“A gente está vivendo uma espécie de império da burrice nas redes sociais”, diz Jean Wyllys

São Paulo, SP. 17-11-2014: O Deputado Jean Wyllys.Foto: Luiza Sigulem
Foto: Luiza Sigulem

Na hora de posar para a fotografia, Jean Wyllys descontrai, abrindo sorrisos largos. Durante a entrevista, no entanto, ele se mantém muito sério. Passa todo o tempo focado nas ideias que tem a defender. A estratégia vem de longe. Foi pela concentração e bom desempenho na escola que o garoto Jean Wyllys impôs respeito em Alagoinhas, cidade baiana onde nasceu há 40 anos, filho de uma lavadeira e de um pintor de automóveis. Seu nome surgiu da fusão de duas propostas.

Uma tia materna sugeriu Jean, inspirada em um ator de fotonovela que adorava. O pai queria Wyllys, por causa do Aero Willys, o carro que ele desejava, mas nem sonhava comprar. Ficou Jean Wyllys, que começou a ganhar a vida vendendo algodão doce pelas ruas de Alagoinhas.

Deputado federal pelo PSOL do Rio de Janeiro, Jean Wyllys usa há muitos anos no pulso direito uma pulseira de contas com muitas voltas: “É uma guia de proteção, dos meus orixás, Oxum e Oxóssi”. A filiação mítica pode até influenciar no destino, mas o dia a dia quem decide é o próprio Jean Wyllys. Ex-BBB, jornalista, escritor, professor universitário, o deputado vem se destacando no Congresso Nacional pela defesa de causas difíceis – do parto humanizado aos direitos dos transexuais e à regulamentação da maconha.

Reeleito com 11 vezes mais votos do que os recebidos em 2010, Jean Wyllys só não gosta de ser considerado oponente do deputado Jair Bolsonoro (PP-RJ): “Estou em outro nível. Ele é uma caricatura de extrema direita”.

Brasileiros – Qual a origem do projeto por um parto mais humanizado?

Jean Wyllys – Foi uma iniciativa da Artemis, uma organização que trabalha pelo fim da violência obstétrica. O Brasil é campeão em cesariana, cirurgia que triplica o risco de morte do bebê e da mãe. Em alguns municípios de São Paulo, 100% dos partos são feitos mediante cesariana. A Organização Mundial da Saúde recomenda que o número de cirurgias cesarianas fique em torno de 15% do total de partos. E existem ainda outras violências obstétricas. Uma mulher pode ser xingada pelo simples fato de optar por um parto normal. O tempo não é dado a ela. Aplicam uma técnica chamada Kristeller, de empurrar a barriga da mãe para a criança nascer. Há também uma excessiva medicalização. O parto normal e respeitoso implica técnicas de respiração e de posição que reduzam as dores.

Como essa questão chegou à Câmara?

Fiz oposição ao Estatuto do Nascituro, um projeto de lei pavoroso, que revoga as atuais disposições sobre o aborto. Como fui o grande opositor desse projeto, a Artemis identificou que eu seria a pessoa a vocalizar a reivindicação do parto humanizado. Em uma sociedade como a nossa, que associa sexo à procriação e não reconhece a autonomia da mulher sobre o seu corpo, tem um custo trabalhar com essa pauta. As integrantes da Artemis queriam alguém que não transigisse diante da pressão do eleitorado. Elas me escolheram e eu abracei a causa.

Em que fase está o projeto?

Foi despachado para três comissões: de Educação, de Seguridade Social e Família e a comissão de Constituição e Justiça. Com o fim da legislatura, foi arquivado. Mas eu fui reeleito. Então, este ano vou desarquivar todos os meus projetos.

Com esse debate, você amplia seu leque de atuação. É uma estratégia?

