que teve o preciosismo de levar seus álbuns de carreira (33 títulos) para que ele escolhesse dez e tecesse comentários. Motivo do “atraso” para o início da nossa conversa.
Nossa ideia era traçar um perfil de Milton, partindo de episódios cronológicos. Mas a proposta ganhou novas dimensões, graças ao prazer que ele explicita ao reconstituir, com minúcia e bom humor, acontecimentos divisores de sua carreira. De maneira que, apesar de expressar a opinião de Milton sobre as recentes manifestações populares, a entrevista a seguir – por conta da necessidade de interrompê-lo para descansar – incidentalmente resultou em um rico recorte da primeira metade da bela travessia empenhada pelo artista.
A propósito, mesmo tocando profissionalmente desde os 14 anos, Bituca, como é chamado desde a primeira infância, considera seu marco-zero o grupo instrumental Berimbau Trio, formado, em 1963, por ele, Wagner Tiso, seu primeiro parceiro musical, e o baterista Paulo Braga – Milton fechava a cozinha empunhando um “rabecão”, o contrabaixo acústico.
Também em 1963, outro momento divisor: ele foi morar em Belo Horizonte e acabou “adotado” pelo clã dos Borges, um grupo de 11 irmãos apaixonados por música que, junto a ele, tornou universal o cruzamento das ruas Paraisópolis e Divinópolis, “sede” do imaginário Clube da Esquina.
Brasileiros – Antes de chegarmos ao episódio que marca seus 50 anos de carreira, fale um pouco de seu despertar para a música.
Milton Nascimento – Minha coisa sempre foi música. Virei músico profissional aos 14 anos, tocando em boates, das 22 horas até as 4 horas. Wagner Tiso me acompanhava, e tinha apenas 12 anos. Mas nunca tivemos problemas com nossas famílias ou com quem quer que seja. De vez em quando corríamos do Juizado de Menores, mas não era algo assim tão ruim, porque a gente se escondia nas cozinhas e chegando lá tinha batatas fritas e guaraná à vontade.
Brasileiros – Muito antes disso, aos 5 anos, você já teve os primeiros contatos com instrumentos musicais…
M.N. – Eu morava no Rio de Janeiro com minha mãe de sangue (Maria Nascimento) e ela trabalhava para uma família que a adorava. Antigamente quando a empregada ficava grávida a família imediatamente a mandava embora da casa. Mas, com minha mãe aconteceu exatamente o contrário. Tanto é que quando nasci passei a ser tratado como príncipe. Principalmente pela Lilia, que era uma das filhas da família e se tornou minha madrinha e segunda mãe. Um ano e meio depois minha mãe morreu. Fui mandado para Juiz de Fora, para morar com minha avó, não que Lilia e sua família quisessem, mas porque achavam que era o mais correto a ser feito. Acontece que, para mim, tal escolha não deu nada certo. Não me dava bem com nada, não conseguia comer, ficava sentado na porta da casa da minha avó, esperando um carro verde passar, o carro do pai da Lilia. Fui emagrecendo, ficando doente e, tempos depois, a Lilia tinha casado e se mudado do Rio de Janeiro para Três Pontas, no sul de Minas. Um dia ela chegou para o meu futuro padrasto (Josino Campos) e falou: “Temos de ir para Juiz de Fora porque o Bituca não está bem”. Com dois meses de casamento, decidiram me buscar. Eu estava sentado na soleira da porta da casa da minha avó quando vi o carro verde se aproximando e comecei a me levantar. As pessoas que viram a cena contam que, ao perceber que eu iria cair e bater a cabeça numa pedra pontiaguda, Lilia abriu a porta do carro ainda em movimento, saiu em disparada e conseguiu me pegar antes de eu me estatelar na pedra. Houve uma época que fui muito a Roma e sempre ia ao Vaticano ver a Pietà, de Michelangelo. Ia todos os dias admirar aquela beleza, até que fiquei sabendo que aquela Nossa Senhora, que segurava Cristo, segurava um filho morto. Lilia me salvou, nesse momento e em muitos outros. Foi uma Pietà para mim. Tanto que resolvi fazer um disco em homenagem a ela (Pietá, de 2002). Outras duas mulheres muito importantes em minha vida foram Ângela Maria e Elis Regina.
