Um texto divulgado pelo Twitter nos informa que Praça Seca, na zona oeste do Rio de Janeiro, costumava ser um lugar aprazível. Havia uma sorveteria, cinema, pracinha e famílias passeando no fim de semana. Tudo mudou com a chegada do tráfico e dos milicianos, que transformaram o lugar num inferno. Agora, os traficantes são servidos na marra no restaurante da escola local e pegam de lá tudo o que desejam, como computadores. O Estado nada faz para impor a ordem e proteger os moradores.
Na noite de sábado, dia 21, Praça Seca tornou-se visível para o País inteiro como o local do estupro coletivo de uma adolescente de 16 anos por um grupo que se gabava de ter 30 homens. Os fatos ainda estão sendo esclarecidos, mas o que se disse até agora é assustador. A moça foi filmada desacordada e nua, enquanto homens faziam piadas sobre o estupro ao seu redor. O vídeo foi postado na internet, causou enorme comoção, e forçou a polícia a investigar.
A violência contra a mulher é tradicional e corriqueira no Brasil. A cultura do estupro está profundamente enraizada no País e produz mais de 50 mil vítimas por ano. É um problema específico, que precisa de atenção especial e permanente – das autoridades, dos educadores e das famílias. É uma doença social que tem de ser combatida de forma urgente e intransigente. O País não pode ter 51% da sua população exposta diariamente – e quase sempre impunemente – à degradação do estupro.
Dito isso, o que aconteceu em Praça Seca parece envolver mais do que um grupo de homens machistas e uma mulher indefesa. O que se abriu ali foi um abismo ético que tem a ver com um País que afunda em meio à criminalidade e à desigualdade social.
Jovens que estupram e se gabam na internet vivem num universo de valores próprios, que se expande à margem da civilização e penetra todas as classes sociais. Respeitam apenas a violência, usam a lógica da predação. A garota é currada porque não tem como se defender e não pode retaliar. Como mulher, é a mais vulnerável num meio de pessoas já vulneráveis pela ausência do Estado. A moça de Praça Seca disse que no dia seguinte ao estupro foi ao chefe do tráfico local pedir que lhe devolvessem o celular. Ao menos isso.
É sobre esse Estado que não educa, não ampara e não faz o papel de polícia nas periferias que incidirão os cortes de orçamento propostos pelo interino Michel Temer esta semana – e isso, ainda que não pareça, tem tudo a ver com a tragédia do estupro.
Temer alega um rombo de R$ 170 bilhões nas contas públicas para propor o congelamento das despesas. As projeções mostram que se essa proposta já estivesse em prática este ano, os gastos federais seriam metade do que estão sendo. Imaginem: metade dos hospitais, metade das escolas e metade dos policiais para atender populações como a de Praça Seca, que já não recebem nada do Estado. Quem ganha com isso são os predadores sociais, que vão fincar suas garras ainda mais fundo nas comunidades desamparadas, ganhando espaço para intimidar, extorquir, estuprar e matar.
Na periferia das grandes cidades legiões de jovens crescem cercados pela violência e pelo crime, convivendo diariamente com a barbárie. São estupros, assassinatos, chacinas e brutalidade policial. Como pano de fundo, a guerra às drogas, que só faz enriquecer o crime organizado e corromper a polícia e o tecido social. Esse cenário de abandono ajuda a explicar enigmas como o de Praça Seca. É uma sociedade devorando a si mesma.
Em seus 13 anos de governo, o PT não se empenhou o suficiente para reverter essa situação — mas o grupo que chegou ao poder pelo impeachment parece determinado a piorá-la. Eles não têm políticas para as mulheres, não se incomodam em incluir os negros, não estão preocupados em proteger economicamente os pobres e os periféricos. Um ministro da Educação que insulta o País recebendo Alexandre Frota não vai se lançar numa campanha contra o estupro. Seria indelicado com seu visitante.
A esperança para a moça de Praça Seca reside na luta das mulheres (e dos homens de bem) para acabar com o machismo, com a criminalidade e com a desigualdade social brasileira. Essas coisas estão interligadas e fazem do Brasil um País perigoso para as mulheres. Sobretudo durante um governo apenas de homens brancos, eleito por deputados que não gostam de mulheres independentes e costumam culpá-las pela violência de que são vítimas nas ruas. Um governo apenas para belas, recatadas e do lar.
* Ivan Martins é jornalista, escritor e colunista do site da revista Época
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