Na realidade, fui estigmatizado pela pauta LGBT, pelo fato de ser homossexual assumido. No Congresso Nacional, não tem nenhum parlamentar que defenda de forma clara as reivindicações da comunidade LGBT. O fato de eu tratar dessa bandeira de maneira desbragada, destemida, estigmatizou o meu mandato. Quando a imprensa precisa de alguém que trate do assunto, recorre a mim. Quando falo, reitero a ideia de que só trato disso. Mas, desde o início do mandato, busquei uma atuação mais ampla. A primeira comissão que escolhi para atuar foi a de Finanças e Tributação. No guarda-chuva dos direitos humanos, trabalho todas as questões das minorias. Tem gente que fala que o meu mandato defende só LGBT. Não é bem assim.

Quais projetos pretende desarquivar a partir de fevereiro, na nova legislatura?

Vou desarquivar todos, mas tenho prioridades. Primeiro, preciso desarquivar o projeto que legaliza e regulamenta a cadeia produtiva da maconha. Dispõe sobre a produção, plantio, passando pela comercialização, até o consumo, distinguindo o uso problemático do recreativo. É relevante para discutir políticas de saúde e de segurança pública. Tem também o Projeto de Lei João Nery, que assegura o direito da identidade de gênero das pessoas transexuais na documentação e para fazer o processo de transexualização no âmbito do SUS.

Já pode fazer, não?

Em alguns hospitais, a partir de legislações estaduais, há uma abertura para isso. Mas isso não vale para todo o território nacional. Não é lei. Então, é preciso aprovar esse projeto, para fazer a transexualização pelo SUS, em hospitais de referência.

Como funciona hoje?

Nem todos os estabelecimentos de saúde estão preparados para lidar com a pessoa transexual. Em geral, ela faz hormonioterapia por conta própria, sem saber a dosagem certa. Isso afeta bastante a saúde dela. Quando decide fazer a cirurgia de transgenitalização, há apenas dois hospitais de referência no Brasil. Um em Goiânia, outro em São Paulo. Além disso, ela tem de passar por todo um processo burocrático, que implica patologização da transexualidade dela. Um psiquiatra tem de diagnosticar disforia de gênero, ou seja, patologizar a transexualidade, para recomendar a cirurgia.

E depois?

Quando ela realiza a cirurgia, constitui um advogado e pleiteia na Justiça a mudança do nome. Mesmo assim, a Justiça não concede a mudança em toda a documentação. Concede no registro (civil de nascimento). Muitas vezes, concede só a mudança do nome, mantendo o gênero como masculino ou feminino, dependendo, é claro, se é um transexual masculino ou feminino. Outros documentos, como diplomas escolares, não são modificados. A pessoa permanece com uma vida meio esquizofrênica. Se o projeto de lei for aprovado, o Estado terá um tempo para mudar toda a documentação e não deixar rastro da antiga identidade.

Por que não deixar rastro?

Qual o sentido de você encarar um gênero no corpo, modificar na documentação e manter o rastro da antiga identidade? É um constrangimento. A gente vive em uma sociedade muito má. Muitos fazem questão de constranger as pessoas transexuais. Em aeroportos, às vezes estão vendo o nome social da pessoa transexual, mas fazem questão de chamá-la pelo nome do registro civil, para humilhá-la publicamente. É como dizer: “Olha, essa mulher linda é um homem”.

Isso ocorre nos serviços de maneira geral?

Acontece muito no serviço público de saúde. Uma travesti, uma transexual, chega para ser atendida e o funcionário chama: “Jeferson”. Está vendo que não é Jeferson, que a pessoa se identificou com o nome que ela quer se apresentar no mundo. Quando alijada da identidade de gênero e de documentação adequada, a pessoa transexual é afastada de outros direitos, da chance de se colocar no mercado de trabalho e na vida. Esse tema é alvo de muitos preconceitos. Pastores fundamentalistas têm espalhado nas redes sociais a falsa informação de que o projeto autoriza crianças a mudarem de sexo.

Pastores como Davi Morgado?
Não sei nem quem é essa pessoa.

