Em um cenário de economia estagnada e pouca perspectiva de futuro, o cartunista Henrique de Souza Filho, o Henfil, mostrou a expectativa em torno da criação de um novo partido em um cartum do começo dos anos 1980. Na obra, a personagem Graúna, ave usada por Henfil para criticar as mazelas do Brasil, tem melhor visão do horizonte, por estar encarapitada sobre dois companheiros. Acontece então o seguinte diálogo entre um desses personagens e a ave:
– Graúna, está vendo alguma esperança?
– Tô, é o PT.
Desde então, passaram-se 35 anos. Fundado no domingo 10 de fevereiro de 1980, em reunião no Colégio Sion, em São Paulo, o PT embalou esperanças e fez a diferença no decorrer de sua trajetória. A marca histórica se deu em 12 anos na Presidência da República – os dois governos de Lula e o primeiro de Dilma Rousseff. Nesse período de prosperidade econômica, registraram-se conquistas sem precedentes, a começar pelo fato de 36 milhões de brasileiros saírem da pobreza extrema. No segundo governo Dilma, tudo mudou. Se prospectasse o horizonte por esses dias, a personagem Graúna ficaria desolada.
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Como não poderia deixar de ser, o problema passa pela economia. Passa em particular pela determinação do ministro Joaquim Levy em fazer um ajuste fiscal focado no corte de despesas de impacto social. Uma das medidas, aquela que endurece as regras do seguro-desemprego e do abono salarial, está aprovada. Seis dias antes da votação no Senado, um documento – Manifesto pela Mudança na Política Econômica e Contra o Ajuste – já alertava que o ajuste, além de insuficiente, “pode deteriorar ainda mais o quadro econômico brasileiro”.
Onze senadores, entre eles os petistas Paulo Paim (RS) e Lindbergh Farias (RJ), assinam o manifesto pedindo mudanças no rumo da política econômica. Também apoiam a iniciativa entidades ligadas ao PT, como a Central Única dos Trabalhadores (CUT), e personalidades ligadas ao partido, entre elas o economista Marcio Pochmann, e os ex-ministros Samuel Pinheiro Guimarães Neto, José Gomes Temporão e Tarso Genro. Em vez de arrocho fiscal associado a aperto monetário, eles defendem iniciativas para aumentar a arrecadação, como a taxação sobre grandes fortunas. Na prática, apostam que o crescimento econômico é imprescindível para a recuperação das contas públicas.
“O ajuste não ajusta, mas desajusta”, afirma o economista Marcio Pochmann. Na sua opinião, a origem da crise está na política. Até 2010, lembra Pochmann, encerrado o período eleitoral, oposição e situação desmobilizavam suas máquinas. A oposição refluía por alguns meses, enquanto a situação tratava de formar o governo. “Em 2014, a oposição não aceitou o resultado eleitoral. Continuou a utilizar sua máquina em campanha, para fazer pressão, manifestações, encaminhamentos ao Tribunal Superior Eleitoral”, diz o economista. “Por outro lado, o governo entrou em uma fase de fragmentação de sua base política, econômica e social. Em primeiro lugar, pela própria montagem do governo, que não agradou a ninguém.”
Na sequência, veio a desarticulação com o Congresso Nacional, que ajudou a enfraquecer ainda mais o governo. “Nesse quadro, decisões políticas levaram à crise da economia.” Para Pochmann, a decisão do governo de promover um profundo corte de gastos agrava ainda mais o cenário. Daí, seu alinhamento com o Manifesto Contra o Ajuste. “As causas do desequilíbrio foram a desoneração fiscal de mais de R$ 100 bilhões, concedida pelo governo às grandes empresas, as elevadas taxas de juros Selic, que transferem recursos para o sistema financeiro, e a queda da arrecadação devido ao baixo crescimento no ano passado”, registra o manifesto. Análises e manifestações similares devem pontuar o 5o Congresso do PT, que acontece neste mês em Salvador.
No momento em que o partido passa pela crise mais aguda de sua história, 800 delegados de todo o País buscam alternativas para a legenda. Entre as bases para o debate estão sete teses apresentadas pelas diferentes correntes do PT. A perplexidade diante do panorama é comum a todas as teses, assim como as críticas ao ajuste do governo. Até o documento da corrente Construindo um Novo Brasil (CNB), à qual pertence Lula, registra indignação com o fato de o peso do ajuste ter “recaído mais sobre os trabalhadores do que sobre outros setores das classes dominantes”. E destaca que a tarefa do PT, como partido da presidenta, é complexa: “Apoiar o Governo e, ao mesmo tempo, empurrá-lo para que cumpra o Programa sob o qual os governantes foram eleitos”.
O detalhe importante é saber se o PT consegue reconquistar o que já foi o seu maior patrimônio: a militância. Aguerrida no passado, ela está cada vez mais afastada da legenda. No partido desde a fundação, Marco Aurélio Garcia, assessor especial da Presidência da República, ficou chocado com o esvaziamento do encontro preparatório para o congresso realizado em São Paulo. Diante de fileiras e fileiras de cadeiras desocupadas, Garcia reconheceu que nunca havia visto uma reunião do PT tão vazia: “É um sintoma grave de uma crise que nos atinge de forma objetiva e subjetiva” (leia mais à página 60).
Para a socióloga Maria Victoria Benevides, o momento do PT não é só de desânimo: “É de depressão”. Filiada desde os tempos da fundação, ela acredita que a diferença entre o que foi dito na campanha de Dilma e o que aconteceu imediatamente depois da posse “chegou ao limite do suportável”. Na sua opinião, os parlamentares petistas deveriam votar contra as medidas provisórias do ajuste fiscal que atingem os interesses dos trabalhadores: “O partido tem de preservar Dilma, mas se colocar contra o ajuste fiscal como está sendo proposto”. A bancada petista não se articula para pressionar o governo, acredita a socióloga, porque falta uma liderança que coordene o movimento. Além disso, os parlamentares estariam ligados a interesses econômicos de seus financiadores.
