O que dizer de um livro cujo autor o definiu como algo de conteúdo “muito bobo”? A resposta poderia ser que ele, no caso, o escritor americano Edgar Allan Poe (1809-1849), estava de mau humor, com excesso de modéstia ou fez uma brincadeira sobre seu trabalho. Nenhuma dessas possibilidades, no entanto, deve ter acontecido. Poe parecia se depreciar porque se rendera às críticas negativas dominantes que seu único romance recebeu quando foi lançado e praticamente o deixou de lado para se dedicar a poemas, contos e novelas, além do ofício de escrever para imprensa como fonte de sobrevivência. A obra, lançada em dois volumes, no mês de julho de 1938, nos Estados Unidos, quando ele tinha 29 anos de idade, começa com clichê das obras de aventura ou de suspense tão comuns no século XIX: o relato de uma testemunha ou de um sobrevivente sobre fatos graves que teriam lhe ocorrido recentemente.
Pym o fez dessa forma, convencido por editores de que deveria tornar público as aventuras e desventuras extraordinárias que viveu nos mares do sul do planeta, cheio de perigos e situações imprevisíveis da natureza ou causados pela maldade humana. Rico em detalhes, Poe estabelece o elemento do suspense para instigar o leitor. Ao mesmo tempo, de modo curioso, resume todos os mais importantes acontecimentos na primeira página para aumentar a tensão que a narrativa trará. Contado na primeira pessoa, o protagonista da história é o desafortunado jovem americano Arthur Gordon Pym que embarca clandestinamente com o amigo Augusto no navio baleeiro Grampus, em junho de 1827, sem imaginar os perigos que o esperam. E tudo dá errado. Ele se vê envolvido em um motim, precedido de naufrágio. Seguem dias turbulentos em que quatro sobreviventes derivam em alto mar, sem comida ou água, cercados por tubarões. O drama prossegue com a morte de dois deles e o desespero antes do resgate pela tripulação do Guy Jane, onde Pym faz amizade com Dirk Peters e os dois vão parar no meio de nativos hostis até que conseguem voltar para o mar.
O inventivo Edgar Alan Poe teria se inspirado para escrever seu romance em relatos reais de viagens marítimas, principalmente nas memórias de um certo Jeremiah N. Reynolds e de suas próprias experiências no mar nos últimos anos antes de fazer o volume. Sua receita de uma boa prosa de aventura não era nova, mas ainda continuava infalível, dentro da expectativa que era preciso criar algo assim para instigar o leitor e fazê-lo acreditar que alguém sobrevivera de fato para contar a história. Por outro lado, o relato do inesquecível Pym pode ser descrito como um romance moderno de terror em que não há a figura do monstro ou do monstruoso como elemento central e condutor da trama para se chegar ao suspense. O horror do autor de Os Crimes da Rua Morgue – uma obsessão do autor ao longo de sua carreira literária e de sua breve existência – nesse livro é psicológico, principalmente, fruto da situação de desespero extremo a que seus personagens são submetidos, como náufragos à deriva e com chances mínimas de sobrevivência.
A morte se faz presente na história nos momentos mais tensos, de forma a funcionar como um elemento complementar no sentido de seu chegar ao sobrenatural e impor o medo ao leitor. Mesmo assim, há uma passagem em que o terror visual aparece em toda a sua dimensão, quase como uma peça de humor negro que o autor prega tanto em seus protagonistas quando em quem acompanha o narrador: trata-se do instante em que o pequeno grupo de náufragos aproxima de um grande navio de piratas que acredita ser a salvação de todos, no auge do delírio em alto mar. Até notarem, ao estarem bem próximos, que aquelas criaturas estáticas que lembram pessoas de museus de cera estão mortas há muito tempo pela peste que devastava a Europa e seus corpos em avançado estado de decomposição. Trazem, portanto, o dedo de misericórdia da morte para eles, passageiros esgotados de uma situação limite de sobrevivência. Desesperados, os náufragos não sobem à embarcação pelo medo da contaminação. Há ainda o instante inesquecível em que é preciso decidir quem vai ser morto para alimentar os outros sobreviventes em medida extrema de canibalismo.
Alguns trechos da narrativa atribuída a Arthur Gordon Pym foram antecipados para os leitores do jornal “Southern Literary Messenger”, ofertados por Poe que, por motivo ignorado, não permitiu que a parte final fosse lançada. O romance saiu completo em livro – ao contrário do que se afirma, não estava inacabado. Mesmo mal recebida pela crítica e depois desdenhada pelo próprio autor, tornou-se uma obra influente para grandes escritores que o sucederam como Herman Melville (1819-1891), Júlio Verne (1828-1905) e Robert Louis Stevenson (1850-1894). Ao escrever sobre o romance, o russo Fiódor Dostoievski (1821-1881) observou que Poe foi um imaginativo escritor que não se encaixaria no gênero fantástico que consagrou E. T. A. Hoffman (1776-1822). No caso de Pym, ele situou seu herói “na mais extraordinária situação externa ou psicológica para relatar seu estado de alma com surpreendente exatidão”.
Poe inseriu em seu romance todos os elementos que comporiam a fórmula definitiva de livros e filmes de piratas que encantou gerações de leitores e – depois – cinéfilos de todo o mundo por dois séculos: tempestades, naufrágios, motins a bordo, traições, assassinatos, ilhas desertas, índios selvagens e, num passo mais adiante, canibalismo como única forma de se manter vivo em mar alto. Numa época em que o terror na literatura ainda dava pequenos passos e a violência era algo contido pela moral religiosa, ele antecipou em sua narrativa assombrosa um hiper-realismo eficiente pelo caráter descritivo faz o leitor visualizar cada cena com impressionante nitidez. Por tudo isso, a aventura de Pym é de tirar o fôlego. Um livro que permanece na imaginação por toda a vida.
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