Você entrou com uma ação contra ele por conta de um suposto projeto que impediria evangélicos de se casar.

É um imbecil, esse cara. Espalhou essa mentira, como se eu tivesse proposto esse projeto. Existe um site chamado Sensacionalista, na linha do The Piauí Harold. São sites que fazem humor, criam notícias estapafúrdias. Quando saiu o resultado das eleições presidenciais, o The Piauí Harold publicou sobre Aécio Neves: “Me casei à toa”. Aécio nunca disse isso. Foi uma brincadeira em torno do fato de ele ter feito um casamento às pressas, para encarnar a figura do pai de família. Enfim, na época do debate sobre o projeto da Cura Gay, o Sensacionalista disse que eu tinha lançado um projeto de lei para acabar com o casamento de evangélicos. Qualquer pessoa com dois neurônios sabe que se trata de uma brincadeira. No segundo turno das eleições, as forças conservadoras se aglutinaram em torno de Aécio Neves e decidiram atacar e difamar as pessoas que, como eu, estavam com Dilma.

A falsa notícia voltou à tona?

Voltou. No blog do pastor, junto com a mídia gospel. Eles ressuscitaram a ficção e espalharam como se fosse verdade. A gente está vivendo uma espécie de império da burrice nas redes sociais. O acesso à informação não implica produção de conhecimento. Enfim, as pessoas começaram a aderir à falsa notícia. Minha assessoria jurídica entrou em contato com ele e avisou que o projeto não existia. O pastor fez ouvidos moucos. Entrei com um processo por danos morais, calúnia e difamação. Depois disso, ele escreveu um post dizendo que apenas compartilhou a informação. Bom, não retirei o processo. As pessoas têm de ser responsáveis. E o Projeto de Lei João Nery é alvo de outra falsa notícia. Eles dizem que o projeto obriga crianças a mudarem de sexo, sem o consentimento dos pais.

Obriga?

Há variações. Uns dizem autoriza, outros dizem obriga. É muito grave. Nas redes sociais, esse império dos compartilhamentos irresponsáveis é tão vasto que uma pessoa foi espancada até a morte no Guarujá, por causa de uma mentira espalhada por meio do Facebook. As pessoas não querem saber se é difamação. Elas compartilham, ofendendo, insultando.

O que diz o projeto?

O projeto está em total consonância com o Estatuto da Criança e do Adolescente. Diz que o Estado deve tutelar as crianças vítimas de violência doméstica por encarnar um gênero que não é o que elas se identificam e se reconhecem. São crianças que apanham para colocar vestido, quando querem usar roupa de menino. Ou meninos que não querem brincar de bola, mas de boneca. Quando a criança é vítima de violência sistemática em casa, o Estado deve protegê-la. No Rio de Janeiro, no Carnaval de 2014, Alex, um menino de 8 anos, foi espancado até a morte. O pai matou o filho porque a criança gostava de lavar louça e de dança do ventre. É sobre isso que o projeto dispõe.

Sobre lidar com as diferenças?

Sim. Andrew Solomon (escritor americano) escreveu um livro muito bacana, publicado no Brasil pela Companhia das Letras, chamado Longe da Árvore – Pais, Filhos e a Busca da Identidade, sobre essa relação de pais com filhos que não são aquilo que eles esperam. O filho anão, a criança surda, a criança autista, a criança transexual, a criança homossexual. Os pais não estão preparados para lidar com essas situações. Ter um filho transexual trai todas as expectativas da família.

Qual o impacto da mentira em relação à proposta?

Ela prejudica, não permite que as pessoas tratem o tema com a devida honestidade. Antes de mais nada, o projeto diz respeito às crianças transexuais. Não trata de todas as crianças. Por outro lado, alguns episódios ajudam no debate. Há pouco tempo, o apresentador de tevê Marcelo Tas deu uma visibilidade muito boa à questão. Ele tem um filho transexual. Tammy, filha da cantora Gretchen, também está fazendo o processo de transexualização, para encarnar o gênero que ela sempre quis e foi impedida durante toda a vida.