Brasileiros – Como você e Wagner se tornaram amigos?
M.N. – Sempre adorei piano, mas não tínhamos dinheiro para comprar um. Foi então que minha mãe decidiu me dar uma sanfona. Não aquela que tem teclado, mas uma bem simples, de quatro baixos. Ganhei também uma gaita e aprendi a tocar os dois instrumentos ao mesmo tempo. Botava a sanfona no pé e a gaita no joelho. Por muito tempo fiquei na varanda de casa, em Três Pontas, tocando os dois instrumentos. Há alguns anos Wagner Tiso foi ao programa do Jô Soares e o Jô perguntou para ele como é que tínhamos nos aproximado. Ele contou que me ouvia tocando os dois instrumentos e pensava: “Não é com minha família que vou tocar, não – a família dele é toda de músicos –, é com esse aí que eu vou!”. Passado um tempo nos encontramos e começamos a tocar e a cantar juntos.
Brasileiros – Por que você decidiu partir para Belo Horizonte?
M.N. – Eu estava no ginásio, queria fazer Astronomia e falei para os meus pais que ia a Belo Horizonte para mexer com música. Meu pai insistiu: “Eu, se fosse você, estudaria alguma coisa, porque viver de música não é só uma questão de talento, é questão de sorte também”. Concordei com ele, mas fui para Belo Horizonte pensando nas duas coisas. Como, por lá, não havia faculdade de Astronomia pensei em estudar Economia. Eu já era amigo dos Borges, e fui com o Márcio até a universidade, peguei um material sobre o curso, para avaliar. Subíamos uma rua, no caminho de volta para casa, e perguntei para o Márcio se ele tinha fósforos. Ele olhou para mim e estranhou: “Ué, mas você não fuma”. “Mas eu quero, e não é para fumar!”, disse a ele. Peguei o fósforo, queimei toda a papelada da faculdade e gritei: “Viva a música!”. Na sequência, fomos comemorar em um boteco e enchemos a cara. Nunca mais parei com a música.
Brasileiros – Você se aproximou dos Borges logo que chegou?
M.N. – Eles são 11 irmãos e logo que os conheci resolvi que seria o 12º. Acabaram me adotando. Só quando cheguei a Belo Horizonte é que fui conhecer músicos profissionais. Quando morava em Três Pontas ouvia no rádio um monte de músicas que eu gostava, mas, na maioria das vezes, a melodia e a letra eram até possíveis de pegar, mas a harmonia não, pois a qualidade da transmissão do rádio era precária. Eu até criava minhas harmonias, mas fui ver um show de outros músicos, com os Borges, e falei: “Meu Deus, faço tudo errado! Preciso começar tudo de novo”. Aí, o Marilton, o mais velho dos irmãos, me falou: “Nada! Você não tem de mexer em nada do que você faz!”. Foi também com eles que eu ouvi pela primeira vez o Miles Davis, o disco era Someday My Prince Will Come. Até hoje não sei por que fiz isso, mas um dia estava com eles, botei o disco do Miles para tocar e tive o ímpeto de levantar e dar um grito: “Isso aí não é trompete, não! Isso aí é minha voz!”. Ninguém riu de mim, ninguém me zombou, e acabei adotando o Miles como meu rei. Comprei tudo quanto é coisa dele, fui aprendendo a lidar com o jazz e descobri a força da música instrumental. Foi aí que comecei a tocar contrabaixo e nasceu o Berimbau Trio, com Wagner e Paulinho Braga.
Brasileiros – Nesse mesmo período, você gravou com o conjunto Sambacana, do Pacífico Mascarenhas. Como surgiu o convite?
