A Primavera Anti-Temer

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Militantes do MTST ocupam a sede da Presidência da República em São Paulo - Foto: Foto: Oswaldo Corneti/ Fotos Públicas
Militantes do MTST ocupam a sede da Presidência da República em São Paulo – Foto: Oswaldo Corneti/ Fotos Públicas

Na última quarta-feira, houve duas manifestações simultâneas na avenida Paulista, centro cultural e financeiro de São Paulo. Primeiro, os militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto invadiram o escritório da Presidência da República, protestando contra o corte de verbas promovido pelo governo interino nos programas de habitação popular. Mais tarde, milhares de mulheres marcharam ruidosa e majestosamente pela avenida, em protesto contra o estupro coletivo de uma adolescente no Rio de Janeiro. No dia anterior, a mesma Paulista servira de palco para uma aula pública do professor Vladimir Safatle, que discorreu sobre marxismo no vão do Masp, como parte das atividades de greve da Universidade de São Paulo.

A estes movimentos, que aconteceram na via mais famosa da minha cidade, se poderiam acrescentar dezenas de outros, que tiveram e estão tendo lugar Brasil afora. O que eles significam?

Depois de sofrer o maior golpe da sua jovem existência, depois de experimentar a pior derrota desde o golpe de 1964, a democracia brasileira parece eletrizada de indignação e disposta a lutar por sua sobrevivência. Em vez de se encolher e reclamar, como talvez fosse esperado, os inconformados aproveitam cada oportunidade para deixar claro o seu repúdio aos atos e à mera existência do governo que surgiu do impeachment e tenta implantar no País uma distopia conservadora.

Os protestos contra o interino indesejado aparecem na Parada Gay (“Amar sem Temer”, diz o cartaz), se espalham pelas marchas feministas (“Ser mulher sem Temer”) e ganham corpo em toda parte, por meio da palavra de ordem que expressa as vísceras morais do País neste momento: “Fora Temer”.

O repúdio ao ocupante da presidência ressuscitou os movimentos sociais anestesiados por três governos do PT e fez ressurgir na sociedade o anseio pelo debate. Desde o ocaso da ditadura não se discutia tanta política. Nas escolas nas ONGs, nos teatros, nos sindicatos, na torcida organizada do Corinthians e do Palmeiras. As pessoas – sobretudo os jovens – querem entender o que nos trouxe a este momento terrível e o que é preciso fazer para ultrapassá-lo. De uma forma tocante e imprevista, o outono do impeachment tornou-se a primavera do pensamento. A primavera anti-Temer.

Alguém dirá que desde 2013 se debate política no Brasil, mas isso é meia verdade.

Em junho de 2013, ocorreu um levante imprevisto e espontâneo, que não foi antecipado por debates e nem foi seguido por eles, como poderia e deveria ter acontecido. A ausência de discussão e ação política da esquerda permitiu que a energia de 2013 se transformasse nas marchas pelo impeachment de 2015.

Durante esse intervalo de dois anos não houve debate. Apenas se denunciou de forma sistemática e avassaladora a corrupção petista, sem atenção às outras corrupções. Operações policiais se sucederam quase diariamente, enquanto os vazamentos regulares de pedaços escolhidos de processos ajudavam a minar a imagem do governo Dilma, já fragilizado por seus próprios erros e contradições. No final, o País foi conduzido ao matadouro da democracia por uma onda monumental e uniforme de propaganda.

O resultado dessa despolitização está aí, à vista de todos: um governo ilegítimo, frágil e precocemente decrépito, montado com o pior material humano da política brasileira, cujos ministros caem como moscas, envolvidos em denúncias de corrupção e tentativas de fugir da lei. É um governo que tenta se manter no poder entregando ao mercado a condução da política econômica e abraçando uma agenda liberal que pode nos transformar numa Grécia. Um governo de suspeitos que precisa comprar a boa vontade do Supremo e do Judiciário dando a eles um aumento de salários obsceno, que ameaça explodir as contas públicas que o interino jurara pôr em ordem.

Sem a legitimidade dos votos, Temer precisa comprar seu direito a estar no governo todos os dias, pagando com a moeda que for necessária a quem tenha poder de ameaçá-lo.

É contra esse estado de coisas que as pessoas se reúnem, discutem e marcham.

No dia 30 de maio, durante um debate realizado na Escola de Comunicação e Artes da USP, a professora Marilena Chauí comparou o espírito do momento que vivemos no Brasil aos eventos de 1968. Também naquele ano houve uma explosão mundial de rebeldia, liderada por jovens que recusavam a política e os políticos à sua volta. No Brasil, o ano terminou mal. Depois de passeatas monumentais, protestos generalizados e uma explosão de contestação artística, a primavera política foi esmagada. Os militares editaram o Ato Institucional Número 5 e a repressão recrudesceu. A resistência democrática foi derrotada.

Em outro contexto, o mesmo risco paira sobre nossas cabeças em 2016.

A indignação nas ruas não é suficiente para remover o interino e barrar os retrocessos econômicos e sociais que ele apresenta. Seu governo é tão frágil, tão incompetente, as chances de que tudo dê errado são tão grandes, que é possível que o barco aderne ainda mais à direita, em direção a alguma espécie legal de ditadura. O Judiciário e a polícia – para não falar das Forças Armadas – estão aí para garantir a ordem. E não faltam leis para ampará-los, inclusive uma Lei Antiterrorismo tinhosa o suficiente para transformar qualquer reunião em ato ilegal. A própria Dilma encaminhou essa monstruosidade ao Congresso.

Para impedir a volta do relógio, para garantir os avanços políticos e sociais que o País conseguiu nos últimos anos, é preciso que a ira das ruas produza efeitos na ordem política. A direita fez isso exemplarmente: reuniu enormes multidões e com a força das manchetes articulou o impeachment no Congresso. É assim que funciona. O movimento anti-golpe precisa produzir lideranças capazes de articular a indignação crescente, agregar ainda mais gente e costurar uma saída democrática para a crise. Apenas a soma de protestos com ação política criará essa possibilidade. Com uma perna só o movimento não avança.

Por isso é necessário seguir se reunindo, debatendo e organizando. Por isso é necessário criar uma frente nas ruas, na sociedade e no Congresso. Para evitar o que aconteceu em 1968. Para evitar que a primavera seja esmagada ou feneça por cansaço. O interino não se consolidou e a cada dia perde um milhão de amigos. Ao inverno que ele representa é preciso opor nossa alegria. Obstinadamente. Organizadamente. Lucidamente.

* Ivan Martins é jornalista, escritor e colunista do site da revista Época


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