Isso que Gretchen não é uma mãe padrão.

Ela foi uma das principais opositoras à identidade de gênero da Tammy. O preconceito enraíza tão profundamente nas pessoas que mesmo alguém como Gretchen, que já casou 18 vezes e ganhava a vida explorando o corpo, colocou a filha em uma igreja evangélica quando a menina quis afirmar sua identidade de gênero. Há situações mais bem resolvidas. O filho de Angelina Jolie e Brad Pitt (Shiloh) é um garotinho que nasceu menina e sempre se afirmou como menino. Tem também o caso da Lea T. e a relação com o pai dela, Toninho Cerezo. Ele foi muito verdadeiro, sensível, humano. Mostrou que a pessoa pode abrir mão de preconceitos, da vergonha, para se preocupar com a felicidade do outro.

O Congresso que tomará posse em fevereiro é muito mais conservador. Qual a sua expectativa?

Vai ser um embate difícil, como já foi na última legislatura. Na verdade, o Congresso Nacional não era progressista ontem e se tornou conservador hoje. Sou contra o termo “guinada conservadora”. O conservadorismo no Congresso é uma tendência que vem se acentuando. Surpreendeu muita gente por causa das jornadas de junho de 2013. Sempre fui muito crítico a esse movimento, mas o fato de as pessoas estarem nas ruas, reclamando da representação política, levou muita gente a crer que o Congresso daria uma guinada progressista. Não foi isso que aconteceu.

Por que a crítica aos protestos?

Muita gente queria o retrocesso. Identifiquei isso naquele momento. Durante a campanha eleitoral, a própria Luciana Genro idealizou as jornadas de junho. Eu vi múltiplas vozes naquela jornada. Para mim, estava claro que boa parte das pessoas que fizeram aquelas jornadas é preconceituosa, reacionária mesmo, e não quer o avanço. Isso se confirmou no resultado das eleições. No Brasil inteiro, houve declínio das bancadas mais progressistas.

No Rio, o deputado mais votado foi justamente o que se coloca como o seu principal oponente, Jair Bolsonaro.

Ele não é o meu principal oponente. Acho até temeroso que me coloquem como oposição a ele. Aquele cara é uma caricatura. Eu sou uma pessoa séria. Não estou nessa por brincadeira. Ele se coloca como principal oponente da comunidade LGBT, dos direitos humanos. Como sou defensor dessa comunidade e desses princípios, a tendência é me colocarem em rota de colisão com ele. Mas estou em outro nível. Falo sem medo de ser feliz, sem parecer cabotino. Trato de questões com outros termos, com outro tipo de conhecimento. Esse cara é um ignorante, um reacionário, uma caricatura de extrema direita. Não gosto de me colocar como oposição a ele, porque sugere inclusive um tipo de argumento que desqualifica a minha luta, como se dissessem que somos iguais, só que em extremos opostos. Não sou igual a ele. Não sou obcecado por um tema, não tenho a ignorância que ele tem. Enfim, não há termos de comparação.

Ele está fazendo escola, inclusive dentro de casa. Agora são mais dois deputados na família. Um estadual, no Rio, e um federal, em São Paulo.

Tem um vereador também, no Rio. O estadual já era deputado, foi reeleito. Na prática, Bolsonaro ampliou a bancada dele, porque elegeu um filho em São Paulo. É assim que funcionam as capitanias hereditárias. São quatro parasitas do erário público, que não se colocariam no mercado de trabalho de outra maneira. Têm de parasitar as estruturas públicas, se elegendo com base em preconceitos e na exploração da ignorância alheia. Isso é escandaloso.

O que se elegeu por São Paulo é policial federal. Estava com uma arma na cintura, em uma manifestação anti-PT na Avenida Paulista. Ele deve ser concursado.