M.N. – O Pacífico foi gravar um novo disco, me convidou, e também chamou o Wagner e mais dois músicos do Rio. Os produtores de um festival de São Paulo ouviram a gravação e resolveram me chamar para cantar. Chegando a São Paulo, no estúdio havia uma sala com vários músicos e uma porção de partituras em um canto. Fiquei andando pela sala, olhando disfarçadamente as partituras, até que reconheci uma música do Baden (o violinista Baden Powell). Escondi as folhas e fui lá passar o som com eles. Voltei para Belo Horizonte, e quando mostrei a partitura para os Borges e o Wagner eles ficaram doidos comigo, porque essa música, certamente, estava destinada a alguém. Era Cidade Vazia (de Baden e Lula Freire). Pouco depois, acabei tendo a felicidade de conhecer o Baden.
Brasileiros – Elis Regina o incentivou a participar dos primeiros festivais. Como vocês se aproximaram?
M.N. – Tornei-me amigo da Elis em uma festa no Rio de Janeiro e nos encontramos, pouco depois, em São Paulo. Ela tinha ganhado o festival da Record, com Arrastão (1966), e nos encontramos no corredor da emissora. Hoje, acho graça, mas, na hora, não foi nada divertido. Elis vinha caminhando, e eu, que não queria encher o saco, abaixei a cabeça ao passar por ela. Ela deu uma pisada forte com o tamanco, virou para trás e disse: “Ei, mineiro, não tem educação, não?”. Envergonhado, respondi: “Não Elis, só não queria ser mais um a te encher o saco”. Ela respondeu brava: “Deixe de bobagem! O negócio, aqui em São Paulo, funciona da seguinte forma: de manhã a gente encontra uma pessoa e fala ‘bom dia’, à tarde diz ‘boa tarde’ e à noite diz ‘boa noite’. Simples, assim. Quero que você vá à minha casa mostrar umas músicas suas”. Ela passou o endereço e fui até lá. Era a semana em que Gil chegou a São Paulo e ele também estava lá. Toquei um monte de músicas. Gil costuma dizer que toquei três ou quatro, mas, mentira dele, foram umas 20 e tantas. Cansado, encostei o violão e Elis perguntou: “Você não tem mais nenhuma na manga?”. Aí, lembrei que não tinha tocado Canção do Sal e ela disparou: “É essa que eu quero!”.
Brasileiros – Pouco depois, você se tornou avesso a festivais, mas Agostinho dos Anjos pregou uma peça que seria divisora para a sua carreira…
M.N. – Nessa época, em São Paulo, para cada instrumento tinha uns 20 músicos desempregados, inclusive eu… Teve um dia que fui substituir um rapaz em um bar pequeno, ambiente meio escuro, estava lá, tocando, quando percebi um vulto se aproximar de mim. Acabei a música, e ouvi uma voz dizer: “Ô, bicho, quem é você?”. Foi a primeira vez que alguém me chamou de “bicho”. Era Agostinho dos Santos. Reconheci, imediatamente, pois era fanático, louco pelo Agostinho. Contei para ele que eu era de Minas, conversamos bastante e ele falou para mim: “Em todos os lugares que eu for, a partir de agora, você virá comigo!”. E assim foi. Depois começamos a andar juntos para lá e para cá. Um dia ele chegou na pensão onde eu morava, na rua Marquês de Itu (região central de São Paulo), e falou: “Olha, vai ter um festival internacional de música no Rio. Vai ter gente do mundo inteiro. Você tem de botar alguma música sua lá”. Fiquei um mês discutindo com ele, rejeitando o convite, e ele sumiu. Achei até que ele tivesse desistido. Um dia ele voltou com a seguinte conversa: “Olha, eu vou gravar um novo disco, falei de você para o meu produtor e ele quer três músicas tuas para fazer parte do disco”. Agostinho me levou na casa de um amigo que tinha equipamento e gravamos três músicas: Maria, Minha Fé, Morro Velho e Travessia. Entreguei as gravações e ele sumiu. Agostinho, Elis e o pessoal do Zimbo Trio, que tocava com ela, Amilton e o irmão dele, Adilson (Amilton e Adilson Godoy, respectivamente, pianistas do Zimbo e do Bossa Jazz Trio) eram as pessoas que eu mais me dava em São Paulo. Um dia, eu estava na porta da Record, na saída do programa da Elis, surge ela correndo, pula em cima de mim e diz: “Eu sabia!”. E eu: “Sabia o que, Elis?”. “Que você estaria no festival do Rio!” “Não, como assim, eu não inscrevi música alguma?!”. “Então, tem outro Milton Nascimento andando por aí”, ela ironizou. Pouco depois desci a rua e ouvi uma baita gargalhada. Era Agostinho. E ele já chegou dizendo: “Não adianta, você vai ter de ir! Suas três músicas foram selecionadas e isso só aconteceu, até hoje, com Vinicius de Moraes. O pessoal tá doido para te conhecer. Encontrei um representante do festival e ele disse que você tem de ir para o Rio o quanto antes”. “Mas, como é que vou para o Rio se não tenho dinheiro nem para pegar ônibus aqui em São Paulo?”. Eles pagaram minhas passagens e reservaram um hotel que ficava bem perto do festival.
