Na velha redação do Estadão da rua Major Quedinho, no centro da cidade, final dos anos 1960, dona Beth era uma figura muito falada. Mal falada, diga-se logo, para começo de conversa.
Seus dois filhos trabalhavam lá, na editoria de esportes, então comandada por Ludembergue Góes, que já era um veterano na época, e ainda trampa pesado até hoje. Por qualquer divergência com os meninos, seu nome era invocado pelos colegas, que mandavam ver na reputação da distinta senhora, mesmo sem conhecê-la pessoalmente. Mas jamais tiveram coragem de repetir na cara dela o que falavam na redação.
Dona Beth nasceu em Piels, na antiga Checoslováquia, era filha de alemães e, apesar dos seus muitos anos de Brasil, falava português com dificuldade, errando nas corcordâncias e invertendo gêneros, o que era motivo de chacotas quando ela telefonava para falar com seus filhos.
“O seu mamãe ligaram“, avisavam os colegas.
Ela veio grávida para o Brasil após a Segunda Guerra e aqui nasceu seu primeiro filho que vingou, depois de ter perdido três outros. Conheceu o marido, Nikolaus, um engenheiro das tropas do general iugoslavo Tito, num hospital de refugiados de guerra, onde trabalhava como enfermeira voluntária.
Doze anos depois, ficou viúva. Foi trabalhar como operadora de telex na DKW-Vemag, uma fábrica brasileira de automóveis, mais tarde vendida junto com ela para a Volkswagen, onde trabalhou na diretoria até se aposentar.
Filha de mãe judia que se casou com um jornalista católico, e foi batizada nesta igreja, assim como suas duas irmãs, sofreu com a perseguição dos nazistas. Cuidou de dois sobrinhos e da mãe, refugiando-se de bunker em bunker, mas o pai dela, Matheus, que não tinha nada a ver com a história, acabou morrendo antes da guerra acabar, depois de ser proibido de trabalhar como jornalista.
Por isso, gostava tanto do Brasil. Não queria voltar para a Alemanha, onde ainda moravam muitos parentes e amigos, nem a passeio. Mesmo falando portugues errado, ensinou seus filhos a amar o país que a adotou e a dar valor à hospitalidade e à generosidade de seu povo.
Os dois se tornaram jornalistas contra a sua vontade porque ela não queria que sofressem o mesmo que seu pai. Mas não teve jeito.
O filho mais velho levou o mais novo para trabalhar com ele no Estadão, no tempo em que nepotismo não era uma coisa considerada tão feia como hoje. Era prática normal nas redações, até nas famílias dos donos. Pouco tempo depois, o caçula, que era chamado de Alemão, foi trabalhar na revista Placar, onde passou a maior parte da sua vida profissional e se tornou um fotógrafo muito respeitado, antes de ir para a ESPN, onde há dez anos é repórter e editor do programa “Histórias do Esporte”.
Já o primogenito rodou pelas principais redações do país antes e depois de se tornar assessor e mais tarde Secretário de Imprensa do presidente Lula, para tristeza e preocupação de dona Beth, que tinha verdadeiro pavor de qualquer coisa ligada à política.
Teve cinco netos – dois jornalistas, uma roteirista de cinema, um empresário e uma alta executiva do mercado financeiro que agora está se formando em medicina – e se viva fosse teria 11 bisnetos. Nascida na Primeira Guerra e sobrevivente da Segunda, morreu de velhice em 2004, aos 87 anos, muito contra a sua vontade.
Hoje, seus dois filhos, Ricardo e Ronaldo, comemoram juntos 120 anos (61 de um e 59 de outro) com um almoço de comida alema em São Sebastião, onde ela gostava muito de ir, nem que fosse só para ver o mar.
Elisabeth Kotscho, a dona Beth, era nossa mãe. Quem merece os parabéns é ela.
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