[13 de 100] A novela de Hoffmann, que inventou o gênero policial

O século XIX foi, sem dúvida, o mais prodigioso da literatura mundial, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos e no Brasil. Além das correntes literárias consagradas como Romantismo, Simbolismo, Naturalismo e Realismo – havia tendências paralelas alternativas, como o Policial, a Fantasia e o Terror. Nessas categorias, consideradas marginais, o notável escritor alemão E.T.A. Hoffmann (1776-1822) talvez tenha sido o que mais influenciou seu tempo. Ele, que morreu no alvorecer dessa época áurea, estava bem acompanhado de outros contemporâneos: Mary Shelley (1797-1851), Charles Dickens (1812-1870), Edgar Allan Poe (1809-1849), Robert Louis Stevenson (1854-1894), Herman Melville (1819-1891), Joseph Conrad (‘1857-1924), Fiódor Dostoiévski (1921-1881) e Henry James (1843-1916), só para citar alguns. E continua a ser uma referência quase 200 anos depois de sua morte.

Hoffmann é um dos pais do chamado terror gótico que de vez em quando volta à moda, como aconteceu na década de 1980. Sua novela “The Sandman” (O Homem da Areia), traduzido para o português por Fernando Sabino (1923-2004), impressionou tanto Sigmund Freud (1856-1939), que este lhe dedicou um ensaio famoso, “O sinistro”, em 1919. Nos anos de 1980, sua literatura levou o roteirista inglês – e depois escritor – Neil Gaiman a reinventar para as histórias em quadrinhos o mito do personagem na série mais cultuada desde então. E voltou a fazer sucesso a música sobre o personagem, a balada “In Dreams”, de Roy Orbison (1936-1988). O romance policial “Senhorita de Scuderi”, publicado em 1820 – dois anos antes da morte do autor – e que a Civilização Brasileira lançou no Brasil em 2012, é mais um atestado de sua capacidade inventiva.

Não se sabe por que esse texto seja apenas considerado o primeiro livro policial da Alemanha e não do mundo, como é o correto. Embora enciclopédias afirmem que Poe começou tudo, ao publicar, em abril de 1841, nas colunas do periódico “Graham’s Magazine”, da Filadélfia, o quase conto “Os crimes da Rua Morgue”, o pioneirismo deve ser atribuído de Hoffmann. E de modo incontestável, apesar de seu nome sequer constar nas listas conhecidas dos mais importantes autores, com seus respectivos personagens-detetives. Daí a relevância histórica desse seminal “Senhorita de Scuderi”. O escritor concebeu a trama com detetive, principal característica que marcou a chamada literatura pulp americana das primeiras décadas do século XX e do cinema Noir dos anos de 1930 a 1950. No caso, sua investigadora era uma aristocrática e respeitada senhora de 73 anos, escritora solteirona, que se vê desafiada pelo assassinato de um artesão de joias no ano de 1680, quando Paris foi tomada por uma série de assaltos e mortes misteriosas. 

Para ajudar o filho de uma antiga e falecida amiga, em cuja inocência acredita, a idosa senhora usa de todos os meios possíveis para investigar o caso, até mesmo recorrer à amizade do rei e interferir nas investigações da polícia. Estão na trama todos os aspectos que viraram clichês do gênero policial: estrutura narrativa folhetinesca, com interrupções de suspense entre os capítulos, um assassinato, herói detetive com espírito aventureiro e avesso a certas regras sociais, investigação paralela à da polícia, a revelação e, claro, a punição do malfeitor, além de oposições claras entre o bem e o mal e informação jornalística – laudo de perícia, decisão judicial, etc.

Por tudo isso, Hoffmann estabeleceu a fórmula acabada da novela policial que influenciou principalmente Edgar Alan Poe – “Os crimes da Rua Morgue” – e sir Arthur Conan Doyle (1839-1930) – este, com suas muitas aventuras de Sherlock Holmes. As passagens com longas descrições e lembranças, em especial, mostram isso. Mas seus méritos vão além. O livro é exemplar em seu propósito de divertir, anticipa o subgênero noir ao explorar uma Paris sombria e enovoada, sufocante e tenebrosa, onde todos os fatos decisivos acontecem pela madrugada ou em noites desertas e de frio, com criminosos à solta, em meio a castelos, carruagens, fraques, cartolas, penumbras, etc. A capacidade do autor de envolver o leitor se deve ao fascínio que provocam os principais personagens, que têm suas vidas reveladas ou devassadas em flashbacks. A revelação do assassino e a motivação do crime são antecipadas para um desfecho em que é preciso correr contra o tempo, para evitar que um provável inocente seja condenado à morte. 

E.T.A. Hoffmann morreu precocemente, aos 46 anos de idade, depois de uma vida intensa, tanto pessoal quanto profissional – escreveu dezenas de romances e contos. Nasceu na Prússia (hoje Rússia), mas cresceu na Alemanha, onde chegou a ocupar o cargo de juiz da Corte de Apelação, em Berlim, cidade em que viveu até morrer, seis anos depois. Foi dessa experiência real com o mundo do crime que buscou inspiração para fazer uma história tão marcante como “A Senhorita de Scuderi”, que finalmente pode ser lida em português com prazer e qualidade até superiores a muitos grandes romances policiais famosos. E que sua importância seja finalmente lembrada por quem se mete a escrever a respeito.

Única edição em português:

Civilização Brasileira, 2012.


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