Brasileiros – E como a coisa se desenrolou…
M.N. – Fui lá conversar com Marzagão (produtor Augusto Marzagão, criador do Festival Internacional da Canção), ele tinha uma secretária e eu disse pra ela: “Preciso falar com o senhor Marzagão”. Indiferente, ela respondeu: “Acho que não vai dar, porque ele está muito ocupado hoje. Talvez você possa deixar um recado e ele combine um encontro”. Daí eu disse pra ela: “Então, por favor, avise a ele que o Milton…”. O Nascimento ela nem me ouviu falar, pois saiu correndo até a sala dele e gritou: “O Milton Nascimento está aí!”. Saíram da sala o Marzagão e todos que lá estavam para me ver e me receber. Fiquei numa tremenda vergonha. Foi aí que eu conheci o Eumir Deodato, que fez os arranjos das três músicas…
Brasileiros – E foi ele quem o convenceu a cantar, não?
M.N. – Eumir me contou depois que quando eles começaram a tocar minhas músicas houve quem dissesse “tira isso daí!”. Alguém foi lá, atendeu o pedido e ele levou as gravações para a casa dele. No dia seguinte, Eumir voltou e falou para o Marzagão: “Mas nunca que você vai tirar essas músicas do festival!”. Ficamos muito amigos e, logo depois, ele me apresentou ao Tom Jobim e vários outros músicos. Dias depois eu estava na casa dele, tocando violão, ele escrevendo os arranjos, e fiz a confissão: “Eumir, o negócio é o seguinte: tá tudo perfeito, mas eu não quero cantar. Queria que a Elis cantasse, mas a Record não deixou. Precisamos pensar em alguém”. Ele rebateu, sem hesitar: “O negócio é o seguinte, digo eu: estou indo amanhã para os Estados Unidos e não vou voltar tão cedo. Resolva agora se vai cantar ou não, pois se você não for cantar eu não vou fazer os arranjos das suas músicas”. Não tive escolha.
Brasileiros – Eumir tinha partido para os EUA, a convite de Luiz Bonfá, e pouco depois convidou você para gravar um disco lá…
M.N. – Sim, mas Tom Jobim também o chamou para fazer os arranjos do disco com Sinatra (o álbum Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim, lançado pela Verve Records). Para mim, foi uma coisa muito maluca, pois “apareci”, em 1967, depois de passar por Minas Gerais e São Paulo, e fui parar no Rio. Quando me dei conta estava nos Estados Unidos, gravando com ninguém menos que Herbie Hancock.
Brasileiros – Foi Eumir que o apresentou ao Herbie? Que lembranças você tem das gravações do Courage?
M.N. – Não, não foi o Eumir. Eu estava no Rio, e alguns músicos falaram: “Olha, o Herbie está na cidade, veio passar a lua de mel, vamos procurá-lo”. Eu reprovei: “Ah, que é isso? O cara vem para cá passar a lua de mel e nós vamos lá encher o saco dele?!”. Dias depois fomos a um lugar em que ele estava tocando piano, com vários músicos, e fiquei meio afastado. Fui convidado para uma canja, criei coragem e comecei tocando Tarde. Herbie me interrompeu com um “espera um pouquinho”, foi buscar um gravador, voltou e disse: “Agora, sim. Vamos nessa! Pode tocar, Milton!”. Toquei Tarde e, depois, Outubro, uma música minha que ele ama. No ano seguinte, estávamos juntos, em Nova York. Eu nem sequer desconfiava que pudesse existir um estúdio como aquele, era de um alemão (o produtor Rudy Van Gelder, da Verve). Uma loucura! Cabia uma banda de fuzileiros navais com uma sinfônica naquele estúdio. Gravamos o disco durante o inverno, e foi tudo muito bonito. O produtor, Creed Taylor (que depois fundou a gravadora CTI Records), me deu a maior força. Eumir também foi muito generoso e tomou conta de tudo.
