“A franqueza é sempre revolucionária”, disse o assessor especial da Presidência da República, Marco Aurélio Garcia, usando uma frase do filósofo italiano Antonio Gramsci (1891-1937), na abertura de seu discurso no 5º Congresso Estadual do Partido dos Trabalhadores, no final de maio. No entanto, se a frase original de Gramsci – “a verdade é sempre revolucionária” – fosse utilizada, não alteraria o sentido das palavras ditas por Garcia nos 20 minutos e 31 segundos em que tentou atrair a atenção dos pouco mais de 150 presentes no encontro, na quadra dos bancários, na Sé, Centro de São Paulo.
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Marco Aurélio Garcia criticou dirigentes petistas “que colocam os interesses na frente das ideias”, a falta de compreensão do partido com as manifestações contrárias do início do ano, a falta de diálogo com as pessoas que ascenderam a novas faixas de consumo no País e com os movimentos sociais, base histórica do partido mesmo depois da chegada ao poder, em 2002. Admitindo a gravidade de sua fala, afirmou que o período atual do Brasil lembra algo dos últimos momentos do governo do presidente chileno Salvador Allende, quando, exilado no Chile, se deparou com cartazes em apoio aos socialistas com a mensagem: “Pode ser um governo de merda, mas é o nosso governo”. Depois, diante de uma plateia mais atenta, tentou consertar: “Esse governo não é nem um governo de merda. É um bom governo e, mais do que isso, é o nosso governo”.
As intervenções dos membros das correntes do partido, após o debate, também refletiram a pluralidade de análises sobre a crise em que vive o PT. Júlio Turra, diretor nacional da CUT, usou o microfone para pedir mudanças na forma de filiação de militantes. Um integrante da corrente Ação Petista reclamou da omissão da diretoria perante os presos do partido, o último deles o tesoureiro João Vaccari Neto. Houve quem defendeu o socialismo, outros se lembraram das dificuldades de coalizão com o PMDB e todos terminaram suas falas pedindo, mecanicamente, a saída do ministro da Fazenda, Joaquim Levy.
Garcia, por sua vez, coloca a culpa pela crise do partido, “a pior da história”, em uma série de fatores.
Logo após o debate, ele tentou elucidá-los à Brasileiros.
Brasileiros – É possível afirmar convictamente que este é o pior momento da história do partido?
Marco Aurélio Garcia – Acho que é a maior e a mais grave crise, pelo fato de, há 35 anos, virmos numa linha, grosso modo, ascendente. Podem ter acontecido pequenos períodos de descenso, mas ao fazer um retrospecto da nossa história, é possível ver que essa linha é sempre ascendente. Agora estamos em uma situação que nunca tínhamos visto. Em primeiro lugar, por causa de um grande comprometimento da nossa base, do ponto de vista institucional, de sustentação do governo. Em segundo, estamos enfrentando uma crise econômica que é mais grave na sua versão do que na sua realidade, mas em economia a versão conta tanto ou até mais do que a realidade. E, em terceiro lugar, o fato de que essa direita que sempre existiu – não acho que seja uma nova direita – mobilizou fortes setores para se manifestar publicamente contra o governo depois de uma vitória difícil que tivemos em outubro, mas de qualquer maneira, significativa.
As manifestações vieram logo após as eleições.
Não acho que as pessoas que estão nas ruas sejam de direita, mas elas foram completamente mobilizadas pela direita e até, em grande medida, com palavras de ordem que foram criadas pela direita. Hoje, a situação está um pouco diferente. Aquele ímpeto que a extrema direita teve em um primeiro momento já não existe. Eles não têm projeto, mas existe um número apreciável de pescadores de águas turvas que estão tentando usar esse momento de desestabilização em proveito de posições que não são sequer nacionais, mas de natureza grupais e corporativas. Por essa razão, acho que o elemento fundamental que temos é o de tentar estabilizar um pouco a crise fiscal, mas ao mesmo tempo essa estabilização não pode ser somente uma aposta no êxito que essas medidas terão. Precisam ser também um reequilíbrio das medidas, porque senão podemos ganhar apoio de setores financeiros do andar de cima e perder esse apoio dos setores de baixo.
Como a presidenta está lidando com as críticas internas, principalmente pela indicação de Joaquim Levy?
Não tenho conversado muito com ela sobre isso. Converso mais sobre os temas da minha área específica. Acho que ela, de qualquer maneira, tomou uma decisão em função de critérios políticos, no sentido de garantir o que considerava a melhor solução para a estabilização fiscal do País. É óbvio que ela teria outros nomes para propor à equipe econômica, mas você sabe que política não é uma coisa só de preferências. Para ter preferências, precisa ter uma aprovação de forças favoráveis. Não quero entrar em mais detalhes porque acho que, sobretudo em regimes presidencialistas, essas são escolhas muito pessoais.
Há um caminho para que o PT retome o rumo original? Muita gente fala em voltar a dialogar com movimentos sociais.
Essa fórmula é óbvia. Aliás, nunca deveria ter deixado de conversar com os movimentos sociais porque eles fazem parte do PT, que é um partido de esquerda diferente. Como escrevi certa vez, o PT tem um caráter “movimentista”. Aliás, os momentos de crise podem surgir se ele não estiver vinculado, mas não é uma panaceia. Em segundo lugar, acho que o PT tem um déficit de elaboração muito grande hoje. Nesse particular, é claro que a elaboração não é apenas resultado da ação de intelectuais, daqueles que se dedicam a pensar de forma mais sistemática e continuada sobre os problemas do País, mas é óbvio que todos esses intelectuais – e falo de forma geral, envolvendo também líderes sindicais, camponeses, etc. – precisam ter uma participação decisiva. Nós perdemos isso. Há uma crise de direção do PT? Sem dúvida nenhuma! Perdemos um pouco os contatos com a sociedade, deixamos de elaborar, e ainda passamos por um processo de burocratização. No Congresso, vimos várias intervenções contra parlamentares que se isolaram do partido, de diretores, essas coisas.
