Quando eu era pequeno, a TV Record, a Record de Paulo Machado Carvalho, promovia nos três dias de carnaval um tal de “Concurso de Resistência Carnavalesca”.
Em um ringue montado no Ginásio do Ibirapuera, em São Paulo, homens e mulheres, jovens e velhos, com seus números pendurados no peito e nas costas, tinham de dançar durante os três dias, dia e noite, sem parar, ao som de animadas marchinhas carnavalescas.
Dentre eles circulavam fiscais para verificar quem estava dançando e quem apenas se arrastava, fingindo dançar. E esses que não dançavam eram eliminados. E aquele que ao fim de 72 horas ficasse de pé, mais morto do que vivo, levava o prêmio de alguns cruzeiros.
Maratona semelhante foi retratada no filme estrelado por Jane Fonda, They Shoot Horses, Don’t They? (A Noite dos Desesperados), cuja história se passa durante a depressão de 1929 nos Estados Unidos.
Pois a mente doentia de Eduardo Cunha decidiu montar um “Concurso de Resistência Carnavalesca” em plena Câmara dos Deputados para cumprir a exigência de um determinado número de sessões de debates que antecedem a votação do impeachment.
Em vez de realizar as sessões de forma civilizada, nos horários de expediente, com serenidade, às claras, com debates consequentes, dignos do Parlamento brasileiro, em horários compatíveis com o quotidiano das pessoas normais, Cunha determinou que invadissem a madrugada, como num concurso de resistência carnavalesca, para serem assistidos apenas por aqueles que têm insônia, que são notívagos, que não têm o que fazer no dia seguinte, talvez para esconder o teor absurdo dos discursos de seus aliados, totalmente fora de contexto e sem obedecer ao Supremo Tribunal Federal que em sua última reunião extraordinária determinou que os assuntos debatidos deveriam se limitar aos dois pontos nos quais se baseia o pedido de impeachment.
Nessa noite dos desesperados desfilaram deputados tais como Stefano Aguiar (PSD-MG), que usou seu tempo para brindar os brasileiros com um discurso esdrúxulo, do qual destaco alguns trechos:
“Tentaram tirar ‘Deus seja louvado’ das nossas cédulas”!
“Jesus Cristo é o senhor do Brasil”!
“O meu filho de oito meses, o Lorenzo, não está entendendo nada do que está acontecendo hoje, mas um dia ele vai ver a filmagem dessa noite em que estou declarando o meu voto pelo impeachment e vai ter orgulho do seu pai. E também meus primos, o João… o Mário Júnior… o Artur… que representam as crianças deste País…terão orgulho dos parlamentares que se levantaram contra esse escândalo, contra esse absurdo…muitos não dizem o que eu vou dizer aqui… Deus não está morto! E ele vai trazer uma grande mudança para esta nação! E ele está por vir! Vai chegar logo”!
Outro aliado de Cunha, Alex Canziani (PTB-PR) tentou mostrar erudição:
“Não há nada tão forte como uma ideia cujo tempo chegou. Victor Hugô (sic), um poeta escritor francês disse essa frase”.
O deputado Mauro Ferreira, do PMDB falou numa língua que lembra remotamente o português:
“Daqui a 38 horas nós vamos dar início para a esperança do povo brasileiro! Governo Lula e governo Dilma foi marcado (sic) por enganação, tapeação e ilusão. Nós vamos votar pela aquelas pessoas (sic) que foram enganadas. Pela aqueles (sic) dez milhões de desempregados! E nós vamos precisar de três instrumentos. O primeiro instrumento é Jesus”!
E continuou:
“O Brasil está de olho em nós! Nós não podemos virar a costa (sic) para o povo brasileiro! Aqueles que ainda estão indeciso (sic), vamos pensar no povo brasileiro! Vamo (sic) tirar essa quadrilha do governo! Só de tirar a Dilma, só de tirar esses ministro (sic) incompetente nós já vamos ter no outro dia um povo feliz! Um povo alegre! Porque ninguém mais aguenta ouvir essa palavra: Dilma! Lula! E PT! E também PCdoB, que apoia esse povo que está aí. E quero dizer ao MST que estão (sic) ameaçando as pessoas, inclusive deputados aqui pedindo ‘vamos fazer isso, vamos fazer aquilo’. Vocês não vão, não! Que Deus está acima de tudo e vocês não são tão macho (sic) não, o povo brasileiro é mais valente, é mais homem (sic) que vocês que andam roubando o dinheiro público, usando aí pra fazer essas baderna (sic)”!
