Arquiteta e urbanista pela USP, especialista em questões de meio ambiente, Marussia Whately no fim de maio preparava as malas, acertando os detalhes finais para deixar Belém do Pará, onde viveu nos últimos dois anos e meio e trabalhou em projetos ligados à sustentabilidade urbana. Marussia volta para a sua São Paulo natal com o objetivo de assessorar o Instituto Socioambiental, o ISA, como é conhecida a ONG de onde saíram vários auxiliares do Ministério de Marina Silva. O foco será acompanhar de perto, como fez em 2003 também para o ISA, a “urgentíssima” discussão sobre o Sistema Cantareira, responsável por abastecer de água 14 milhões de pessoas nas regiões metropolitanas de São Paulo e Campinas, os dois maiores polos industriais do País.
O adjetivo escolhido não é alarmismo de ambientalista radical. Um levantamento recente da comissão criada para acompanhar a crise, formada por especialistas do governo paulista e do governo federal, informava no início de abril que era alta a probabilidade de a água simplesmente acabar ainda em 2014, mantido o ritmo de consumo e chuvas.
Quando os primeiros torcedores estrangeiros chegavam ao País para a Copa, o Cantareira estava com 25% de capacidade, incluído na conta o “volume morto”. A tendência de queda se mantinha firme, a despeito do aumento da nebulosidade em maio. Após dois meses de obras, a extração da água do fundo das represas expôs a falta de opções de curto prazo do governo Geraldo Alckmin, que inaugurou as bombas flutuantes de sucção como se fosse a solução de todos os males.
Especialistas próximos da Administração paulista consideraram um erro a inauguração, por dar a entender que o estoque de água, a partir do uso do volume morto, voltará a um nível seguro. Também é consenso que o racionamento deveria ter começado em dezembro de 2013, quando haveria tempo de otimizar as reservas, a ponto de escapar da falta de água. Em ano eleitoral, contudo, a opção do governo Alckmin foi arriscada: contar com chuvas fora de hora, a partir de maio, quando tradicionalmente começa no Sudeste o período seco.
O iminente colapso do Cantareira também expôs os conflitos entre os Estados de São Paulo e Minas Gerais, ambos governados pelo PSDB. Para o ex-secretário de Meio Ambiente de São Paulo Fabio Feldmann, hoje responsável pela área de meio ambiente do programa de Aécio Neves, “os governos, principalmente o paulista, foram negligentes com a crise”. Chamando atenção para as condições extremas do clima, responsáveis por “antecipar” o problema da escassez em alguns anos, e para a necessidade de “repensar a governança”, Feldmann também critica a divulgação do nível ampliado dos reservatórios, de 8% para 28%, nos primeiros dias de volume morto. “Essa campanha da Sabesp me parece uma loucura, sinaliza que a crise está sob controle, quando não está”, diz Feldmann. “Temos uma situação que não será resolvida neste ano e poderá se agravar a tal ponto que tenhamos de ir para um racionamento radical” (leia a íntegra da entrevista).
A essa altura parecem restar poucas alternativas, inclusive porque o desequilíbrio do Cantareira não é recente. Inaugurado em 1976, o sistema tornou possível à Grande São Paulo importar água de outras regiões, o que faz em quantidades cada vez maiores. Situada na bacia do Alto Tietê, às margens dos poluídos Pinheiros e Tietê, a região metropolitana tem de “roubar” uma parcela da vazão dos rios Piracicaba, Capivari, Jaguari e Jundiaí, que também abastecem a região metropolitana de Campinas e algumas pequenas cidades do sul de Minas. A água desviada segue pelos canais subterrâneos que ligam as represas onde a água fica armazenada. E de tempos em tempos, o estresse hídrico ameaça dar as caras.
A familiaridade de Marussia Whately com o tema vem do momento crítico anterior, em 2003, quando houve um período de estiagem forte. Então, o primeiro governo Lula aproveitou o momento para rediscutir e renovar a outorga federal que estabelece os direitos e deveres da Sabesp, a empresa de saneamento controlada pelo governo paulista, e o Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam), representante de Minas, de onde sai 70% das águas do Cantareira. A água, após percorrer cerca de 100 km a partir da cidade de Extrema, chega às represas e de lá para a Estação de Tratamento Guaraú, na região norte da capital paulista. Despoluída e tratada, é então distribuída.
