Em momentos de profunda crise política, é comum se valer da expressão “marcha a insensatez” para descrever uma sequência de decisões que levam a uma cadeia de eventos nocivos a sociedade. Seria como se o País adentrasse em um estado de histeria coletiva, onde a razão dá lugar a paixão e as decisões são tomadas com o único objetivo de atingir os adversários, não importando os danos colaterais para o conjunto da sociedade. Neste sentido, diversas guerras e conflitos armados seriam o resultado de “marchas da insensatez”, com momentos como a crise dos mísseis de Cuba podendo ser apontada como o triunfo da política, diplomacia e racionalidade sobre a histeria que se apodera dos líderes políticos.
Na atual crise política brasileira, poderíamos pleitear, sem medo de errar, que os principais agentes políticos nacionais adentram uma “marcha da insensatez”, uma vez que abandonaram qualquer racionalidade sob o pretexto de destruir os que consideram adversários. O “vale-tudo” que geralmente toma conta dos períodos eleitorais se estendeu no tempo e agora se tornou o “novo normal”, o que denota a derradeira derrota da política e da racionalidade. Mas este aspecto passional que tomou conta do cenário político, dominado por “homens bomba” e radicais de todos os lados, esconde outra natureza do quadro político atual: por trás de toda insensatez, há muita desfaçatez. Políticos “racionais” se utilizando do cenário de comoção nacional para concretizar seus pequenos projetos de poder. Pior, políticos profissionais se valendo de estratégias mesquinhas e deploráveis, apostando todas as fichas na certeza da impunidade da justiça e das urnas.
Talvez a figura mais simbólica da “marcha da desfaçatez” seja o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha. Flagrado na mentira, na corrupção e na fraude, mantém expressão serena ao rebater as massacrantes evidências e aproveita o resto do tempo para ameaçar a república, contando com o apoio entusiasmado de setores do parlamento e da sociedade, que apostam na velha máxima de “o inimigo de meu inimigo é meu amigo”. Sua desfaçatez é escancarada: até seus defensores mais leais sabem se tratar de um mentiroso contumaz que se vale do poder em benefício próprio, em particular em situações como a qual afirmou ter acatado o processo de impeachment por motivos “técnicos”.
A desfaçatez prossegue quando políticos oposicionistas se aliam a Cunha em nome do impeachment e do “combate a corrupção”. Quem de fato acredita que algum cidadão que se alia a Cunha esteja verdadeiramente disposto a combater a corrupção? A falta de sinceridade fica ainda mais evidente quando se percebe que o moralismo oposicionista é seletivo: atinge apenas seus adversários, mas sempre preserva seus aliados.
Os objetivos pessoais dos oposicionistas variam. Algumas importantes figuras, como José Serra, torcem pelo impeachment de olho em assumir um importante ministério em um futuro governo Temer, na esperança de manter vivo seu eterno sonho de ser presidente da República. Outros, como o Senador Aécio Neves, apostam suas fichas na esperança de derrubar Dilma e Temer posteriormente, provocando novas eleições onde ele poderia reverter a derrota eleitoral, que como criança mimada ainda não aceitou. Por fim, Marina Silva aposta na cassação da chapa Dilma/Temer pelo TSE, pois assim não precisará se envolver com a aprovação de um evidente golpe, o que poderia manchar sua biografia.
Outro exemplo evidente de desfaçatez foi dado recentemente pelo vice-presidente Michel Temer, que escreveu uma carta alegadamente “particular” para Dilma com o objetivo de explicar sua posição diante do impeachment. Na carta, Temer reclama da perda de espaço no governo e no PMDB, se colocando na posição de vítima da desconfiança da presidente e afirmando ter sido um vice apenas “decorativo”. Quem em sã consciência acreditará que Temer, um político experiente e aliado de quase todos os governos da república, sempre em altos cargos de poder e envolvido em nomeações políticas para postos chave dos governos, é vítima política da inexperiente Dilma Rousseff? Que ser racional acreditará que o objetivo do vice não é manipular a bancada de seu partido para deflagar o golpe, assumir o poder e se proteger (junto com Cunha) das investigações da Lava- Jato, que se aproximam de seu nome?
Por fim, também há desfaçatez por parte do governo. Em primeiro lugar, por insistir em adotar a estratégia econômica dos adversários, se recusando a explicar os verdadeiros motivos por trás desta decisão e se fechando ao diálogo com as forças que o elegeram. Quem acredita em Dilma quando ela diz que concluiu que “não há outra saída” além da adoção da política de Levy? Em segundo lugar, por insistir em manter a aparência de aliança e compromisso com políticos que claramente só apoiam o governo por conveniência, como é o evidente de diversos partidos “aliados”. Há alguma possibilidade de acreditarmos que Dilma confia de fato no vice golpista ou em outros políticos achacadores?
Em meio a tanta desfaçatez, o cidadão comum se encontra perdido, sem saber em quem ou no que acreditar. Algumas mentiras são mais escancaradas, como as de Cunha; outras mais sutis, como as de Marina. Mas todas escondem uma sede insaciável pelo poder, que passa por cima de toda e qualquer preocupação sincera com o país e se explica pelos desejos mesquinhos de seus personagens. A desfaçatez e a insensatez se confundem, pois as mentiras e ações personalistas contribuem para deteriorar o quadro político nacional e aprofundar a crise brasileira. De fato, essa é uma das consequências desejadas por alguns, que se valem da crise como forma de apear o inimigo do poder.
Neste sentido, o pior que pode acontecer para o país seria a aprovação do impeachment da presidente Dilma. Por pior que esteja sendo seu governo, isso representaria a coroação da desfaçatez e um prêmio pela escalada da insensatez. Por mais falsas que tenham sido suas promessas eleitorais, Dilma é uma mulher honesta e não cometeu nenhum crime, fato que não pode ser dito dos postulantes de sua linha sucessória.
Apoiar o impeachment é se alinhar ao que há de mais vil na política brasileira hoje, na esperança vã de que uma mudança na presidência trará “pacificação” entre as facções rivais que tomam conta do cenário político nacional. Não haverá pacificação possível neste cenário, uma vez que setores importantes da sociedade civil se opõem ao golpe. É um cenário diferente de 1992, quando o conjunto da sociedade pedia a saída de Collor dadas as evidências claras de crimes cometidos. A única saída positiva para o Brasil hoje é preservar a democracia, respeitar o mandato de uma presidente honesta e pressioná-la a alterar os rumos de seu governo, melhorando também a qualidade de seus aliados.
*Professor do Instituto de Economia da Unicamp – IE/Unicamp
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