A farmacêutica Ana Paula Maz, 40 anos, o empresário Carlos Cavala, 50, e o estudante Kim Kataguiri, 18, nunca estiveram na Venezuela e não conhecem outros presidentes do país vizinho, além do falecido Hugo Chávez e do atual Nicolás Maduro. Também não recordam o nome de outras cidades venezuelanas que não o da capital Caracas, mas se manifestaram contrários ao que chamam de “venezuelização” do Brasil.
Os três estavam no protesto que parou a Avenida Paulista, na região central de São Paulo, no dia 15 de novembro último, e reuniu cerca de dez mil pessoas. Naquele dia, Ana Paula, distante da multidão, dividia com uma amiga a tarefa de segurar um cartaz branco com a seguinte mensagem escrita em letras verdes e amarelas: “Aqui é Brasil, não Cuba nem Venezuela”. Perto dela, Cavala exibia um cartaz amarelo com as palavras “Liberdade, Democracia, Intervenção”, escritas à mão. Do alto de um carro de som, Kim anunciava por um microfone: “Não queremos ser a Venezuela. Não queremos ser bolivarianos. Não queremos ser chavistas”.
Mas, afinal, o que significa virar uma Venezuela? “Acompanho pela imprensa que o povo venezuelano não pode se manifestar, tem seus direitos cerceados e vive sem liberdade de imprensa. Sou a favor de uma sociedade meritocrática. Não acredito nessa ideia de que todo mundo pode ser igual”, respondeu Ana Paula. Para Cavala, “significa tirar o Brasil do buraco que esses comunistas do PT deixaram”. Kim se prolonga um pouco mais no assunto: “Na Venezuela, acabaram a democracia e a economia. O estágio que estamos é o inicial, enquanto eles já estão no estágio avançado. Precisamos fazer algo para brecar esse caminho, antes que o nosso País também seja destruído”.
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No entanto, Ana Paula, Carlos e Kim talvez não saibam que, ao participar de um protesto que pede a volta dos militares ao poder e o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, estão operando, justamente, o processo de “venezuelização” do Brasil que dizem rejeitar.
A história
O general Hugo Rafael Chávez Frias chegou ao poder em 1998, depois de uma campanha centrada no combate à pobreza. Venceu o social-cristão Henrique Salas Römer por uma diferença de um milhão de votos − margem gritante para eleições facultativas, como são na venezuelana.
O partido de Chávez, Movimiento Quinta República, fundado por ele no ano anterior, trazia ao espectro da política local a figura de Simón Bolívar − um dos líderes da América Latina independentista do século 19 −, por meio de um regime chamado de “bolivariano”. Sua vitória significou, mais do que a chegada inédita de um partido de esquerda ao cargo máximo do país, o fim do Pacto de Punto Fijo, um tratado entre os três principais grupos políticos que se revezaram no poder por 40 anos.
Com isso, a polarização política, até então inexistente, tornou-se uma das principais sombras do governo de Chávez. Em abril de 2002, a divisão entre chavistas e oposicionistas explodiu nas ruas e fez com que os militares, apoiados pela mídia e pelos Estados Unidos, aplicassem um golpe. “A direita se preparou mal para a eleição de 1998. E a reação ao golpe foi a radicalização do chavismo. O Chávez pré-golpe era o presidente que falava sempre em Simón Bolívar, mas também dizia que os estrangeiros iriam ganhar dinheiro na Venezuela. Até hoje o ranço das camadas dominantes que apoiaram aquela decisão extrema é absolutamente chocante”, afirma Samy Adghirni, correspondente da Folha de S.Paulo em Caracas.
O golpe militar na Venezuela durou 47 horas – a história pode ser vista no documentário La Revolucion no Sera Transmitida (2003), dos irlandeses Kim Bartley e Donnacha O’Briain −, tempo suficiente para Pedro Carmona Estanga, presidente de uma organização comercial venezuelana, assumir o poder e anunciar que escreveria uma nova Constituição.