Foram vários os compromissos assumidos pelo governo paulista no momento da renovação da outorga, com o objetivo de aos poucos otimizar o Cantareira, reduzindo o volume de água perdida no transporte, mais de um terço do total. Muita coisa, contudo, deixou a desejar. E a dependência, em vez de cair, aumentou. “O que a Sabesp fez nesses dez anos foi muito pouco, como diminuir as perdas de 40% para 30% aproximadamente”, diz a assessora do ISA. Por outro lado, aumentou a quantidade de consumidores. A opção preferencial do governo de São Paulo foi buscar água mais longe, ir atrás de outras represas, agora no Vale do Ribeira, cujas obras devem ser concluídas até 2018, mas também no Paraíba do Sul, o que criará problemas com o Rio de Janeiro. A conservação das águas também é problemática. As represas estão mal cuidadas, com pouca mata ciliar, o que prejudica o armazenamento.
O governo paulista teria sido pego de calças curtas por não contar com tamanha estiagem, a maior desde o início da década de 1950. O verão de 2014 foi atípico, com pouca chuva e muito calor, o que aumentou a evaporação e o consumo. Do ponto de vista da saúde pública, o uso do volume morto para consumo humano também é questionável. Especialistas apontam a necessidade de exames prévios para atestar a sua qualidade. Quanto mais profunda for a exploração, maior será a concentração de poluentes tóxicos, inclusive metais pesados, agrotóxicos e descargas industriais.
A Sabesp informou que terá de gastar 40% além do custo normal para tratar o volume morto. O processo deixará a água com um gosto parecido com a da Guarapiranga, por causa principalmente do cloro a mais. Os consumidores começam a notar a diferença de qualidade, muitos deles atingidos pelo racionamento silencioso de algumas horas por dia, principalmente na periferia paulistana.
Os conflitos entre São Paulo e Minas Gerais tendem a se acirrar. Em dezembro passado, a renovação da outorga assinada em 2004 começou a ser discutida. Minas exige a redução da vazão liberada para a Sabesp, que deseja aumentá-la. Exige ainda que o Estado de São Paulo pague pelos “serviços ambientais” prestados ao aceitar o desvio de suas águas.
“Em dezembro de 2013, apresentamos a nossa demanda por água para a região das cidades de Extrema, Capivari, Toledo e Camanducaia, pois a água que sobra a montante do Cantareira não atendia a nossa demanda. Minas Gerais não aceitava a vazão (proposta por São Paulo), quando as discussões coordenadas pela ANA foram suspensas por causa do agravamento da crise. Chegamos a um impasse”, diz Marilia Carvalho de Melo, diretora do Igam.
Há pouca água disponível em São Paulo porque os rios que passam pela cidade, como o Pinheiros, o Tamanduateí e o Tietê, estão poluídos há décadas. Há 40 anos, quando os reservatórios e canais do sistema foram construídos, abriu-se mão de usar as águas próximas, ao contrário do que fizeram outras grandes capitais, como Londres e Paris, que conseguiram despoluir seus rios.
Ocorre que agora o avanço desordenado da indústria começa a chegar também a essas regiões mais distantes, replicando os mesmos problemas de gestão da água. Extrema, uma cidade-chave na produção de água para o Cantareira, ilustra bem outro aspecto dos conflitos entre São Paulo e Minas, no caso um capítulo da chamada “guerra fiscal”, com impacto direto na qualidade das águas.
Situada a 3 km da fronteira dos dois Estados, Extrema fica a pouco mais de 100 km de São Paulo e Campinas, dois dos maiores mercados consumidores do País. Mais de uma década atrás, o governo mineiro criou leis de incentivo para estimular a economia. E, por causa da proximidade com o mercado paulista, Extrema passou a ser vista como ponto estratégico. Instaladas ali, as indústrias pagariam menos ICMS do que os concorrentes paulistas.
A generosidade tributária “deu certo”, do ponto de vista estritamente econômico. Atraiu empresas como Kopenhagen, Bauducco, Johnson&Johnson e Panasonic. Trouxe fornecedores da indústria automobilística, fabricantes de eletrônicos, cosméticos, embalagens, além de uma lavanderia industrial. O PIB per capita da cidade chegou a R$ 47 mil, o dobro da média nacional, e Extrema tornou-se o segundo polo industrial mineiro, atrás apenas da tradicional Betim.
O sucesso econômico atraiu milhares de migrantes, satisfeitos com a possibilidade de receber salário de cidade grande e ter as facilidades e a qualidade de vida do interior. A população passou de 20 mil para os atuais 30 mil habitantes em dez anos, formando com as vizinhas e também mineiras Camanducaia, Itapeva, Sapucaí-Mirim e Toledo uma microrregião de mais de 70 mil cidadãos, ante 45 mil de duas décadas atrás.