A referência ao financiamento do partido e de campanhas eleitorais remete a outro ponto nevrálgico no PT, por causa das práticas investigadas durante o escândalo do Mensalão, em 2005, e dez anos depois, da operação Lava-Jato. Recentemente, o PT anunciou que o partido não receberá mais doações de empresas. O historiador Valter Pomar, da corrente Articulação de Esquerda, acredita que a medida é acertada, mas insuficiente. “Não basta decidir que o partido não receberá financiamento de empresários. É preciso que as candidaturas do PT também não recebam”.
A saída que Pomar e Maria Victoria visualizam para o PT é a mesma apontada pelo ex-ministro Tarso Genro: construir uma frente de esquerda, que una diferentes partidos, sindicatos, intelectuais e movimentos sociais (leia entrevista à página 54). Para eles, da forma como está configurado, o PT não é mais capaz de dar os rumos para a esquerda no Brasil.
Aglutinado no movimento O PT Não Vai Matar o Petismo, um grupo independente de ativistas sociais também apoia a formação de uma frente, pois parte do princípio de que o partido não consegue mais acompanhar as mudanças da sociedade “que ele próprio ajudou a transformar”. Por outro lado, defende que o petismo teria uma cultura política superior à estrutura partidária do PT, que, devidamente renovado, tem potencial para protagonizar uma “ressurreição”.
Com mais de uma centena de apoiadores, o movimento recém-criado reúne diferentes adeptos do petismo, entre simpatizantes e filiados. “Tem uma nova geração de esquerda no País, que também se conecta com as revoltas globais”, diz o cientista político Jean Tible, professor da USP, um dos organizadores do movimento. “Uma frente de esquerda precisa dialogar com essa geração, que se organiza por meio de coletivos e outras iniciativas.” Eles reconhecem como positivo o discurso pela renovação feito pela cúpula do partido, mas acreditam que os dirigentes têm dificuldade em tomar medidas concretas.
O processo de renovação pode começar pela própria forma de escolha dos dirigentes. Acabar com o sistema de eleições diretas para a direção do partido é proposta de seis dos sete documentos preparados para o congresso. A CBN, corrente majoritária, responde pela exceção, embora um de seus integrantes, o ministro Patrus Ananias, tenha defendido a mudança em artigo publicado no site do próprio PT: “Aparentemente mais democrático e participativo, o Processo de Eleições Diretas não trouxe os resultados esperados. Tornou-se, pelo contrário, um fator de manipulação. Levamos para o interior do partido os mesmos procedimentos condenáveis dos processos eleitorais.”
O cientista político Aldo Fornazieri, que atuou na organização do 1o Congresso do PT, em 1991, afirma que um dos fatores que conduziu a legenda à crise atual está ligado à organização interna. “Até o PT chegar ao poder, a dinâmica interna do partido era dada pelas correntes, que pensavam estrategicamente o País. Elas não se vergavam ao imediatismo”, diz Fornazieri, que é professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo. “Depois, quem passou a controlar de fato o partido foram os mandatos e quem tinha cargo nas máquinas públicas.”
Ao declarar seu ceticismo quanto ao futuro da legenda, Fornazieri lembra que, há pouco tempo, o próprio Lula lamentou o fato de o “PT ter se tornado um partido cada vez mais igual aos outros”. Por outro lado, ele chama a atenção para o fato de o ex-presidente ter voltado a fazer uma maior movimentação política. “Ao mesmo tempo em que não afirma que é candidato, Lula se expõe mais e quase age como se fosse. Com isso, cria uma perspectiva de poder”, diz o cientista político. “Essa pode ser, em parte, uma saída para o partido. Isso não significa que o PT não pagará um preço altíssimo nas eleições municipais do ano que vem e também em 2018.”
Apesar do horizonte turbulento, o presidente do PT, Rui Falcão, não joga a toalha. Conta que, de janeiro até a primeira quinzena de maio, o PT registrou 15.954 novos filiados. “Enquanto tem gente que sai, como a Marta, está cheio de gente entrando”, diz Falcão, referindo-se à senadora Marta Suplicy. De acordo com o Tribunal Superior Eleitoral, o PT é o segundo maior partido do Brasil, atrás apenas do PMDB. Tem hoje quase 1,6 milhão de filiados. O número, no entanto, pouco representa se a antiga e atuante militância estiver perdida para sempre.
De imediato, não há saída para o partido de forma isolada. O presidente do PT também aposta na união com “forças mais amplas” para seguir em frente. Sabe que os temas da corrupção e do futuro do PT estarão em alta em Salvador. Nesse momento de inflexão para o partido, propõe discutir também o modelo para o Brasil: “Vamos continuar com um modelo que corta, mas não arrecada? Que não faz a reforma tributária? Que não mexe com o imposto de renda regressivo, concentrador? Que não institui uma forma de reduzir desigualdade, o imposto sobre grandes fortunas?”
Como Lula, Rui Falcão integra a CNB, corrente que fez um registro pouco auspicioso no documento que preparou para o congresso de Salvador: “Os partidos não são eternos”. Não são eternos, mas podem durar muito. O Partido Social-Democrata da Alemanha, por exemplo, existe desde maio de 1875. Filiado à Internacional Socialista, sobreviveu até à perseguição nazista. O PT teve vida mais fácil. Agora, porém, enfrenta suas próprias mazelas.
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