“Não vamos dar trégua a esse governo”

Luiza Erundina, candidata a prefeita de São Paulo - Foto: Luiza Sigulem/Brasileiros
Luiza Erundina, candidata a prefeita de São Paulo – Foto: Luiza Sigulem/Brasileiros

Luiza Erundina está decidida a arregimentar forças e resistir, assim como fez nos tempos da ditadura militar. Em seu quinto mandato consecutivo como deputada federal, ela defende a resistência como o contraponto possível para a guinada política à direita que culminou com a instalação provisória de Michel Temer no Palácio do Planalto. “Temos que nos arregimentar de novo, ter uma estratégia adequada para esse momento crítico da vida democrática do País, para diminuir os danos”, afirma a deputada. “Nas ruas, a mobilização não vai cessar.”

Aos 81 anos, ela parece mais animada do que nunca. Considera que, no fundo, a ocupação feita no final de abril da cadeira do presidente da Câmara foi um ato de desobediência civil. Filiada ao PSOL enquanto organiza o seu próprio partido, a Raiz, Erundina lança no sábado 11 de junho sua pré-candidatura à sucessão do prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, na eleição de outubro. “Vou fazer barulho”, promete. Ao citar a própria administração da capital paulista, entre os anos de 1989 e 1992, lembrou que enfrentou oposição até do PT, partido ao qual era filiada.

Ao mesmo tempo, a deputada comemora o fato de algumas ideias de sua administração terem ajudado a inspirar outros movimentos. É o caso do projeto Tarifa Zero, que ela não conseguiu implantar em São Paulo, mas se reflete na atual demanda por transporte público gratuito. Como naquela época, ela continua muito próxima dos jovens. “Essa meninada está tendo a oportunidade de se formar politicamente na luta”, diz. “Eles não saem os mesmos depois dos embates. Eles saem mais generosos, mais coletivos, menos individualistas, menos consumistas.”

Brasileiros – Qual a sua expectativa em relação ao governo Temer?
Luiza Erundina – A forma como ele assumiu o poder já indica o retrocesso. O governo Temer é fruto de um golpe, de uma conspiração. Durante todo o tempo, ele conviveu com uma situação inusitada na Câmara, que tinha um presidente réu. E, mesmo afastado, Eduardo Cunha atua como se ainda fosse presidente da Casa.

Influenciando deputados?
Ele lidera e controla uma grande bancada, maior do que a de qualquer partido. É a bancada conservadora, fundamentalista, evangélica, de direita. A sombra dele se mantém nas relações internas da Câmara. Cunha é muito vivo, domina como poucos o regimento. Sem nenhum escrúpulo, ele manobrava para conseguir a votação que queria. Sempre dava um jeito de virar o resultado. Por isso, cheguei a ocupar a cadeira dele na Câmara.

Foi um ato de desobediência civil?
No fundo, foi. Estava sendo votada a criação de uma comissão da mulher, na qual tinha sido embutido o que chamamos de jabuti. Algo estranho à proposta original. Era a questão dos direitos do nascituro, que proibia até o aborto previsto em lei. Como estávamos conseguindo a maioria, Cunha começou a manobrar. Subimos então à Mesa Diretora. Ele saiu e reuniu o Colégio de Líderes, sobre o qual exercia controle absoluto. Quando eles voltaram, uma hora e meia depois, Cunha já tinha aliciado o Colégio de Líderes para orientar as bancadas a votar como ele queria.

Mesmo com Cunha afastado, o jogo vai continuar pesado?
As primeiras medidas que tomaram foram para comprometer questões de interesse dos trabalhadores. Os direitos das mulheres estão agora com o Ministério da Justiça. E o ministro é o antigo secretário de Segurança de São Paulo, aquela coisa horrorosa que mandava reprimir os estudantes. Eu estive no Centro Paula Souza, com a tropa de choque lá dentro, sem autorização judicial. Os estudantes estavam acantonados, no chão. Os homens da tropa de choque encontravam-se muito próximos, altamente armados. Na verdade, em todo o ministério, em Brasília, tudo é muito velho, do ponto de vista da imagem, dos valores, da expressão do que deve ser um governo e um País como o nosso. É algo muito triste, revelador do que nos aguarda pela frente.

Qual a saída?
Nós temos que resistir. Mesmo a parte da sociedade que queria muito o impeachment deve estar decepcionada. Os movimentos sociais já estão ameaçados pela lei antiterrorismo. Qualquer manifestação da sociedade civil contra ações do governo poderá ser considerada ato de terrorismo. Temos que nos arregimentar de novo, ter uma estratégia adequada para esse momento crítico da vida democrática do País, para diminuir os danos. Nas ruas, a mobilização não vai cessar, até pelas medidas que eles estão tomando.

Luiza Erundina: preparada para lutar - Foto: Luiza Sigulem/Brasileiros
Luiza Erundina: preparada para lutar – Foto: Luiza Sigulem/Brasileiros
Diante do conservadorismo do atual Congresso, como a minoria mais progressista vai atuar?
Agora tem o Partido dos Trabalhadores como oposição. Vamos ver se eles mudam o comportamento. Antes, a não ser um ou outro companheiro do partido, eles agiram com muita ambiguidade, em relação a Cunha inclusive. No início, o enfrentamento contra ele veio só do PSOL.

