O muro de Brasília e o ódio à igualdade

Muro erguido parai separar os manifestantes favoráveis e contrários ao impeachment, em Brasília - Foto: Victor Soares/Agência Brasil
Muro erguido para separar os manifestantes favoráveis e contrários ao impeachment, em Brasília – Foto: Victor Soares/Agência Brasil

A construção de um muro em Brasília para separar os manifestantes favoráveis e contrários ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff é a expressão simbólica da divisão da sociedade brasileira. Em entrevista publicada na Folha de S.Paulo desta terça-feira (12), o filósofo Roberto Mangabeira Unger culpou a campanha pelo impeachment por essa onda de ódio que rachou o País.

Segundo Mangabeira, “criou-se uma onda no Brasil”. “Embrulhamos o ódio e a frustração no manto do moralismo”. Professor da Universidade Harvard, o filósofo diz que “a polícia, os procuradores e a grande mídia se associaram para construir essa onda”, mas adverte que um dia tudo isso vai passar e “deixará gosto amargo na boca da nação”.

No Brasil, esse ódio tem raízes muito profundas: é um ódio à igualdade. Essa onda já se manifestou abertamente na crise que culminou no suicídio de Getúlio Vargas, em 1954. Em fevereiro daquele ano, 82 oficiais militares divulgaram o chamado “Manifesto dos Coronéis”, com duras críticas à proposta do então ministro do Trabalho, João Goulart, de aumentar o salário mínimo em 100%.

Segundo os coronéis, esse aumento salarial traria um enorme desprestígio para as Forças Armadas e provocaria uma “aberrante subversão de todos os valores profissionais”. O que estava em jogo era o receio de que todos os sinais de distinção social se dissolvessem. Esse mesmo receio reapareceu na crise de 1964, com a perspectiva de instauração de uma “República Sindicalista”.

Na atual crise política, esse sentimento tomou as ruas. Mas ele já vinha se insinuando há muito tempo, como observou o professor da USP Renato Janine Ribeiro no prefácio do livro Ódio à Democracia, do filósofo Jacques Rancière. Como explica Janine, para essas pessoas “o Brasil era bom quando pertencia a poucos. Assim, quando a multidão ocupa espaços antes reservados às pessoas ‘de boa aparência’, uma gritaria se alastra em sinal de protesto. O que é isso, senão o enorme mal-estar dos privilegiados?”

O mal-estar da classe média não deriva apenas dos desconfortos momentâneos (aeroportos lotados, trânsito congestionado, pobres na universidade) provocados pela ascensão da chamada classe C, mas de uma crise de identidade: assim como os coronéis de 1954, boa parte de estrato social considera as desigualdades sociais aceitáveis desde que existam pessoas em uma situação ainda pior. Sem esse consolo, a distância que separa a classe média das camadas mais ricas se tornaria insuportável.

Como esclarece Thorstein Veblen em “A Teoria da Classe Ociosa”, a classe média procura reproduzir, na medida de seus recursos, os padrões de consumo dos mais ricos: ter uma empregada doméstica e pôr os filhos numa escola privada, por exemplo, dão a essas pessoas a impressão de que elas pertencem a um mesmo grupo social.

Daí o comportamento simultaneamente agressivo e submisso que caracteriza essas camadas sociais: elas acolhem em silêncio propostas de entidades de empresários que acabarão por prejudicá-las (como a supressão de direitos trabalhistas), mas sempre se manifestam de forma muito estridente contra a concessão de benefícios aos mais pobres (Bolsa Família, ProUni, Mais Médicos). Tal como o pai de Gregor Samsa em A Metamorfose, elas não tiram o uniforme nem mesmo na hora de dormir. O muro de Brasília constitui apenas a cristalização visível dessa segregação simbólica, sem a qual a classe média não consegue traçar a sua identidade na sociedade nacional. 


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