No dia 15 de março, 200 mil pessoas foram às ruas de São Paulo para protestar contra a presidenta Dilma Rousseff. A manifestação foi grande para os padrões da sociedade brasileira atual, embora tenha sido convocada pela Rede Globo, contasse com a liberação eventual de catracas do metrô e uma contabilidade “criativa” da polícia militar. Enquanto a PM contou nove mil manifestantes no dia 13 (havia 40 mil, segundo o Datafolha), quando o ato era favorável ao governo federal, a mesma polícia imaginou um milhão de pessoas na Avenida Paulista dois dias depois.
A resposta do governo foi péssima. Alguns “compreenderam” a indignação contra a corrupção, como se os batedores de panelas não fossem sonegadores de impostos, donos de sentimentos racistas contra médicos cubanos e escravistas modernos reclamando da ousadia de suas empregadas domésticas. E nem precisamos lembrar a ausência de críticas ao escândalo do metrô paulista. Enquanto ministros batiam cabeças, a presidenta resolveu morder o fruto da árvore proibida e pronunciou a palavra impeachment. Claro, para explicar que não há motivos para pedi-lo. Se não havia, ela começou a criá-lo ao não chamar a coisa pelo nome: golpe.
Crenças
No mundo político oficial, do qual o PT faz parte, ninguém acredita num golpe em curto prazo. No Congresso fala-se que “ainda” não há motivo para isso. O advérbio de tempo apareceu na boca de ex-presidentes, senadores, animadores de auditórios e atuais governadores.
Eppur si muove. De fato, o impedimento de um presidente exige crime vinculado à sua pessoa. Dilma tem muitos defeitos e só o acaso e a escolha pessoal de Lula fizeram dela a presidenta do Brasil, mas até seu opositor mais corrupto, por ora travestido de evangélico moralizador, sabe que ela é honesta.
Caminhar para uma ruptura institucional exigiria um movimento em muitas frentes: Congresso, imprensa, Judiciário e massas nas ruas. Os quatro ingredientes já existem. O Congresso aproveitou a crise social e econômica para “ajudar” o País criando uma crise política; a grande imprensa é o principal partido oposicionista; o Judiciário importou a teoria do domínio do fato e poderá mostrar que Dilma tinha de saber; as classes médias revoltadas foram às ruas…
Esse não é o diagnóstico dos petistas. Acreditam que compartilham instituições, verbas públicas, financiamentos privados, salões de festas, hotéis e restaurantes com os demais partidos. Mas sua origem não permite que sejam assimilados, apenas tolerados. Esforçaram-se por serem responsáveis. Apoiaram, com dignas exceções, as prisões de manifestantes de esquerda e criticaram o famigerado vandalismo. Abraçaram a ideologia nacional futebolística até o 7 a 1. Distribuíram cargos a aliados e pediram moderação à sua própria militância cansada e envelhecida até mesmo no dia 13 de março, quando CUT e MST foram às ruas em defesa do governo! Mas não adiantou. Agora creem que o ajuste fiscal vai descontentar a todos por dois anos, mas milagrosamente haverá uma recuperação econômica capaz de salvar a segunda parte do mandato e eleger Lula em 2018.
É preciso combinar com o adversário
E o problema reside exatamente aí. Deixando de lado o fato trivial de que a classe trabalhadora é quem paga o ajuste, o prognóstico petista tem um defeito grave. Se ele for falso, o governo não termina o mandato porque os efeitos sociais e políticos da crise se tornarão insustentáveis. Se ele for verdadeiro, a oposição não vai querer esperar o governo melhorar para ver o PT vitorioso novamente.
O governo esquece que o seu prognóstico é compartilhado pela oposição e, por isso, ela vai deixá-lo nas cordas do início ao fim. O único paralelo que temos na história é o do governo Sarney. Ele sangrou anos em público, mas tinha sustentação militar. Lula sangrou durante o segundo semestre de 2005, mas já estava em final de mandato e a oposição esperava derrotá-lo facilmente nas urnas.
É verdade que a classe dominante não tem interesse objetivo num golpe político (os militares não se envolvem mais nesse tipo de coisa até segunda ordem). É até provável que parte da oposição (o PSDB paulista) compreenda o risco de um impedimento. Ele causaria maior descrédito nas instituições e poderia conduzir a uma berlusconização do País. Mas quem garante que um movimento estimulado no futuro não saia do controle da oposição dita responsável?
Saídas
Há saída? Sem dúvida. À esquerda significaria jogar o ajuste para os ricos, mobilizar as bases sociais da esquerda e avançar para reformas profundas contra o Congresso. O PT dificilmente faria isso. Ele não é mais mobilizador, teme o acirramento de conflitos sociais e conta com certa acomodação macunaímica da oposição. Afinal, ela vai se cansar de ir às ruas, mesmo aos domingos.
Outra saída para resolver apenas a crise política seria entregar a maior parte do governo ao PMDB e deixar a presidenta olimpicamente isolada. O apetite ministerial dos políticos do PT também não permite isso, por enquanto. Só se o medo superar a fome.
A crise econômica desmontou o pacto social rentista que mantinha o governo. Na periferia, sem crescimento econômico acelerado, falta mais valia para tributar e manter a mobilidade social dos anos Lula. Alguém tem de pagar a nova conta, e os ricos nunca pagam no Brasil. O mesmo fenômeno atingiu Venezuela e Argentina, onde a direita vai às ruas. A diferença é que aqueles governos são mobilizadores. Maduro opõe à direita militante uma massa governista; Cristina comanda, ela mesma, manifestações de apoio ao governo na Casa Rosada! E ambos controlam minimamente os aparatos repressivos do Estado.
Mesmo lá, não há saída fácil à vista e as oposições podem ser vitoriosas. O radicalismo lá é mais verbal do que prático. Aqui, sem alternativas radicais à esquerda, os trabalhadores viverão um impasse. À sua direita, um governo impopular, corrompido (embora menos do que os anteriores), mas que representou inegáveis avanços sociais. Um pouco mais à direita, um bando de malfeitores de olhos vermelhos. Se eles assaltarem o poder, sabemos o que nos espera. É só dar uma olhada nas admiráveis faixas que eles carregavam na Avenida Paulista.
*Professor de História Contemporânea na Universidade de São Paulo e autor, entre outros, de História do PT (Ateliê Editorial).
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