“A política não suporta o vácuo”, dizia o senador Luís Viana Filho para explicar por que o presidente Castello Branco não conseguiu impedir a vitória do general Costa e Silva na disputa para sucedê-lo. Para Viana Filho, Castello nunca ofereceu aos parlamentares uma alternativa de poder ao então ministro da Guerra. Abandonados pelo governo, os políticos se agarraram ao líder que parecia ter mais condições de chegar ao Planalto.
Um fenômeno semelhante explica a emergência do “centrão”, o bloco suprapartidário que levou Eduardo Cunha (PMDB-RJ) à presidência da Câmara dos Deputados e, depois, teve um papel decisivo no impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT).
Como explicam os cientistas políticos Octavio Amorim Neto e Fabiano Santos no artigo A Conexão Presidencial, no Brasil um Executivo centralizado convive com um Legislativo fragmentado, em que deputados pouco disciplinados desempenham o papel de lobistas de suas bases eleitorais. Como os recursos para atender a essas demandas locais estão nas mãos do Executivo, o relacionamento do governo federal com os deputados é pautado pela chamada “patronagem”: o Executivo obtém apoio político em troca da distribuição de verbas e de cargos na administração pública.
As dificuldades do governo Dilma começam exatamente nesse ponto. Como explica o cientista político Antônio Augusto de Queiroz, do Diap, a presidenta emperrou as trocas de verbas por apoio com os deputados mais inexpressivos, que integram o chamado “baixo clero”: “Eles eram considerados fisiológicos pela presidente Dilma e foram abandonados pelo governo”. Segundo Queiroz, “o governo não liberava verbas de emendas parlamentares, não entregava cargos na administração”.
Desprezados pelo governo, esses deputados começaram a reclamar publicamente. Em 28 de fevereiro de 2014, o então deputado federal César Hallum (PRB-TO) discursou na Câmara criticando o tratamento que o governo Dilma dispensava ao “baixo clero”: “Todos estamos fazendo um esforço muito grande para poder ajudar a presidente Dilma para que o Brasil possa crescer. Mas eu estou observando que lá pela SRI (Secretaria de Relações Institucionais) e por outros ministérios fazem tudo para não deixar apoiar a presidente Dilma, nos jogam fora. Fazem da gente gato e sapato”.
Na época, a Secretaria de Relações Institucionais era dirigida por Ideli Salvatti (PT). Hallum deu um exemplo do que ocorria: “Coloquei R$ 500 mil numa emenda para estradas vicinais no município de Aragominas, no Tocantins. Quando chegou lá pelo dia 15 de dezembro, me chamaram: ‘Olha, o município vai perder a emenda. Vamos trocar o município’. Eu corri e atendi o município de Carrasco Bonito. Coloquei a emenda de R$ 500 mil para Carrasco Bonito. Foi feita a proposta, foi apresentado o projeto. E diziam: ‘está empenhado, empenhado e empenhado. Então, tudo bem. Quando chegou no dia 31 de dezembro, não empenharam. Mas não estava o limite aqui? É. Mas o dinheiro sumiu. Eu não sei onde ele está. Vai à SRI. Não, já mandei o limite para lá. Chego lá: Não, aqui não chegou. Eu volto para lá, igual besta. Tratam a gente como moleque”.
É nesse vácuo político que Eduardo Cunha construiu sua liderança na Câmara. Eleito deputado federal em 2002 pelo PPB, Cunha se transferiu para o PMDB ainda em 2003. Tornou-se vice-líder do partido em 2005 e, nas eleições de 2010, teria ajudado 34 deputados a obter recursos para suas campanhas. Esses deputados passaram a gravitar em torno dele até que, em fevereiro de 2013, Cunha foi eleito líder do PMDB.
Na liderança da legenda, ele articulou em sua residência (veja foto acima) a formação de um bloco parlamentar formado por sete partidos (PMDB, PSC, PP, PROS, PTB, PR, SD e PDT), com 240 deputados. O “blocão” surgiu, segundo seus líderes, da insatisfação desses congressistas com a não liberação de verbas para emendas parlamentares. Daí a necessidade de estimular “uma autoafirmação do Parlamento”, como declarou o líder do PROS, Givaldo Carimbão (AL): “Não podemos ter só pautas do Executivo”.
Em março, após a formalização do bloco, o governo Dilma finalmente reagiu: liberou R$ 400 milhões em emendas pendentes do Orçamento de 2013: as bancadas do PP, PROS e PDT concordaram em deixar o blocão, mas os outros partidos seguiram unidos. Com isso, Cunha passou a liderar uma bancada de 180 deputados federais.
O blocão mostrou sua força no dia 12 de março, quando aprovou a criação de uma CPI sobre a Petrobras. Em seguida, o blocão tentou barrar a aprovação do Marco Civil da Internet, mas fracassou. Mesmo assim, arrancou algumas concessões do governo.
No dia 1º de abril, Dilma tirou Ideli da Secretaria de Relações Institucionais e nomeou Ricardo Berzoini em seu lugar para tentar melhorar as conversas com os deputados. Mas Berzoini não conseguiu evitar uma nova derrota: no dia 6 de maio, a Câmara aprovou em primeiro turno, por 384 votos a 6, a Proposta de Emenda à Constituição do Orçamento Impositivo, que obrigava o governo a liberar recursos para executar as emendas individuais dos parlamentares até o limite de 1,2% da receita corrente líquida.
Uma proposta desse tipo tirava do governo uma de suas principais armas na negociação com os deputados de direita e centro-direita, que nunca se identificaram com alguns projetos da administração petista. No meio do ano, contudo, o Congresso entrou em recesso e os conflitos entre o Planalto e Cunha ficaram em segundo plano.
O conflito recomeçou em novembro, quando o blocão declarou apoio à candidatura de Cunha à presidência da Câmara. Já prevendo as consequências, o Planalto lançou Arlindo Chinaglia (PT-SP), mas o resultado foi desastroso: Cunha foi eleito com 267 votos, contra 136 de Chinaglia e 100 de Júlio Delgado (PSB-MG), lançado pela oposição.
Dias depois, a Câmara aprovou, em segunda votação, a PEC do Orçamento Impositivo, por 452 votos a 18. A emenda foi promulgada em março.
Na presidência da Câmara, Cunha consolidou o blocão. Seus aliados passaram a ser recompensados com relatorias de comissões e com o apoio a projetos de seu interesse. Além disso, o conservadorismo de Cunha lhe garantia um diálogo muito melhor com as bancadas evangélica e ruralista. A rebelião do “baixo clero” contra o governo se consolidou, e o governo passou a perder diversas votações decisivas (reajuste salarial do Judiciário, PEC da Maioridade Penal, PEC da Terceirização).
Nas duas rebeliões anteriores do “baixo clero” (uma foi liderado por Paulo Maluf, em 1984, e outra por Severino Cavalcanti, em 2005), o bloco se dispersou assim que seu líder foi derrotado ou renunciou. Até agora, o centrão sobreviveu ao afastamento provisório de Cunha e impôs a indicação de André Moura (PSC-SE) para líder do governo Michel Temer na Câmara. Resta saber, contudo, se o bloco conseguirá manter sua coesão caso seu líder seja condenado pelo Supremo Tribunal Federal.
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