Hoje o PT está totalmente desconectado desses movimentos?
Não. Se você conversar com as pessoas que estão aqui ou vir uma greve, como a dos professores em São Paulo, por exemplo, vai notar que a “petezada” está toda lá. E isso se verifica em muitíssimos outros movimentos sociais. Vamos ter claro o seguinte: por alguma razão que não sei explicar, ainda que tenha algumas suspeitas, a situação do PT em São Paulo é mais difícil. Quem tem participado de outros encontros em outras partes do País tem uma opinião muito mais otimista: há mais conexão com os movimentos sociais, há mais participação política, enfim.
Algumas pessoas alertaram sobre a necessidade de um mea culpa do partido. É uma necessidade do partido para melhorar a imagem?
Mas o que é um mea culpa? Em primeiro lugar: para fazer isso, precisamos ter uma análise profunda do que ocorreu e do que está ocorrendo no PT. Não acho que seja o caso de jogar ninguém ao mar. Já dissemos algumas vezes que não queremos mais receber financiamento empresarial, isso é uma mea culpa. Talvez por ser ateu, não gostaria que esse mea culpa tivesse um caráter de confissão. Sofremos um processo maligno de criminalização. Ontem (23 de maio, abertura do 5o Congresso, em São Paulo), Ruy Falcão mencionava isso: “Quantos tesoureiros de outros partidos receberam dinheiro de todas as empresas que estão aí? Quem foi preso? O Vaccari!”. Quando nós dissemos que não queremos mais financiamento empresarial, estamos fazendo um mea culpa, ou seja, estamos dizendo que foi um erro receber dinheiro delas. Observe o seguinte: em nenhum momento se disse que qualquer dessas pessoas que estão sendo indiciadas, denunciadas, acusadas e condenadas pegaram dinheiro para uso próprio.
Foram para campanhas.
Pode ser caixa dois, campanhas, essas coisas. Não estou dizendo que isso seja bom, mas não temos nenhum caso de uso de dinheiro para fins próprios. Nenhum! Se tivesse, eu seria o primeiro a voar no pescoço. Nenhum caso de enriquecimento próprio. Ao contrário: alguns dos que foram indiciados, condenados e cumpriram penas estão em situação financeira muito difícil. O senhor Pedro Barusco, que confessou ter roubado R$ 98 bilhões, disse que deu 2% ou 3% para o PT ou não sei para quem. Eu quero saber: e o resto? Tanto, que ele vai devolver. Se ele vai devolver é porque não passou adiante esse dinheiro. Estamos sofrendo há muito tempo uma fortíssima campanha, que entendo perfeitamente quais são os objetivos. O PT incomoda muita gente no Brasil.
O senhor fala da mídia?
Da mídia e de outros setores. Não é um problema de criminalizar A, B ou C, mas de criminalizar todos. Você vê, eu sofro hostilidade. Sou uma pessoa mais ou menos pública e sofro hostilidade. Sofri na rua esses dias. Provavelmente, se eu sair na rua depois desta entrevista, vou voltar a sofrer.
Não consigo lembrar, depois do período militar, de um momento do País em que ser de um partido é suficiente para ser hostilizado na rua. Isso não é grave?
Pois é. Mas por que eu sou hostilizado? Não existe nenhuma acusação contra mim de caráter jurídico. É uma generalização por ser do PT. O que está acontecendo é que um setor de direita – que existiu, que existe e que existirá até que este País mude – não se conforma com o PT. São os mesmos caras que, em privado, dizem que não gostam de negros, de nordestinos, que batem na mulher e fazem piadas ridicularizando homossexuais. No fundo, é gente que ainda não se conformou ainda com a abolição da escravidão.
O senhor reclamou recentemente da falta de comunicação do PT. Ainda dá tempo de resolver?
É uma das coisas que deixam siderado qualquer estrangeiro que chega aqui e se dá conta de que não há um jornal, uma rádio, uma televisão, uma revista que tenha uma visão equilibrada sobre a política brasileira. Qualquer país tem vários jornais equilibrados, onde a liberdade de imprensa é absoluta. No México, tem um jornal de esquerda muito bom, o La Jornada. Na Argentina, tem o Página 12. Enfim, todos os países têm um espectro sofisticado de imprensa, mas no Brasil ela é monocórdia.
Alguma possibilidade de revisitar a coalizão com o PMDB, dadas as dificuldades com Eduardo Cunha e Renan Calheiros?
Acho que é uma questão mais sofisticada e mais complexa. Fizemos uma aliança de governo com o PMDB e com outros partidos. Essa aliança sempre teve problemas. Lula, quando foi eleito, tinha o PMDB como apoiador do candidato da situação. No entanto, ele teve apoio de um setor expressivo do PMDB e governou por um tempo sem esse partido. Depois, teve um pacto de governabilidade, ainda que não fosse todo o PMDB. Acho que um dos erros dessa aliança é que não formalizou o seu conteúdo. Como esse governo atual tem objetivos de reforma econômica, mas também objetivos democráticos, é perfeitamente possível que você estabeleça vários níveis de aliança. Acho que a rigor tem determinadas questões nas quais todos os partidos deveriam estar aliados, enquanto outros temas não precisam disso. Isso é uma das questões sobre as quais o PT só terá mais clareza no momento em que ele se debruçar sobre o que quer não para o mês que vem, mas para o fim do ano, para o fim deste governo, de projeto de País. Não se faz alianças e depois o projeto. Primeiro é preciso ter o projeto, depois as alianças.
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