De qualquer forma, não muda minha avaliação.

Quando Bolsonaro agrediu a deputada Maria do Rosário, dizendo que não a estupraria porque ela não merecia, você sugeriu aos eleitores que pressionassem a Corregedoria e o Conselho de Ética da Câmara. Por quê?

A Câmara pode funcionar de duas maneiras: de portas fechadas, no sigilo, ou com a sociedade pressionando, manifestando-se e fazendo sentir sua presença. Sem pressão popular, o que acaba se impondo nesses casos é o corporativismo. A Casa acaba protegendo seus membros e a maioria cala a boca. Se milhares de cidadãos se manifestarem nas ruas e nas redes sociais, enviarem e-mails para os deputados, a Corregedoria, o Conselho de Ética e deixarem claro para as bancadas majoritárias que estão de olho, é maior a possibilidade de o deputado fascista ser cassado. E isso vale para tudo. A única maneira de vencer é com a sociedade mobilizada. Democracia não é só votar a cada dois ou quatro anos.

Ao mesmo tempo que Bolsonaro foi o mais votado no Rio, você também multiplicou 11 vezes sua votação.

Prestam muito atenção na votação do Bolsonaro, mas os votos reacionários e de ultradireita se concentraram nele. Se considerarem a minha votação, a do Chico Alencar (PSOL), a do Alessandro Molon (PT), a da Jandira Feghali (PCdoB), percebe-se que o Rio de Janeiro é muito mais progressista. Só que os progressistas se dividiram entre vários deputados. Tive uma votação expressiva.

Principalmente se comparado com a campanha anterior.

A campanha de 2010 não existiu. Fui eleito graças à votação do Chico. Não fiz campanha. Não tinha inserção de rádio, de tevê. O partido não tinha recursos para colocar na campanha. O único panfleto quem fez fui eu, com meu dinheiro, em uma quantidade minúscula. Em 2010, atuei mais nas redes sociais. Ninguém esperava minha eleição. Muitos descobriram que eu era candidato quando eu já estava eleito.

Por causa do total de votos no partido.

É. Quem puxou foi o Chico Alencar. Foram os votos dele e mais os votos de todos os outros, inclusive os meus próprios votos, que foram 13 mil e alguma coisa. Então, mesmo naquela campanha invisível, fui o segundo mais votado do partido.

Quatro anos depois de sua primeira eleição, como você analisa o atual momento político?

É bem complicado. Falam em divisão do Brasil, que o PT dividiu o Brasil. Esse é o discurso dos partidários de Aécio Neves, da extrema direita, e do PSDB de maneira geral. Mas o Brasil sempre foi um País dividido. Dividido pela desigualdade social, pela concentração de renda. O Brasil sempre foi dividido entre brancos e não brancos, pela herança da escravidão. O Brasil sempre foi dividido pelo gênero. Embora maioria, as mulheres não têm as mesmas oportunidades que os homens. O Brasil sempre esteve dividido entre héteros e homos. Então, somos produto de uma divisão histórica.

Em sua opinião, não mudou nada nos últimos anos?

Eu não sou petista, nunca fui filiado ao PT. Entrei no PSOL em 2009. Não vim de uma ruptura com o PT, mas posso dizer que o PT trabalhou para costurar essas fissuras. De alguma maneira, o partido incluiu uma série de pessoas, ao implementar políticas sociais, reparatórias. Diminuiu a divisão que excluía os não brancos do acesso à educação superior, trabalhou para empoderar as mulheres. É claro que, ao longo desses 12 anos, o partido cometeu erros. Infelizmente, o PT caiu em posturas antirrepublicanas próprias do chamado presidencialismo de coalizão – a necessidade de criar uma ampla coalizão de partidos para governar.

Sem coalização não há gover­na­bilidade.