Brasileiros – E como foi que você e Lô Borges se uniram para compor as canções eternizadas em Clube da Esquina? Aliás, você está com um bottom que reproduz a foto da capa, imagino que deve ser um dos álbuns prediletos de sua carreira.
M.N. – Lô tinha 10 anos e tocava em uma banda que fazia várias versões dos Beatles. O quartetinho dos meninos era muito bom. Eu sempre ia a Belo Horizonte para visitar os Borges. Um dia, quando ele tinha uns 14 anos, cheguei lá e não tinha nenhum dos irmãos em casa. Na hora em que eu estava saindo, chegou o Lô. Disse pra ele: “Que coisa boa te encontrar! Vamos ao botequinho, que eu vou tomar uma batida de limão e você toma um guaraná comigo”. Chegando lá, pedi minha batida e o Lô emendou: “Outra para mim!”. Ele levou aquele tremendo olhar de reprovação, mas disse: “Bituca, adoro as coisas que você faz, sou fã da sua voz, mas tem algo que eu preciso reclamar. Sei bem que você, meus irmãos e seus amigos não gostam de mim”. “Que é isso, Lô? Como assim?!”, disse pra ele. “É isso mesmo. Vocês saem todas as noites, vão para tudo que é lugar, e nunca fui chamado para sair com vocês”, ele desabafou. Olhei bem para ele e falei: “O problema é o seguinte, Lô. Sabe quando foi que eu descobri que você não era mais uma criancinha? Há poucos minutos quando você pediu essa batida de limão”. Ele sorriu, falou que tinha composto algumas canções, que havia escrito umas harmonias, e perguntou se eu não gostaria de ouvi-las. Voltamos para a casa dele e Lô começou a tocar umas coisas muito bonitas. Peguei um violão, que estava ao lado, abaixei a cabeça, fechei os olhos e comecei a tocar com ele uma das músicas. Quando abri os olhos estava a mãe dele (Maria Fragoso Borges), encostada no batente da porta, chorando, emocionada, e o Marcinho escrevendo uma letra. Foi nossa primeira música juntos, Clube da Esquina 2, em homenagem à tal esquina que a vizinhança detestava.
Brasileiros – E como se deram as negociações com a gravadora para lançar o disco?
M.N. – A partir desse dia Lô começou a escrever muitas músicas, até que eu disse a ele: “Vamos para o Rio fazer um disco, Lô”. Lógico, tive de ter uma discussãozinha com a mãe dele, mas o levei para o Rio e compusemos muitas outras músicas. Voltamos a Belo Horizonte, para buscar o Beto Guedes, e um belo dia concluí: “Acho que temos um disco. E vamos dar a ele o nome de Clube da Esquina”. Fui à Odeon, que hoje é EMI, expliquei como pretendia fazer o álbum e ouvi: “Não, de jeito nenhum. Não será aqui que você vai fazer esse disco, Milton!”. Disse a eles: “Ok, se não querem que eu faça o disco por aqui tem muita gravadora por aí. Tchau, para vocês”.
Brasileiros – E como foi que vocês reverteram isso?
M.N. – Tinha um cara na Odeon, Adail Lessa (à época, produtor executivo da gravadora), o apelido dele era “Pai dos Músicos”. Em 1958, João Gilberto, Tom Jobim e Milton Banana foram até a Odeon apresentar algumas canções e os diretores não deram a mínima. Lessa abriu o estúdio, de madrugada, contratou uma orquestra, chamou João, Tom e Milton, e fez a primeira gravação do que seria o compacto de Chega de Saudade e Bim Bom. No dia seguinte ele botou o registro para tocar e falou para os diretores: “Taí o que vocês não queriam gravar!”. Foi ele que me ligou e disse: “Pode mandar todo mundo vir para cá que vou abrir o estúdio para vocês. Tenho certeza de que vocês vão fazer uma coisa linda”. E foi assim que surgiu o disco.
