[03 de 100] A obra-prima pouco conhecida de Stevenson

O termo “morgado” ou “morgadio” pode ser definido como uma forma de organização familiar que cria uma linhagem, bem como um código para designar seus sucessores, estatutos e comportamentos. Está nos dicionários que, no regime de morgadio, os domínios senhoriais eram inalienáveis, indivisíveis e insusceptíveis de partilha por morte do seu titular, transmitindo-se nas mesmas condições ao descendente primogênito do sexo masculino. Desse modo, buscava-se a perpetuação do poder econômico e social da família de que fazia parte, ao longo de sucessivas gerações. A partir desse conceito tão usual entre os nobres no século 18, o escritor escocês Robert Louis Stevenson (1850-1894) escreveu O Morgado de Ballantrae, considerado por Henry James (1843-1916), Jorge Luis Borges (1899-1986) e G. K. Chesterton (1874-1936), entre outros, seu livro preferido e a obra-prima de Stevenson – opinião ratificada por todos os seus biógrafos.

Borges amava tanto a história que, em parceria com seu inseparável parceiro literário Adolfo Bioy Casares (1914-1999), chegou a reescrever um de seus episódios como reverência à sua grandiosidade. James disse que sua leitura lhe proporcionou a maior excitação literária que conheceu em toda a sua vida. Chesterton definiu os capítulos que se passam em Burrisddeer como comparáveis em densidade às grandes tragédias gregas. Estranho, portanto, que a obra tenha despertado quase nenhum interesse dos editores brasileiros – que se limitam a reeditar regularmente apenas A Ilha do Tesouro e O Médico e O Monstro, seus romances mais conhecidos em todo o mundo. Foram apenas duas edições do texto original – pela Vecchi, na década de 1930; e pela L&PM, no verão de 1985. Em maio de 1953, saiu a versão em história em quadrinhos, pela Editora Ebal, na coleção Edição Maravilhosa.

Publicado originalmente em 1899, cinco anos antes de Machado de Assis lançar Esaú e Jacó, O Morgado de Ballantraenarra a história de dois irmãos, filhos de nobres que, como Caim e Abel, vivem em extremos e descobrem que se odeiam: um representa o bem e o outro o mal. Enquanto o bom possui as virtudes, como define o tradutor Henrique de Araújo Mesquita, o mal possui as graças e os talentos. O narrador se chama Efraim Mackellar, administrador do espólio da família Durrisdeer na Escócia, que conta a história como uma autobiografia – sem se privar de opiniões e considerações – em que testemunha a relação entre James Durie (o mais velho) e Henry Durie (o mais novo). Os dois acabam arrastados para o movimento político – de caráter católico e anti-protestante – conhecido como Jacobitismo, ocorrido nos séculos XVII e XVIII na Grã-Bretanha e que pretendia restaurar o reinado da casa dos Stuarts na Inglaterra e Escócia.

Os dois fazem um pacto: tomariam partido dos dois lados, de modo que quem ganhasse salvaria o status de nobreza e as propriedades da família. Henry é direcionado aos rebeldes, mas o primogênito James quer esse papel para si e acusa o caçula de tentar usurpar seu lugar. Ambos concordam em decidir o impasse com um cara ou coroa. O mais velho vence e se junta aos revoltosos, enquanto Henry dá apoio ao Rei George II, que vence a guerra. James é considerado morto, enquanto Henry herda a propriedade. Se não bastasse, por pressão do pai dos rapazes, a noiva inconsolável de James se casa com Henry, o que amplia a fortuna dos Durie. Henry paga um preço alto por isso, acusado de traição e cobiça, enquanto a família o despreza.

Num ritmo excitante de aventuras, com direito a piratas, os dois se reencontram no confronto final em que só um deverá sair vivo. “A narrativa do duelo, do verdadeiro duelo que travam, é uma das passagens mais emocionantes da literatura”, observa Mesquita. Na definição do próprio autor, seu romance, no gênero aventura, é “um longo conto, envolvendo muitas terras: vários países e os confins da Terra”. Antes de terminar a história, ele escreveu ao amigo Henry James: “Minha história é uma profunda tragédia humana, cheguei mesmo a hesitar antes de concluí-la”. Não foi fácil terminar o livro porque ele o escreveu ao longo de muitos anos e incontáveis viagens por países distantes. Boa parte ele fez em alto mar. “O caráter e o destino dos dois inimigos fraternos” teria sido a companhia do autor em muitos portos, “onde se refletiam as estrelas”.

O Morgado é um livro indispensável para todos aqueles que querem conhecer melhor a obra do homem que escreveu clássicos inesquecíveis, além de ser uma daquelas histórias que acompanham e se fazem presentes na imaginação do leitor por toda a vida.


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