Nessa ampla coalizão, tem de lidar com todo tipo de gente. A corrupção não foi inventada pelo PT. A corrupção foi praticada largamente pelo governo FHC, pelos governos anteriores a FHC e praticada em maior escala durante os governos militares. Entretanto, se produziu um discurso público de que o PT é o responsável pela corrupção desse País. Esse discurso foi feito pelas famílias que controlam a imprensa. Elas se aliaram em torno de um partido, o PSDB, e começaram a produzir o discurso que associa o PT à corrupção. Na era do declínio do conhecimento, um maior número de pessoas tem acesso às informações por meio das redes sociais. Elas consomem essas informações, sem muita crítica.

De novo, o problema da falsa notícia?

Vi há pouco tempo uma postagem inacreditável. O rapaz dizia que Dilma não investiu na selva amazônica, para poder acabar com a chuva, produzir a seca e tomar o poder do PSDB em São Paulo. Por mais estúpido que esse tipo de raciocínio pareça, há pessoas acreditam, porque quase isso também está sendo defendido em colunas de revistas e jornais. O resultado é o antipetismo, o ódio, da mesma maneira que a propaganda nazista produziu, ao responsabilizar os judeus por todos os males vividos pela sociedade alemã nos anos 1930.

Da mesma maneira?

Sim. Chegamos a um nível de estupidez que em uma manifestação começaram a ofender uma moça com o cabelo tingido de vermelho. Quer dizer, não se pode mais usar a cor vermelha para não ser associado ao comunismo. São os zumbis da Guerra Fria. Então, cuidado com o seu gravador, para você não ser espancada nem presa (o gravador da repórter é vermelho).

Tem um antídoto para esse ódio?

O antídoto do ódio é o conhecimento. O PT tem responsabilidade nisso porque nesses 12 anos ele não disputou ideologicamente a sociedade. Ele não disputou, por exemplo, o tema da regulamentação dos meios de comunicação. Isso deveria ter sido feito desde o início. O PT deveria ter bancado esse debate, por mais impopular que fosse, por mais que a imprensa ficasse contra ele.

Em que termos você vê a regulação da mídia? A Constituição diz, por exemplo, que não pode ter monopólio.

Temos de cumprir o que está disposto na Constituição. Isso significa o fim dos monopólios, o fomento das produções regionais, a pluralidade de acesso aos meios. Um mesmo grupo não pode controlar diferentes tevê, rádios, jornais.

É a chamada propriedade cruzada.

Acabar com isso é fundamental, assim como ampliar o acesso das pessoas à internet e investir nas tevês públicas, nas rádios comunitárias. Livrar as rádios comunitárias do controle de pastores evangélicos, de lideranças religiosas, de políticos. E não é censura. A velha imprensa tem tratado o tema como censura. É uma maneira de jogar a opinião pública contra a democratização dos meios. Eles sabem que a democratização já está acontecendo, forçosa, graças às novas tecnologias da comunicação.

E a reforma política?

Essa é outra questão essencial, que também envolve a disputa da sociedade. É preciso acabar com o financiamento privado de campanha, com as coligações partidárias para cargo proporcional. Mas o PSOL não fecha com a cláusula de barreira. E não fecha com voto distrital. A gente é radicalmente contra o voto distrital.

Por quê?

Porque o voto distrital institucionaliza o vereador fe­de­ral. O cara preocupado com a sua região e não com questões da federação. Essa relação com o distrito, com o Estado, já é do senador.
Mesmo hoje, deputados federais eleitos por currais eleitorais só atuam a favor da região, para manter seus poderes. Estão pouco se lixando para questões nacionais, como a legalização do aborto, as crianças em situação de risco social, a erradicação do trabalho escravo.

Quem são seus parceiros preferenciais no parlamento?