Nas ruas, no entanto, as diferenças atingiram o ápice: enquanto Chávez era levado para uma prisão no Caribe, manifestantes favoráveis e contrários ao seu governo se enfrentavam com pedras, paus e armas de fogo. A situação chegou ao limite quando a Polícia Metropolitana de Caracas foi desmascarada por mandar atiradores de elite disparar contra as pessoas nas ruas para, depois, culpar o governo chavista de ter perdido o controle. O resultado foi a morte de 19 pessoas em um período de cinco dias.
No entanto, os soldados das Forças Armadas, identificados com as políticas de inclusão social do Movimiento Quinta República, passaram a desobedecer às ordens de seus superiores no segundo dia do governo provisório de Estanga, e resolveram libertar Chávez, que voltou para Caracas a bordo de um helicóptero camuflado. No dia 14 de abril de 2002, a aeronave pousou na pista do aeroporto da capital, abarrotada por uma multidão que esperava a chegada do presidente.
A partir daquele dia, Chávez mudou a maneira de governar seu país: enfraqueceu a mídia privada, acusada de golpista, fortalecendo os canais públicos de televisão, apontou os lucros da estatal do petróleo PDVSA em direção às classes menos favorecidas, retirando benefícios econômicos de camadas mais ricas, e iniciou um discurso de demonização do então presidente George W. Bush, entrando na lista dos países hostis aos Estados Unidos.
Assim, a Venezuela viu surgir um fosso entre suas classes sociais. “Moro em um bairro de Caracas anti-Chávez. Se algum chavista entrar em uma loja e declarar posição, pode nem ser atendido. A agente imobiliária que me atendeu disse que os pobres são como ‘animais’ e por isso ‘não deveriam votar’. Isso me deixou apavorado. O pior é que, semanas depois, eu estava vendo e ouvindo as mesmas coisas no Brasil”, afirma Adghirni. “Nesse sentido, a venezualização do Brasil está acontecendo. Ou seja, a radicalização das posições e a banalização do discurso do ódio e dos ataques. Uma venezuelização que vem de baixo, e não de cima.”
A Venezuela de hoje
Chávez morreu em 2013, vítima de um câncer na próstata, deixando seu sucessor, Nicolás Maduro, no comando, além de quatro milhões de pessoas que alcançaram a classe média, um crescimento de 5,2% do Produto Interno Bruto em 2012, segundo o Banco Mundial, e uma inflação anual de 20%. Deixou também para Maduro a herança de ódio irracional dos setores oposicionistas, que promoveram 4.410 manifestações em 2013, de acordo com o Observatório Venezuelano de Conflito Social.
Desses atos, iniciou-se a crise política de fevereiro deste ano, que colocou a Venezuela novamente no noticiário mundial e aguçou a grande imprensa brasileira. “É preocupante ver a reprodução por parte de setores mais conservadores da nossa sociedade de um discurso de intolerância e irracionalidade similar à expressão da burguesia venezuelana, como a ideia de que ‘vamos virar Cuba’, a defesa da volta dos militares, um ódio e uma intransigência que já eram vistos desde a abertura da Copa do Mundo deste ano”, analisa Igor Fuser, jornalista e professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, em São Paulo.
“Quem fala que não quer ‘virar uma Venezuela’ deveria ter cuidado para não representar os mesmos valores antidemocráticos que está criticando. Pedir o retorno da ditadura militar é uma prática semelhante à ocorrida na história recente daquele país, com golpes militares e ódio entre classes. Os setores da oposição brasileira precisam se precaver para não ocorrer isso”, diz Rafael Antonio Duarte Villa, livre-docente em Relações Internacionais na América Latina da Universidade de São Paulo.
Se nós, brasileiros, somos parecidos com os venezuelanos no ódio que separa as classes dominantes dos estratos populares, estamos distantes de qualquer semelhança econômica e política com o país vizinho. O Brasil é, hoje, a 7ª maior economia do mundo, enquanto a Venezuela ocupa a 35ª posição, atrás da Colômbia e da Argentina, na América do Sul, e da Tailândia e do Irã, países asiáticos, segundo o Fundo Monetário Internacional.