O crescimento, como é regra na história das cidades brasileiras, deu-se sem o devido planejamento público ou investimentos em infraestrutura. Dessa região saem nada menos que 70% das águas que abastecem a Grande São Paulo (consumidas por nove milhões de paulistanos, principalmente na Zona Oeste da capital), além de cinco milhões espalhados por cidades como Campinas, Jundiaí, Limeira, Amparo e Bragança Paulista, ou 22% do PIB do País.
Apesar de distante do noticiário, concentrado desde janeiro na perspectiva de o Cantareira secar, diante da estiagem histórica, a qualidade da água consumida nessas cidades deteriora-se com o crescimento econômico desordenado. Segundo um levantamento recente do Igam, a piora da água que abastece o sistema tem sido acelerada nos últimos anos. De acordo com a nota técnica enviada pelo Igam à ANA, entre 2011 e 2013 mais que quadruplicou o percentual de amostras de água consideradas ruins na bacia Piracicaba Capivari Jundiaí.
O quadro das causas apontadas pelo instituto mineiro assusta: erosão, ausência de matas ciliares ao longo da bacia, esgoto in natura nos córregos e rios, além de carga sedimentar carreada, esgoto industrial e resíduos de agrotóxicos. “Em alguns pontos, o lançamento ocorre em tamanha quantidade, quando comparado à vazão do rio, que é possível sentir o odor semelhante ao de esgoto”, anota o documento. E acrescenta: “O crescimento populacional aumenta a demanda de água para o consumo humano, consequentemente aumenta a demanda de irrigação para a produção de alimentos, dessedentação de animais, indústria e comércio”. E quanto mais próximo do sedimento acumulado no fundo das represas, maior o risco. “O sedimento traz uma carga de poluição histórica de todos os rios que desaguam nele”, diz o Igam.
Diminuir as perdas de água é um dos pontos mais críticos, segundo os especialistas, que estimam chegar a 40% o total perdido, no Cantareira. A Sabesp não divulga o percentual exato do sistema, mas apenas a média estadual, hoje de cerca de 30%, sabidamente menor.
Mas não é por falta de caixa que a situação chegou a esse ponto. A Sabesp, empresa de economia mista administrada pelo governo paulista, com ações nas bolsas de São Paulo e Nova York, lucra R$ 2 bilhões em média ao ano. Detalhe: chega a distribuir mais lucros a seus acionistas do que exigem as normas vigentes na Bolsa de Valores paulista, daí serem muito bem vistas entre os investidores. O balanço está no azul, mas descobrir quanto foi investido na ampliação da oferta de água do Cantareira não é simples. A Sabesp divulga apenas seu número agregado de investimentos. Procurada por Brasileiros, a empresa preferiu não se pronunciar.
Talvez, a via judicial, no entanto, faça a Sabesp mudar de postura. O Ministério Público apura as responsabilidades pela crise, com foco em denúncias de corrupção na empresa, mas também na análise da qualidade da água oferecida. No caso dos desvios, executivos da Sabesp são investigados por supostas ligações com prestadoras de serviços da companhia. Os promotores suspeitam de contratos que somam R$ 1,1 bilhão.
Outro problema tão grave quanto tem a ver com o tratamento do esgoto gerado. Apesar de metade do faturamento da Sabesp vir de tarifas relativas ao esgoto, nesse item a companhia de saneamento se limita quase sempre a drenar os dejetos residenciais e de empresas, jogando-os nos rios mais distantes. Metade dos dejetos segue esse caminho.
A cobrança pelo uso das águas dos rios não deslancha, como gostariam os especialistas. O lobby do agronegócio freia a adoção da cobrança na irrigação, que responde por mais de 30% da demanda paulista. A medida, devidamente regulamentada, parou no gabinete de Alckmin. O enquadramento dos rios também foi engavetado, mas definiria os usos possíveis dos cursos de água do estado.
Enquanto isso, os consumidores aumentam a procura por água mineral, cujo mercado crescerá 30% em 2014, devido à Copa, mas também por causa da crise. Ou procuram fontes de poços artesianos, como faz Rogério Inácio de Sá Morais, 92 anos, que há 20 prefere ir a uma fonte na Zona Sul, em vez de consumir a água da Guarapiranga.
Deixe um comentário