Um dos mais fiéis componentes da tropa de choque de Cunha, Carlos Marum (PMDB-MS) mostrou toda a sua falta de respeito, inclusive para com as freiras:
“Nobres pares que aqui se encontram, população brasileira! Faço questão de usar a palavra nessa hora já adiantada para tranquilizar o povo brasileiro! Minhas palavras são palavras de tranquilidade! A tal reação do governo tão decantada não existe! O tiro de canhão é uma bala de festim! Atrás dessa fumaça não tem fogo! Isso é cabelo de freira: muita gente acha que existe, mas ninguém vê”!
E foi em frente, sempre aos berros:
“Essa reação é o grito dos desesperados! É mais uma tentativa desse governo nefasto! De enganar o povo brasileiro! E por que? Porque? Porque o PT está enganado! Dilma está enganada, Lula está enganado! Imagina a tristeza do Lula procurando os 300 picaretas que ele disse existirem nessa casa! Chamando lá pro quarto do hotel… uisquezinho na mesa… vai, é verdade, vai conseguir adquirir um ou dois menos fortes de caráter, mas não vai passar disso. Esse jogo, meus amigos, já está jogado. E vocês sabem por que? Porque essa Casa não está à venda! Nós aqui representamos o povo brasileiro! E o povo brasileiro é um povo digno! E nós também somos dignos! Outra coisa: não adianta querer ficar comprando ausência! Não adianta ficar querendo comprar fugas! Que essa casa não é uma casa de covardes”!
Intitulando-se representante dos fumicultores, Sergio Moraes (PTB-RS) extrapolou todos os limites da verdade e do bom senso:
“Muitos pensam que esse dinheiro desviado todo foi para levar para o bolso da quadrilha petista! Não foi, não! Foi para treinar guerrilheiros! Já começou na época do desarmamento quando tentaram desarmar a população brasileira”!
Sempre à margem do que estava em debate, ele prosseguiu, também citando freiras, curiosamente, como o colega que o antecedeu:
“Ontem à tarde foi preso pela Polícia Rodoviária de Goiás ônibus trazendo bolivianos, quadrilheiros, bandidos que estão dentro desses ônibus indo para o Brasil para enfrentar nosso povo de bem. Vou mais longe! Essa quadrilha que está presa, que foi ontem, não é freirinha que está vindo da Bolívia, não! Não são pessoas de bem, porque as pessoas de bem da Bolívia, com certeza, também não estão concordando com esse golpe que está tentando dar aqui no país”!
Agressivo e demagogo, como a maioria dos aliados de Cunha, prometeu enfrentar os petistas “a tapa”:
“Se nós não tiver força (sic) para derrubar a presidente nosso povo vai estar na mão de uma quadrilha que não pensa apenas em ficar no poder, pensa em transformar nossa nação com o mesmo regimento de Cuba! Cuba é aonde o povo vive igual, mas vive igual na miséria! Nós não queremos viver igual Cuba! E não pensem que estão me assustando com gritos, com bandeiras vermelhas, com foices e facãos (sic). Nós não temos medo, não! Nós vamos enfrentar esse povo agora no domingo. Eu represento os meus fumicultores, pequenos produtores da mão calejada que toca (sic) a riqueza desse país! Nós não temos medo, não”.
Estranhamente, fez questão de dizer, como se precisasse, que não apoia Dilma:
“Quero dizer àqueles que de algum modo possam pensar que eu estaria do lado da Dilma, esqueçam, esqueçam porque eu sou homem de posição porque conheço e sei aonde aperta o sapato. Então, chega de corrupção! Nós vamos ter que fazer uma limpa, uma faxina”!
E partiu para a agressão:
“Vou encerrar dizendo que realmente o plano começou em 2005 quando começou o desarmamento, ali já estavam pensando nesse dia, queriam nossa gente desarmada. Mas eu quero dizer ao pessoal do PT que está nos assistindo: o nosso povo não precisa de arma, vai dar de tapa em vocês”!
Esse é um pequeno resumo do que a TV Câmara transmitiu, na madrugada de sexta para sábado, para todo o País à guisa de debate político.
Além da falta de decoro, do despreparo, da grosseria, dos atentados à língua portuguesa, das mentiras saltou aos olhos que os aliados de Cunha já perceberam que seus votos escorrem pelas mãos.
Apesar de tantos partidos terem fechado questão a favor do impeachment isso não significa que todos seus deputados vão obedecer. E a forma mais prática de desobedecer é faltar no dia da votação.
Não é o governo que precisa de 171 votos; é a dupla Cunha-Temer que necessita de 342. Ou seja: se comparecerem 400 deputados para votar (ao menos 50 já se sabe que vão faltar) e o governo, no pior dos casos, tiver apenas 100 votos, o impeachment não passa porque, matematicamente, Cunha e Temer vão ter apenas 300.
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