O Brasil também é o maior produtor mundial de laranja, café, carne bovina e açúcar e mantém sólidas relações comerciais com potências econômicas − China e Estados Unidos – e países da periferia do comércio globalizado − Argentina e África do Sul. A Venezuela, por sua vez, depende inteiramente do petróleo vendido aos Estados Unidos, dinheiro que financia programas sociais e organiza a economia do país.
O sistema político venezuelano, distinto em vários pontos do brasileiro, é hoje antagonista do modelo de democracia liberal, seguido pela maioria dos países latino-americanos, mas também não impediu Jimmy Carter, ex-presidente dos Estados Unidos, de afirmar, ainda em 2012, que o “processo eleitoral da Venezuela é o melhor do mundo”.
“Teríamos muitos passos a percorrer para chegarmos ao bolivarianismo até do ponto de vista da inspiração”, analisa Leandro Consentino, professor de Relações Internacionais da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. “Os governantes brasileiros são pessoas com ideias próprias, não são influenciados por ninguém. O mesmo vale para os que governam a Venezuela. Essa coisa de influência é ridícula”, diz Fuser.
Países amigos
A relação entre Brasil e Venezuela se estreitou em 1999, quando Chávez assumiu o poder. Ele viu no País o parceiro regional que precisaria para ganhar um novo papel na América do Sul. “Quando Chávez assumiu, Fernando Henrique Cardoso já estava reeleito. Não dá para dizer que as relações entre os dois eram excelentes, mas há elogios de Chávez registrados em cartas que hoje estão expostas no Instituto Fernando Henrique Cardoso”, diz Consentino.
Por e-mail, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou que manteve boas relações com Chávez, mas criticou os rumos que o governo tomou depois de sua saída do cargo. “Em 2002, o Brasil liderou a condenação dos países latino-americanos ao golpe que o tirou do poder por alguns dias. Chávez tomou rumos mais radicais depois desse episódio, e o regime chavista se tornou crescentemente autoritário, embora mantendo alguns procedimentos democráticos”, escreveu.
Para Fernando Henrique, porém, o governo do PT não tem tendências bolivarianas, como argumentam os oposicionistas da presidenta Dilma Rousseff, reeleita em outubro. “O conjunto do governo não pode ser chamado de bolivariano, pois não é favorável à supressão crescente das liberdades e dos direitos democráticos e ao controle crescente dos preços da economia pelo Estado.”
O ex-presidente FHC esteve com Chávez em duas oportunidades: a primeira aconteceu em dezembro de 1998, no Palácio do Planalto, em Brasília, pouco antes da posse do presidente venezuelano. A segunda ocorreu em abril de 2000, quando Fernando Henrique fez uma viagem oficial a Venezuela – nesta, Chávez o teria chamado de “mi maestro” (meu maestro).
A partir de 2003, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, as relações entre os dois países melhoraram comercialmente e regionalmente. Além disso, Chávez e Lula se tornaram amigos. Socialmente, as políticas brasileiras e venezuelanas de inserção social também se encontraram. Os governos de Lula e Chávez foram responsáveis por mudar o panorama do início do século nos dois países: a taxa de pessoas vivendo com menos de US$ 2 por dia no Brasil é de 8,4%, enquanto a da Venezuela é de 9,8%, segundo dados da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação.
“Acho ótimo que o Brasil vire uma Venezuela porque esse é o caminho que interessa ao povo: igualdade social crescendo, e as condições de vida da população mais necessitada melhorando”, avalia Fuser. Para Rafael Villa, ainda que controverso democraticamente, o regime bolivariano possui qualidades que merecem melhor observação. “O resultado dessa expressão é ambíguo. Todo o processo político e social é complexo. A Venezuela, embora tenha um saldo negativo em alguns pontos, tem aspectos positivos em torno das políticas sociais. Aí a pergunta: por que não virar uma Venezuela?”.
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