A imagem que me vem à cabeça nessa manhã de terça-feira (24) é que o Brasil é um imenso transatlântico sem comandante. Um barco à deriva. Pior: uma nau sem rumo em suspense à espera do próximo escândalo, venha de onde vier, de alguma gravação, da Lava Jato, de Rodrigo Janot ou do STF.
Os líderes sumiram.
Michel Temer, já era previsto, está tão confuso quanto mostrou nos poemas publicados em 2013, em sua breve carreira literária, dos quais o mais emblemático chama-se “Embarque”: “Embarquei na tua nau sem rumo/ eu e tu/ tu porque não sabias/ para onde querias ir/ Eu, porque já tomei muitos rumos/ sem chegar a lugar nenhum”.
É um líder imposto pelas circunstâncias, sem voto, sem carisma e sem discurso.
Funciona como presidente do PMDB, e muito bem, por ser uma função exercida basicamente nos bastidores e que prescinde de apelo popular. Nisso ele é um poeta, parafraseando Romário: nas costuras feitas nas sombras, nos acordos silenciosos, nos pactos noturnos.
Nenhum presidente, no entanto, nem provisório, pode se legitimar dessa forma. Ele precisa ser ungido pelo calor do abraço popular, precisa tomar seu lugar no palanque, assumir o microfone, estimular a população que conduz. Precisa ser amado – numa democracia – ou temido – numa ditadura. Mas ele não é uma coisa nem outra.
É uma sombra que se desloca entre quatro paredes e percorre inúmeros corredores, esconde-se atrás de muros e de janelas, desloca-se em automóveis pretos, helicópteros e aviões cuidadosamente apartado daqueles que deveria presidir. Nunca teve e não tem o que dizer, comunica-se através de notas lacônicas ou porta-vozes ocasionais. Não só não tem o que dizer como ninguém quer ouvi-lo.
Cometeu um pecado capital, o de formar um ministério abaixo de qualquer suspeita, sujeito a chuvas e trovoadas, não só por colocar, na maioria das vezes, homens errados nos lugares incorretos, mas também por desmontar a estrutura que vinha funcionando há 13 anos e nada oferecer em seu lugar, senão impor novas perdas e danos à maioria da população trabalhadora e da classe média.
A valente Dilma Rousseff está praticamente submetida a uma prisão domiciliar, hospedada num palácio cujo portão está sob controle de um general linha-dura, que ninguém sabe o que faz no governo além de vigiá-la, cujo discurso não é amplificado porque a Rede Globo resolveu ignorá-la por completo, relegando-a a um exílio dentro do próprio país.
Embora tenha o que dizer, fala mais para o mundo do que para os brasileiros, o que simbolicamente é significativo, mas a afasta daqueles que deveriam ouvi-la. Com o passar do tempo consolida-se a sua versão de que um golpe a atingiu, mas ela não tem ninguém, a não ser deputados e senadores para repercuti-la. E não é absurdo supor que, além dos passos e de suas visitas, também seus telefones são ouvidos permanentemente por aqueles que não a querem de volta.
Lula, o mais qualificado para ser o líder desse período de transição cinzenta – não se sabe para onde – está acuado por seus próprios problemas pessoais e familiares, recolhido ao passado.
Não cumpre a promessa de lutar pela volta de sua protegida, não porque não queira, mas por preferir permanecer na moita, na esperança de que o deixem em paz, se esqueçam um pouco dele e não o perturbem, temeroso de que, se tomar o comando do transatlântico alguma onda o atinja de forma definitiva.
Cumpre um estranho período sabático, no qual pode ser visto mais frequentemente nos aeroportos internacionais do que no de Brasília. Evita falar ao telefone, escaldado pelas gravações clandestinas que o afastaram do ministério Dilma e agora o afastam dos seus interlocutores.
Eduardo Cunha, que é um líder nato, embora não esteja morto – como sugere Romero Jucá na conversa com Sergio Machado – é um morto-vivo, que age na calada da noite, impedido de se movimentar no palco onde costumava protagonizar seus espetáculos deploráveis.
Ainda lidera o seu exército, mas que se desmancha no ar, exibe uniformes rotos, armas enferrujadas, munição escassa, cada vez mais assemelhado a um exército de Brancaleone, formado por uma soldadesca ferida pelas flechas de ações penais que, embora não os tenham colocado fora de ação, fazem-nos sangrar todos os dias e é notório que a hemorragia, quando não estancada não leva senão ao óbito.
Cunha ainda se debate, como peixe depois de fisgado pelo anzol, mas o anzol está lá, preso a uma linha e a linha presa a uma vara que é grande e flexível, mas que limita seus movimentos e o encurrala num lago dourado, onde ainda vive os últimos dias de mordomia, mas a ampulheta trabalha a seu desfavor.
O atual presidente da Câmara dos Deputados, aquele que, ao assumir, prometeu surpreender, surpreende agora pela ausência. Não se sabe onde anda. Não é visto presidindo as sessões e parece ter o apoio tão somente dos caricaturistas que descobriram nele um novo personagem com imenso potencial humorístico.
Outro líder ferido é Renan Calheiros, que dispõe de tribuna, microfones, e ainda arrota poder, chama as denúncias de Delcídio de “delírio”, assume compromissos “para ajudar o país”, é o substituto formal de Temer, mas que tem pés de barro, uma ilha cercada de acusações por todos os lados, que apenas confirmam que seu futuro poderá ser igual ao passado, quando renunciou à presidência do Senado para não ser cassado, ao não conseguir explicar com que verbas sustentava uma ex-amante. A diferença entre esses tempos não tão remotos e os atuais é a sua vasta cabeleira, mas o discurso continua o mesmo.
O segundo colocado nas eleições de 2014 e que, numa cena de batalha com tantas baixas poderia ser o general como foi seu avô em 1985 também emudeceu, depois de tanto falar pelos cotovelos logo depois da derrota eleitoral, não só porque está, tal como o José do poema de Drummond, sem discurso, mas porque seus segredos estão vindo à tona, ressuscitados, mais uma vez na delação de Delcídio que ainda repousa nos escaninhos do STF e no diálogo assombroso entre Machado e Jucá que a Rede Globo mostrou ao país, no qual eles afirmam conhecerem bem “o esquema de Aécio”. Jucá, menos sofisticado, arrisca-se no palpite de que “Aécio será o primeiro comido”.
Não se sabe quem vazou a gravação. Se foi o próprio Machado, se foi a Polícia Federal, se foi a Lava Jato. A Folha de S. Paulo tem o direito, previsto no artigo 5º. da constituição de preservar a sua fonte. Há quem suspeite ter sido, de todo modo, um recado aos governantes provisórios: não vêm que não tem.
E la nave no va.
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