São muitos. Dialogo com os deputados da minha bancada, o Ivan Valente e o Chico Alencar. A bancada agora foi ampliada, com a eleição de Edmilson Rodrigues, do Pará, e de Benevenuto Daciolo, o líder da greve dos bombeiros no Rio. Daciolo foi eleito graças à minha votação. Dessa vez, eu puxei voto. Tenho um bom diálogo com a bancada do PT. Não com todos, é claro. Dialogo com o PCdoB, com setores do PV e do PSB, com Luiza Erundina. Sou vice-coordenador da Comissão da Memória, Verdade e Justiça. Erundina é a presidente. Ela é uma heroína. É maravilhosa.

Como foi o contato com a presidenta Dilma?

Foi recente. Durante o último mandato, não tive contato nenhum com a presidenta Dilma. Ela sempre foi muito refratária a receber parlamentares. Imagine, se ela não recebia deputados da base governista, iria receber a mim, que faço oposição ao PT? Eu também só pleiteei uma audiência, para conversar sobre a Escola Sem Homofobia, projeto que ela enterrou por pressão da bancada evangélica da base governista. Minha ideia era defender o ponto de vista da comunidade LGBT, mas ela não me atendeu. A equipe dela negou agenda. Depois, não pleiteei mais.

Quando vocês se encontraram?

No segundo turno da campanha, durante um evento em Itaquera, em São Paulo. Antes, eu tinha anunciado o meu apoio a ela. Pude apresentar a ela os cinco pontos que considero relevantes: a criminalização da homofobia, a legalização do casamento civil igualitário, o reinvestimento nas políticas de prevenção a AIDS, a educação inclusiva e para diversidade e os direitos dos povos indígenas.

E a proposta de regulamentar a profissão do sexo?

A ideia é distinguir a prostituição da exploração sexual. Por isso, o projeto descriminaliza a casa de prostituição. No Brasil, prostituição não é crime, mas a casa é ilegal. Como as casas continuam operando, graças à corrupção policial, há a figura do explorador ou cafetão. As prostitutas querem sair da exploração sexual e trabalhar em cooperativa. Desejam segurança jurídica, para mediar conflitos na Justiça, caso sejam lesadas em um programa.

Falando em Justiça, o questionamento em torno da Lei da Anistia aumentou com a divulgação do relatório da Comissão Nacional da Verdade. Em sua opinião, a anistia vale para os agentes de Estado que torturam e mataram?

A Lei da Anistia deveria ser revogada. Os crimes da ditadura não podem ficar impunes. Não se constrói uma democracia sólida na base da impunidade. Muitos dos problemas atuais do País são consequência disso. Bolsonaro é apenas um exemplo bizarro dessa herança que ainda não desconstruímos. O Brasil deveria seguir o exemplo da Argentina, que julgou os comandantes das Forças Armadas que lideraram o regime criminoso e genocida de 1976-1983. Além disso, houve mudança nos planos de estudo das novas gerações de militares. O Código de Justiça Militar foi reformado. No Brasil, a atuação da Comissão da Verdade foi um passo importantíssimo, mas deveria ser acompanhada pelo fim da impunidade e por uma revisão das heranças malditas da ditadura.


Comentários

13 respostas para ““A gente está vivendo uma espécie de império da burrice nas redes sociais”, diz Jean Wyllys”

  1. Avatar de Carlos Souza
    Carlos Souza

    se eu pudesse eliminava esse cara, um estorvo pro brasil

  2. Tenho o dever de defender o seu direito de expor suas ideias, mas TB tenho o direito de não concordar com absolutamente nenhuma delas.

  3. Avatar de Lucia Goulart
    Lucia Goulart

    Parabéns pelo seu trabalho Jean Willis, pela sua coerência, sou cristã/protestante, mas sou progressista de esquerda e contra todos esses fanáticos. A bancada da Bíblia não me representa, mas posso dizer que você e todos os outros que defendem proposta como as suas, em defesa dos Direitos Humanos me representam. Parabéns, e que nunca falte votos para suas futuras reeleições.

