O aniversário de 50 anos do golpe militar de 31 de março de 1964, durante o dia de hoje, não só trouxe o tema ditadura de volta, com um pequeno grupo de saudosistas a pregar nos últimos meses o retorno do regime com a mesma desculpa de antes, moralizar a política, como gerou a publicação de livros, principalmente, e de artigos que tentam fazer uma reflexão mais distanciada sobre o tema. E é nesse ponto que mora o perigo. Em depoimentos, análises e até estudos acadêmicos, algumas aberrações históricas voltaram a ser repetidas e até criadas, ditas de forma irresponsável do ponto de vista histórico.
A mais comum delas é afirmar que o golpe foi, na verdade, um contragolpe preventivo, que seus autores cuidaram de batizar de “revolução democrática”. Quer dizer, havia um plano comunista em marcha muito próximo, para o ano de 1964 ainda, que teria grande chance de transformar o Brasil em uma ditadura comunista. Tem sido, sem dúvida, a afirmação mais repetida, inclusive por políticos, jornalistas, sociólogos e historiadores, há cinco décadas. Agora, virou uma quase unanimidade, um ponto inquestionável. Uma mentira histórica semelhante à desculpa que George W. Bush inventou para invadir e massacrar o Iraque em 2003: nunca se encontrou um mililitro de armas químicas em todo o território iraquiano que ratificasse a ordem de invasão em 20 de março daquele ano.
Aos que acreditam nessa afirmação sem questionamentos, algumas perguntas básicas e óbvias se fazem necessárias: 1 – Qual era o nome de quem comandava o golpe comunista em andamento, já que Jango era considerado um frouxo e estava entregando o país aos radicais vermelhos? 2 – Quem supostamente tomaria a frente do golpe de esquerda, já que todo fato assim precisa de um líder ou líderes? O governador gaúcho Leonel Brizola? O líder das ligas camponesas Francisco Julião? 3 – Como seria dado o golpe,? 4 – O que havia de concreto a respeito na madrugada de 31 de março de 1964, quando começou a quartelada? 5 – Um golpe se dá com armas, e onde estão as evidências de algum arsenal e treinamento para se tomar o poder? 6 – Por último, para não estender muito, depois de meio século, por que ninguém jamais apresentou sequer um bilhetinho, um telegrama, um panfleto que dê o mínimo de fundamentação e veracidade ao tal golpe dos comunistas? Nem mesmo a CIA foi capaz de tal descoberta. Hitler chegou ao poder dentro da lógica de que uma mentira quando repetida, vira verdade. Dizer que os militares salvaram o país da ditadura comunista é, no mínimo, uma confissão de falta de conhecimento básico de história e de completa ignorância. Ou conveniência, em muitos casos.
Há outros aspectos a serem ressaltados. Nos últimos meses, começou-se a dizer quem o Brasil teve a ditadura mais “light” daqueles terríveis e opressores anos de 1960 e 1970 no continente latino-americano. Nas redes sociais, a falta de conhecimento histórico tem levado muita gente a brincar com coisa séria: de que o País teve, na verdade, uma “Ditabranda” (lembra do editorial da Folha em 2009?). Não se mede ou dimensiona uma ditadura “apenas” pelo número de mortos e desaparecidos por causa de suas convicções políticas – sem esquecer que havia inocentes entre eles. Em 1977, o “Coojornal” levantou que, entre 1964 e esse, 4.682 foram punidas diretamente com perda dos direitos políticos. Sem contar que, nos anos seguintes, até 1984, pessoas continuaram a sofrer penas baseadas na Lei de Segurança Nacional. Nessa matemática sombria não entram dezenas ou centenas de milhares de brasileiros que tiveram sua vida profissional e familiar destruída, foram perseguidos, demitidos “a bem do serviço público” – como os professores universitários e até militares que se posicionaram contra o regime, e não foram poucos, forçados a aposentadorias antecipadas. A delação foi um mecanismo eficiente até mesmo para se resolver picuinhas e vinganças pessoais.
Agora, fala-se que o não foram 21 anos de ditadura de fato, mas “somente” 14 anos, como se fosse pouco tempo, do período que foi do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, até as eleições diretas para governador em 1982. Se contra fatos não há argumentos, vamos a eles para provar que havia sim ditadura entre 1964 e 1968 e entre 1982 e março de 1985. A repressão do regime militar configurou o nascimento de uma ditadura desde o dia 2 de abril de 1964, com a perseguição a todos que se opunham à nova ordem. Nessa data, quando João Goulart seguia para o exílio, foi organizado em regime de urgência o autodenominado “Comando Supremo da Revolução”, composto por três membros: o brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo (Aeronáutica), o vice-almirante Augusto Rademaker (Marinha) e o general Artur da Costa e Silva, representante do Exército e homem-forte do triunvirato. Essa junta permaneceria no poder por duas semanas.
Nos primeiros dias depois do golpe, uma violenta repressão atingiu os setores politicamente mais mobilizados à esquerda no espectro político, como por exemplo o CGT, a União Nacional dos Estudantes (UNE), as Ligas Camponesas e grupos católicos como a Juventude Universitária Católica (JUC) e a Ação Popular (AP). No decorrer de todo o ano, milhares de pessoas foram presas de modo irregular, sob a justificativa de emergência revolucionária e por serem acusados de subversivos. Os casos de tortura foram muitos, principalmente no Nordeste. O líder comunista Gregório Bezerra, por exemplo, foi amarrado e arrastado pelas ruas de Recife.
