[06 de 100] A modernidade dos ratos de Dyonélio Machado

Tudo bem que não existe mais o hábito do leiteiro deixar uma garrafa de vidro com o indispensável líquido na porta das casas no fim da madrugada ou começo da manhã. Essa prática era comum nas grandes cidades brasileiras até a década de 1960. Fora isso e a mudança da moeda, então o réis e agora real, o romance Os Ratos, do psiquiatra e escritor gaúcho Dyonélio Machado (1895-1985), lançado em 1935, tem uma atualidade que impressiona. E uma singularidade – originalidade talvez seja o melhor termo – como raras vezes se viu na história da literatura brasileira – similar, nesse aspecto, ao aterrorizante conto Os Demônios, marco da ficção de terror nacional, lançado por Aluisio Azevedo (1853-1913) em 1893. Enquanto se consolidava – e se discutia – o surgimento do romance regionalista, com nomes importantes como Jorge Amado (1912-2001), José Lins do Rego (1901-1957) e outros, com livros ambientados no mundo rural, Machado apostou nessa trama urbana arrebatadora que deixaria Franz Kafka (1883-1924) surpreso. Não que Os Ratos seja uma influência direta do escritor tcheco. Mas seu caráter claustrofóbico diante de uma aparente situação rotineira remete a lembrança a seus livros de aflição mental. 

O romance de Machado conta um período de 24 horas na vida do funcionário público Naziazeno Barbosa, que precisa conseguir até a noite o dinheiro para pagar as contas atrasadas que tem com o leiteiro do bairro – ele o ameaçou de cortar a entrega do produto na manhã seguinte, o que deixaria sua família desamparada. A dívida não é grande, de 53 mil réis. Mas, para ele, torna-se um pesadelo pagá-la. No primeiro momento, o burocrata pensa que não terá maiores dificuldades, pois planeja pedir dinheiro emprestado a seu chefe, o diretor da repartição, ou, em último caso, recorrer ao fiel amigo Duque. Mas não encontra nenhum deles no primeiro momento. E sai à procura de ambos. Depara-se com o diretor, que se nega a atendê-lo. Assim começa sua angústia, mesmo com a disposição de dois amigos em tentar ajudá-lo. Barbosa segue numa corrida contra o tempo pelo centro de Porto Alegre para obter dinheiro emprestado.

Entre perspectivas, esperanças, frustrações e desilusões, ele tentar comover alguém que o ampare. Mas só encontra negativas e desconfianças. “Aquela suspeita de ‘desonestidade’, se o revoltava e lhe esfriava o entusiasmo, por outro lado lhe dera quase a certeza de se sair bem”, escreveu Machado. A tensão permeia todo o romance, angustia quem lê. “O seu coração bateu mais acelerado. Veio-lhe um pouco de dor de cabeça. É preciso retardar mais o passo. A casa está bem ali, a bem dizer defronte”. Independente do resultado da empreitada do personagem, ao deitar depois do cansativo dia, ele ainda tem de lidar com o barulho dos ratos que caminham sobre sua mesa – sim, nessa passagem se entende o sentido do título. Por mais que tente, não encontra forças para se levantar e afastar os roedores do pouco de ilusão que lhe resta sobre o mundo. A trama não podia ser mais trivial, aparentemente. Há, entretanto, um sutil caráter político no livro.

De modo eficiente, o autor provoca interessante reflexão sobre as relações pessoais e sociais. Enquanto se acompanha o drama de Barbosa, percebe-se uma crítica mordaz à mesquinhez, tanto individualmente como numa sociedade de valores materialistas, submissa à dominação do dinheiro e alheia a uma parcela da população que vive à mercê da pobreza e de dívidas. Se hoje os empréstimos de agiotas citados na história são proibidos, a aflição da busca por fundos permanece por meio de empréstimos consignados, leasings, financiadoras e, principalmente, os bancos, com seus juros escorchantes. Impossível não compartilhar a adrenalina que vem do protagonista. Para criticar a ineficiência das instituições públicas brasileiras, em uma passagem da história, Barbosa, como funcionário público da Divisão de Levantamento de Faturas, não hesita em deixar as faturas pelo menos dez meses atrasadas e argumenta como justificativa que não é um serviço que precisa estar em dia.

Dyonélio Machado consegue dissolver no seu texto influências inevitáveis, mas só perceptíveis de modo muito tênue, não só de Kafka, como também do Prêmio Nobel Knut Hansun (1959-1952), autor de Fome, cuja primeira edição foi publicada no Brasil em 1920, pela Cultura Brasileira. Mesmo adotado em vestibular, o título nunca teve o merecido destaque entre os grandes livros brasileiros. Não evitou que se tornasse uma das obras mais influentes da segunda geração do modernismo no Brasil, e recebeu o prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras em 1935. Machado escreveu outros livros de qualidade, como O Louco de Cati – de valor literário só reconhecido depois de sua morte. Mas Os Ratos, seu primeiro e mais famoso trabalho, nasceu de um pedido do seu amigo, o escritor Erico Verissimo (1905 – 1975) para participar de um concurso literário da Livraria Globo. Além de editor, Veríssimo – a quem Machado dedica o romance – era responsável pela Revista do Globo, publicação quinzenal de atualidades feita pela mesma editora. Foi uma sem dúvida uma das estréias mais arrebatadoras da literatura nacional.  


Comentários

Uma resposta para “[06 de 100] A modernidade dos ratos de Dyonélio Machado”

  1. Avatar de Jussier Feitosa Rosendo
    Jussier Feitosa Rosendo

    Boa tarde!!!
    Sou Professor de História, ensino Fundamental II e ensino Médio da Rede Estadual do Estado de São Paulo, Capital.Militante Sindical da Apeoesp( Sindicato Estadual dos Professores. Do Estado de SP), ora degredado( “Designado”) pelo Ilustríssimo Sr. Chefe de Gabinete da Secretaria de Estado da Educação de SP, em razão de um processo Administrativo de Natureza Disciplinar, por ter denunciado, com provas cabais das irregularidades Administrativa- financeiras cometidas pelo Corpo Gestor, solicitação feitas pelas ex’s Dirigente Regional de Ensino e da Diretora da Unidade Escolar.
    Essa última alega que eu tumultuava as reuniões com as minhas posições contrárias a política governamental; alega também que não agi com urbanidade ao escrever a seguinte frase na sala dos Professores:” Quem foi o verme, lacaio, rato que arranca o material da Apeoesp, a escola não é sua, ela é pública, é de TODOS!!!…” Pois é comum servidores públicos arrancar na cala da noite o material informativo do sindicato, sem prévia autorização, sem debate, etc. Acho isso tudo um absurdo!!!!

    Att,
    Jussier.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.