Há exatos dez anos morria Milton Santos, um dos mais importantes estudiosos brasileiros. O geógrafo baiano é o responsável por ter dado uma nova visão para o conceito de espaço geográfico. Ele repensou as cidades em países subdesenvolvidos e redefiniu os conceitos de centro e periferia. Superou todas as óbvias adversidades advindas do fato de ter nascido negro e pobre. Foi perseguido pelos órgão de repressão da ditadura militar e exilado na década de 70, época em que ganhou grande prestígio internacional.
Em sua homenagem, a Brasileiros compartilha abaixo um texto publicado, em 2001, pela professora e amiga de Santos, Maria Adélia Aparecida de Souza. Também recomendamos o site mantido pela família do geógrafo, que pretende ser um grande repositório de informações sobre Milton Santos.
Uma lição de Milton, o filósofo da geografia*
Maria Adélia Aparecida de Souza
Tive o privilégio de ter Milton Santos como amigo, parceiro de muitas caminhadas, socorro das horas graves, mestre na vida e na Geografia.
Com ele tentava aprender sobre a paciência, a espera, o rigor, o texto claro com sonoridade agradável, a não ter medo de pensar, não ceder nunca, mas jamais fechar a porta. Com ele estava aprendendo a descobrir a Filosofia para compreender a Geografia e com ela entender este mundo novo, mutante, veloz, onde a volúpia enleva os incautos.
Ensinou-me que a Geografia é uma filosofia das técnicas e que tem uma imensa contribuição a dar para a compreensão da sociedade e, com ela, olhar de frente e otimista para este período popular da história em que vivemos. Tempo de esperança no mundo novo que se forja, com a participação efetiva da maioria pobre, com suas maravilhosas estratégias de sobrevivência e de vida.
Mundo novo e ainda incompreensível. Mundo solidário desses homens pobres e lentos que dominam o planeta. Entendi que, hoje, a âncora é o futuro e que temos a possibilidade de decidir como nunca sobre ele; que o passado é reflexão, o futuro uma certeza. Que a globalização é uma metáfora e que é nos lugares, este espaço do acontecer solidário, que se forja a resistência no embate da vida cotidiana.
Sobre a vida ensinou-me que somos únicos, que é fundamental acreditar na humanidade e ter confiança no povo; que o amor não é uma linearidade e não é a razão quem decide sobre ele.
Ensinou-me o que havia aprendido com seu grande amigo Navarro de Brito, que não tenho inimigos, pois eu é quem os escolho. Não aprendi ainda a lição da paciência, atributo da juventude, ainda ontem me dizia ele. Confundo-a, por vezes, com a tolerância desnecessária. Não suporto a intolerância e a hipocrisia da sociedade e da universidade para com os negros e mais ainda com os negros ilustres. Eu o vi, durante décadas, se divertir e enfrentá-las com a sabedoria dos grandes.
Demorei a enfronhar-me em suas conversas: seu sub-texto é quem era precioso. Sua ironia imaculada. Sua alegria contagiante. O Brasil perdeu com Milton muito dela e da sua ternura, atributo inadmissível para tão difícil, firme e complexa personalidade. Mas quem se esquecerá da elegância e da ternura de Milton?
Sua obra, ainda pouco conhecida e estudada no Brasil, revoluciona não apenas a Geografia, mas as ciências humanas e sociais.
Com sua genial conceituação sobre o espaço geográfico, esse sistema indissociável de objetos e ações, Milton nos dá a possibilidade de compreender sobre a totalidade-mundo. Revisita a Geografia e oferece, especialmente aos geógrafos brasileiros,a possibilidade ímpar de aprofundar o conhecimento sobre o nosso país, oferecendo-nos uma preciosidade que é a compreensão, neste gigante continental, do território como abrigo de todos os homens, ou o espaço banal e o território como recurso para os interesses hegemônicos e para as políticas levadas a efeito no Brasil de hoje.
Compreender a formação territorial a partir desses conceitos é oferecer à sociedade um texto geográfico rigoroso, que poderá fundamentar um discurso político vigoroso. Ensinou-me a ver então que o Brasil de hoje é governado em função dos interesses dos poderosos, pois para eles o território é preparado. O povo, cada vez mais, perde seu abrigo: não há trabalho, não há comida, não há escolas, hospitais. O território do povo está esquecido.
Sugeriu-me a Geografia das desigualdades e despertou-me o interesse pela Geografia da Fome, apesar de certa parte da comunidade científica insistir que ela foi abolida do mundo, há décadas.
Ensinava-me sobre o método no trabalho intelectual: na Geografia, a ter rigor metodológico e conceitual, para jamais me deixar enganar com falsas questões e problemas científicos. Foi crítico contundente da formulação difundida sobre a questão ambiental, à qual juntei a crítica à “sustentabilidade”, ensinando-nos o rigor da diferenciação entre a natureza,o espaço geográfico, o meio. Foi um artesão do método. A Geografia jamais poderá ser a mesma depois da obra de Milton. Persistir entendendo-a como “física” relacionando sociedade e natureza é ignorar o movimento do mundo, explicado não apenas pelos geógrafos, mas pelas ciências, em geral; é ignorar a história dos homens.
Milton ensinava-me que atravessamos a racionalidade econômica sem muitos avanços para a totalidade da humanidade, e que estamos mergulhando na nova racionalidade, a racionalidade política. É chegada a hora da verdade. É preciso estar preparado para ela. E ela precisará, e muito, dos bons intelectuais. É preciso se preparar para a grande batalha que se avizinha, dizia-me ele, há exatos dez dias atrás, resistindo à insuportável dor que o torturava. É preciso continuar, sempre… Vamos continuar, insistiu, várias vezes…
A partida de Milton nos deixa órfãos: o Brasil perde um de seus mais dedicados vigilantes; a política brasileira, um observador e pensador rigoroso, seu revolucionário mais autêntico. A Geografia perde seu filósofo;a Universidade, seu mais elegante, destacado, dedicado e competente professor e intelectual.
Perdemos, seus discípulos, amigos e alunos, espalhados pelo mundo todo, nosso mestre e um grande amigo. Mas, o céu está em festa…
Viva Milton Santos, um cidadão do mundo que nos deixa a esperança como herança!
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