A forma encontrada pelos generais para impor a força e cercear as liberdades em nome de uma tal “revolução democrática” foram os Atos Institucionais, como se denominavam as normas e os decretos elaborados no período de 1964 a 1969. Foram baixados pelos Comandantes-em-chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica ou pelo Presidente da República, com o respaldo do Conselho de Segurança Nacional. Essas normas estavam acima de todas as outras e até mesmo da Constituição. Na prática, foram mecanismos de legitimação e legalização das ações políticas dos militares, estabelecendo para eles próprios diversos poderes extra-constitucionais.
Na verdade, os AIs, como ficaram conhecidos, eram um mecanismo para manter na legalidade o domínio dos militares. Sem eles, a constituição de 1946 – considerada até então a mais democrática do País – tornaria inexecutável o regime militar, daí a necessidade de substituí-la por decretos mandados a cumprir pela força. Até, 1969 foram decretados 17, regulamentados por 130 Atos Complementares (ACs). Os quatro primeiros deles, baixados entre 1964 e 1968, não deixam a menor dúvida que o regime militar ou a “revolução” nasceu como ditadura desde o primeiro momento. Se não, vejamos.
O primeiro deles, de 9 de abril de 1964, foi redigido por Francisco dos Santos Nascimento, ainda com o Brasil sob o comando da Junta Militar. Trazia 33 artigos e dava ao governo militar o poder de alterar a constituição, cassar mandatos legislativos, suspender direitos políticos por dez anos e demitir, colocar em disponibilidade ou aposentar compulsoriamente qualquer pessoa que tivesse atentado contra a segurança do país, o regime democrático e a probidade da administração pública. Ao mesmo tempo, impunha eleições indiretas para a presidência da República no dia 11 de abril, estipulando que fosse terminado o mandato do presidente em 31 de janeiro de 1966, quando expiraria a vigência do ato. E não parou aí.
Em 27 de outubro, o mesmo ato foi ampliado. Todos os partidos políticos existentes desde 1945 foram extintos, aumentou o número de ministros do Supremo Tribunal Federal de 11 para 16, reabriu o processo de punição aos adversários do regime, estabeleceu que o presidente poderia decretar estado de sítio por 180 dias sem consultar o Congresso, intervir nos estados, decretar o recesso no Congresso, demitir funcionários por incompatibilidade com o regime e baixar decretos-lei e atos complementares sobre assuntos de segurança nacional. O Ato Complementar nº 1, do mesmo dia, estabeleceu as sanções a serem aplicadas contra cassados que se manifestassem politicamente, o que passou a ser qualificado como crime.
Quatro dias depois, o AC 2 estabeleceu disposições transitórias até serem constituídos os tribunais federais de primeira instância, enquanto o AC 3, no mesmo dia, determinava as formalidades para a aplicação da suspensão de direitos políticos e garantias constitucionais. O AC 4, de 20 de novembro, impôs nova legislação partidária e o País passou a ter apenas dois partidos políticos: Aliança Renovadora Nacional (Arena), governista, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que aglutinaria a oposição.
Em 5 de fevereiro de 1966, o presidente Castelo Branco baixou o AI-3, que estabelecia que os governadores e vices seriam eleitos indiretamente por um colégio eleitoral, formado pelos deputados estaduais. Também estabeleceu que os prefeitos das capitais e de cidades consideradas área de segurança nacional – por terem refinarias, por exemplo – seriam indicados pelos governadores, com aprovação das assembléias legislativas. Pelo novo calendário eleitoral, com a eleição presidencial em 3 de outubro seria indireta. Para o Congresso, em 15 de novembro. Com a pressão do governo, somada às cassações de deputados estaduais, a ARENA elegeu 17 governadores.
No dia 3 de outubro foram eleitos o marechal Artur da Costa e Silva, ministro da Guerra de Castelo Branco, e, para vice, o civil Pedro Aleixo, deputado federal eleito pela UDN e então na Arena. O MDB se absteve de votar nas eleições em protesto. No dia 12 de outubro foram cassados, por um período de dez anos, 6 deputados do MDB, entre os quais Sebastião Pais de Almeida, do antigo PSD, e Doutel de Andrade, do antigo PTB. Em 20 de outubro, o AC 24 impôs recesso parlamentar até 22 de novembro. Em 15 de novembro foram feitas as eleições legislativas e a Arena elegeu 277 assentos, contra 132 do MDB. Editado por Castelo Branco em 7 de dezembro de 1966, o AI-4 convocou ao Congresso Nacional o estabelecimento de uma nova carta constitucional, a Constituição de 1967, que perpetuava os atos autoritários e revogava definitivamente a Constituição de 1946.
E depois de 1982? A realização de eleições diretas para governadores naquele ano não representou, de forma alguma, que a ditadura militar havia acabado. Não se acaba com um regime de exceção por meio de algumas concessões se o poder continua a ser exercido de modo arbitrário. O comando central ainda estava nas mãos de um regime ditatorial. Por mais que João Batista de Oliveira Figueiredo prometesse que levaria o país à democracia de qualquer jeito – se preciso, “eu prendo e arrebento”, disse ele –, a ditadura ainda existia de todo jeito e ela mostrou que sim quando articulações do governo impediram que o país tivesse eleições diretas em 1984. Todos os argumentos “legais” ou constitucionais usados para não fazê-lo vinham de um regimento, de uma constituição autoritária, fruto de uma ditadura. Na verdade, somente a Constituição de 5 de outubro de 1988 pôs fim à ditadura no Brasil, pois, até então, vivia-se ainda sob as leis arbitrárias da ditadura militar.
Portanto, é preciso ser respeitoso e ético em relação à memória histórica, à sua verdade inquestionável e em consideração a todos aqueles que foram perseguidos ou mortos pelos militares que mandavam no País ao longo de 21 anos de ditadura militar.
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