Por isso a senhora optou pelo partido?
Eu era do PSB e saí da Executiva quando o partido apoiou Aécio Neves em 2014. Desde então, não tive condições de seguir a orientação do partido. Fiquei protelando a decisão de sair, porque uma mudança de partido é sempre traumática. Mas fiquei isolada. Estava desaparecendo da atuação do Parlamento, porque não tinha delegação do partido. A situação ficou insustentável. Eu pretendia sair para ficar sem partido, mas o PSOL insistiu muito.

E a senhora vai ser mesmo candidata pelo PSOL à prefeitura de São Paulo?
Estou construindo a Raiz, um outro instrumento de organização partidária, mas vai levar tempo para se formalizar. Então, sou candidata pelo PSOL. E vou fazer barulho. Posso não chegar lá, mas vou entrar para ganhar. A minha base é o povão da periferia, os funcionários, o pessoal que luta. E tem ainda a juventude.

Como é essa relação?
Estou sempre com eles. Em 2013, eu já estava muito junto do Movimento Passe Livre. Eles vinham de um trabalho inspirado na Tarifa Zero, uma proposta nossa que não se viabilizou. O projeto foi gestado por Lúcio Gregori, que é engenheiro e foi secretário de Transporte de nosso governo. Ficou demonstrado que o projeto era viável, bom para o desenvolvimento da cidade, para a mobilidade como direito social.

Isso lá atrás.
Na época, o próprio PT não ajudou. Muito pelo contrário, era oposição ao nosso governo. De qualquer forma, a ideia ficou na sociedade. Anos depois, a juventude de Santa Catarina fez um movimento contra a tarifa de ônibus. Essa é uma galera, como essa turma gosta de dizer, interessante. Apesar da minha idade, apesar do meu perfil, há uma identidade mútua.

Quais os pontos comuns?
Convergem para a Raiz, um movimento de juventude muito forte, que está se somando a outras pessoas desencantadas com a política convencional. Estão vindo discutir política dentro de uma nova concepção de exercício de poder, do socialismo ecológico, da experiência frustrada do socialismo científico da União Soviética. Hoje tem todo um movimento nesse sentido, como o Podemos, na Espanha, e o Syrysa, na Grécia. Uma concepção horizontal das relações. Uma quebra total da hierarquia partidária.

O Brasil já tem 35 partidos.
É outra concepção. É partido-movimento. Raiz Movimento Cidadanista. Já está atuando como movimento. As pessoas se juntam, refletem a partir de princípios inspirados na civilização dos africanos no Brasil e dos ameríndios, o Teko Porã (Bem Viver, em guarani). Estamos bebendo nessa fonte e atualizando-a como concepção moderna de socialismo, o etnossocialismo.

Deputada, aos 81 anos onde a senhora arranja energia para tanta atividade?
É a causa. O sonho, para ser sonho e para ser utopia, não pode começar e terminar no nosso tempo de vida. Não que não se queira concretizar. É que não é viável, porque a própria dimensão de um sonho, de uma utopia, extrapola a vida de um ser humano. É a ação coletiva de gerações. Isso nos alimenta e nos mantém jovens. Eu me sinto jovem. Juro. Eu me sinto jovem vivendo a expectativa desse movimento, com essa meninada que não se sente representada e tem toda razão.

É uma tentativa de encontrar um caminho novo?
É uma forma de reencantar a política. A política envelheceu. E não há sociedade humana que não exerça a política. Junto com essa meninada, revejo meus parâmetros, minhas práticas. Destruo e reconstruo a partir deles. É a ideia da espiral dialética da história. Os tempos vão se construindo em ciclos, que começam e acabam. O ciclo seguinte não começa no marco zero. Começa de um certo patamar. E será sempre melhor.

Com essas ideias, a senhora não se desesperou com a guinada à direita em Brasília?
Não, me desafiou. Estou mais animada para lutar. Estou mais convencida da necessidade de uma luta. E de radicalizar. Nós temos que radicalizar na defesa daquilo que foi conquistado, sobretudo na defesa da democracia. Não vamos dar trégua a esse governo, seja no Parlamento, seja na sociedade. A juventude está dando um banho de cidadania quando ocupa as escolas. Isso tem um caráter revolucionário incrível. Essa meninada está tendo a oportunidade de se formar politicamente na luta. Eles não saem os mesmos depois de um embate desses. Eles saem mais generosos, mais coletivos, menos individualistas, menos consumistas. Foi o que aconteceu conosco na resistência à ditadura.

A senhora vinha defendendo a necessidade de se fazer uma reforma política. No atual cenário, vai ficar mais difícil?
Mas vai ser mais necessário ainda. Já estamos
rearticulando uma frente parlamentar que tinha sido desativada devido a outras iniciativas. Na minha avaliação, a reforma não pode ser só referente a partido, a eleições. Tem que repensar o Estado brasileiro. Tem que repensar as relações entre os poderes da República, que estão completamente desarmonizados, desequilibrados, um interferindo no outro.

Esse é o ponto principal da reforma?
É um deles. O principal é o exercício da democracia direta, participativa, que está previsto na Constituição, mas não acontece de fato. São as leis de iniciativa popular, os referendos, os plebiscitos e outros mecanismos que estão na Constituição, mas nunca foram plenamente regulamentados. Se tivéssemos democracia direta, o projeto da usina de Belo Monte, por exemplo, não seria implantado sem uma consulta ao País. A democracia representativa é insuficiente. Ela precisa se complementar com outra dimensão da democracia, a partir do princípio de que a sociedade civil é a fonte do poder. É o artigo primeiro da Constituição, todo poder emana do povo e em seu nome deve ser exercido.


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