  4. Avatar de mariana messih
    mariana messih

    Gosto muito do seu trabalho e da forma que escreve, sempre muito apropriado e esclarecedor. Fico triste quando vejo os comentários estúpidos de ódio a Jean nas redes sociais. O Brasil esta consumido pela ignorância e pelo ódio. E defender pautas progressistas é uma batalha, por isso gosto muiito do seu trabalho, sua coragem e sua inteligência, fiquei muito feliz quando foi reeleito. Infelizmente sp está cheio de reacionarios, conservadores. Sinto muita vergonha dessa cidade. E concordo com o que disse do Bolsonaro, figuras como ele e o Feliciano sao um piada, uma caricatura.

  5. Avatar de mariana messih
    mariana messih

    Gosto muito do seu trabalho e da forma que escreve, sempre muito apropriado e esclarecedor. Fico envergonhada e triste quando vejo os comentários estúpidos de ódio a Jean nas redes sociais. O Brasil esta consumido pela ignorância e pelo ódio. E defender pautas progressistas é uma batalha, por isso admiro muiito seu trabalho, sua coragem e sua inteligência, fiquei muito feliz quando foi reeleito. Infelizmente sp está cheio de reacionarios, conservadores. Sinto muita vergonha dessa cidade. E concordo com o que disse do Bolsonaro, figuras como ele e o Feliciano sao um piada, uma caricatura.

  6. Mas JEAN Wyllys , se a DILMA cancelou o programa de educação nas escolas contra a homofobia, como você disse aqui, e ainda considerando todos os piores escândalos de corrupção que este país já viu, destruindo inclusive a Petrobras, porque você apoiou a reeleição da Dilma ????

    Porque não veio para os braços da oposição de verdade e para os braços de Aecio Neves ????

    Então O PSOL nunca fez oposição de verdade ao governo do PT ??!!

    O PSOL e o PT são muito próximos ?

  7. Avatar de Leonardo Paiva
    Leonardo Paiva

    Eu fico agradecido por enxergar uma luz no fim do túnel. Orgulhoso de ver um conterrâneo baiano lutando pelas minorias de forma inteligente e perspicaz.

  8. Avatar de Jorge Oliveira
    Jorge Oliveira

    Parabéns pela entrevista. Maravilhosa e esclarecedora. Aumentou ainda mais minha admiração pelo trabalho e pelas lutas do deputado.

  9. Parbenizo a revista pela seriedade da entrevista e ao Jean, que verdadeiramente é um deputado que me representa…defende a minoria, independente da opção sexual, vem auxiliando sistematicamente as minorias, os hospitais e as propostas sérias…obrigada Jean!

  10. Avatar de Andréa Barranqueiros
    Andréa Barranqueiros

    Como sempre, respostas bastante coerentes, fundamentadas e humanistas..
    Jean, continue sua luta porque o seu lado é o mesmo lado das pessoas que querem um país melhor, sem discriminação e sem preconceitos. Queremos dignidade como cidadãos brasileiros e você é nossa esperança

  11. Avatar de Almanakut Brasil
    Almanakut Brasil

    Cria do BBB!

  12. Avatar de Valdinei Dias Batista
    Valdinei Dias Batista

    Parabéns à revista pela entrevista maravilhosa e ao nobre deputado pela postura e idéias. É bom saber que há gente como ele no congresso nacional.

  13. Avatar de Samara Diamond
    Samara Diamond

    Jean, você é uma luz,diante de um mar escuridão gerada pela ignorância! Dos PLs que você apresenta, a Lei João Nery para transsexualização no âmbito do SUS e liberdade de assumir sua identidade de gênero de forma simples e gratuita, a lei contra a homofobia, legalização da maconha e regulamentação da profissão do sexo, sem falar os projetos em benefícios aos praticantes de religiões de matriz africana, os direitos dos indígenas, estão entre as que mais me animam! Espero que surjam cada vez mais, pessoas como você para representar-nos no congresso! Eu espero também poder chegar ao congresso futuramente, pois pretendo fazer parte da luta, assim como você!

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