Brasileiros – Seu disco solo posterior, Milagre dos Peixes, foi mutilado pela censura. Como foi enfrentar esses dias sombrios?
M.N. – Foi terrível. Voltei para o Brasil e percebi que vários amigos estavam indo embora, sendo expulsos do País, e pensei: “Não vou sair, vendo tudo o que está acontecendo por aqui. Não posso sair. Se quiserem me mandar embora, então, me mandem, me matem, mas eu não vou sair”. Em 1973, eu tinha duas músicas que queria gravar com o Caymmi e com a Clementina de Jesus, mas era um negócio impossível, porque bastava aparecer o nome Milton Nascimento que a censura vinha e cortava tudo sem ao menos ler a letra ou ouvir a música. Perseguição total. A Odeon chegou a sugerir que eu gravasse outro disco e falei: “Não, o disco vai sair assim mesmo. Quem tiver sensibilidade para perceber o que nós quisemos transmitir vai sentir”. E o Milagre dos Peixes saiu todo mutilado, mas foi sentido do jeito que a gente pretendia. Ao mesmo tempo que cortaram nossas ideias e toda a felicidade que estava sendo para nós fazer o disco todos que o ouviram sentiram o que aconteceu ali. O disco saiu em vários países e o recado foi dado. Então, quem perdeu, no fundo, foram os censores e os militares.
Brasileiros – Mas você sofreu ingerências que foram além da questão artística?
M.N. – Sim, houve muitos episódios. Coisas terríveis, que prefiro nem falar. Não podia conversar com ninguém sobre o que estava acontecendo, pois, para o meu próprio bem, fui recomendado a não contar nada. Para poder continuar cantando, eu tive de me juntar aos estudantes da UNE e sair pelo Brasil afora fazendo o circuito universitário. Tive de sair de cena, por um tempo, uns dois anos, nos quais eu não podia tocar no Rio nem em São Paulo. Foi terrível.
Brasileiros – Foi nesse período que você começou a ter problemas com o álcool?
M.N. – Sim. Nesses 20 anos em que não pude falar e fazer quase nada, a única coisa que me restou foi beber muito. Como é que eu ia viver?! Um dia, eu estava voltando do Jóquei Clube, fui encontrar um amigo meu, e quando estávamos voltando para a Barra da Tijuca vi outros amigos saindo da praia, todos vestidos em roupas coloridas, felizes e, para mim, parecia que havia um vidro escuro que me separava daquela vida colorida. Dei uma volta pela praia e falei para mim mesmo: “Esse pessoal não merece que eu me mate”. Fui para o meu apartamento, e decidi que ia parar de beber. Fiquei três dias trancado em meu quarto, deitado e olhando para o teto. Havia uma senhora, a Maria, que fazia comida para mim, mas eu não queria saber nem mesmo de me alimentar. No terceiro dia, no final da tarde, sentei na cama, estiquei minhas mãos e vi que elas não tremiam. Resolvi levantar e percebi que não iria ficar tonto. Saí do quarto, encontrei a cozinheira e falei: “Dona Maria, tem algo para comer?”. Ela disse: “Graças a Deus, meu filho!”. Saí de casa, de madrugada, e fui para Três Pontas. Quando cheguei, minha mãe estava na janela. Descarreguei minhas coisas, entrei em casa e ela falou: “Deixa tudo aí e me acompanhe”. Atravessei a casa com ela e fomos ao pomar do quintal. Quando eu era pequeno, plantei, com um amigo, uma laranjeira e ela nunca tinha dado frutas. Nesse dia surgiram duas laranjas, e comentei com minha mãe: “Caramba, até que enfim essa porcaria resolveu dar um presente para a gente”. Ela olhou bem para mim e falou: “É porque você parou de beber, Bituca”. Uma coisa maluca, pois ela ainda não sabia o que estava acontecendo. Sempre tivemos uma ligação muito forte.
Brasileiros – Voltando para sua discografia, o disco posterior ao Milagre dos Peixes, Native Dancer, foi feito com Wayne Shorter, que recentemente completou 80 anos. Vocês ainda são amigos. Como foi que se aproximaram?
M.N. – Somos grandes amigos. Em 1973, estávamos fazendo uma série de shows na Lagoa Rodrigo de Freitas e ele estava na cidade se apresentando com o Weather Report, no Theatro Municipal. Soube que eles perguntaram onde estava o Milton Nascimento e pedi para que dissessem pra eles que eu não estava no Rio. Acontece que a mulher do Wayne era portuguesa, um belo dia els abriu o jornal e lá estava algo como “Milton Nascimento e Lô Borges apresentam no Rio de Janeiro o repertório do novo disco, Clube da Esquina“. Ela saiu correndo pelo hotel, a procura de Wayne, e disse: “Veja isso, Milton tá no Rio, esses filhos das putas estão enganando a gente!”. Na mesma noite eu estava me preparando para entrar no palco e alguém veio me dizer: “O Wayne Shorter está aí e quer te ver”. Tímido demais, disse: “Então, hoje não vou nem subir no palco”. Não bastasse ser o Wayne Shorter, ele tinha tocado com meu maior ídolo, Miles Davis. Entrei, fizemos o show e fui encontrar o Wayne. Depois desse primeiro encontro aconteceu um lance curioso, eles diminuíram o tempo do show deles no Municipal e deixaram um carro escondido na porta dos fundos. Acabava o show do Weather Report e não tinha nem bis, pois eles pegavam o carro e saíam correndo para ver ao menos um pedaço do nosso show. Dois anos depois fizemos, nos Estados Unidos, o Native Dancer. Ele me perguntou se eu queria convidar algum músico brasileiro e decidi levar o Wagner e o Robertinho Silva.
Brasileiros – A superação do alcoolismo coincidiu com a reabertura política quando você compôs Coração de Estudante, que se tornou um hino das Diretas Já! Como surgiu a canção?
M.N. – Silvio Tendler fez um documentário chamado Jango e fui convidado para compor a trilha, com o Wagner. Quando o filme ficou pronto Silvio nos chamou para assistir e foi aquele negócio que mexeu demais com a gente. O final mostra o Jango numa tremenda solidão, de muleta, em sua fazenda, e essa cena me fez lembrar a época em que eu andava com os estudantes. A música que tocaria na cena não tinha ainda o nome Coração de Estudante. Dias depois recebi o telefonema de um amigo que estava em Roma e estava mal, não conseguia se concentrar e estudar direito por lá. Disse a ele para vir passar uns dias no Brasil, porque aqui ele conseguiria se isolar e mergulhar nos estudos. Reservei um quarto, um escritório, e fiz de conta que ele não existia. Um dia ele chegou tão cansado que sentou na cama e caiu duro. Peguei um caderno, subi no segundo andar da casa, e fiz a letra, de uma só tacada. Terminada a letra, afundei no sofá e, ao olhar para cima, vi uma planta que tinha folhas semelhantes a corações e que, por conta disso, tem o nome de coração de estudante. Foi aí que tive um estalo e pensei: “É isso. Agora sim a música está pronta!”.
Brasileiros – Quase 30 anos depois, insurreições históricas acontecem no País. O que pensa dessas manifestações, Milton?
M.N. – Tomei um susto, que depois se transformou em felicidade. Nunca pensei que algo assim fosse acontecer tão cedo no País. Ver jovens, famílias, crianças, pessoas mais velhas, toda estudantada indo para as ruas exigir aquilo de que têm direito… Para mim, foi uma felicidade enorme poder ver isso acontecer. No auge das manifestações houve um show meu em que, no meio de uma música, um rapaz invadiu o palco e colocou uma bandeira do Brasil nas minhas costas. Foi linda a reação do público. Pouco depois jogaram uma camiseta no palco, sem que eu percebesse. Quando chegou o momento do bis vieram mostrá-la para mim. Na frente, havia a frase “Não é só pelos R$ 0,20” e atrás “Milton Nascimento”. Vesti a camiseta e cantei mais três músicas.
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