Existe uma dúvida sempre que se fala no movimento literário beat ou beatnik ou geração beat, surgido(a) nos Estados Unidos na década de 1950. Quem foi, por direito histórico, o pai da criança? Na virada para o século XX, Jack London (1876-1916) no semibiográfico “A Estrada” já falava em viver como andarilho sem destino, pendurado em locomotivas e sem se preocupar com riquezas materiais e mais interessado em viver no hoje do que no amanhã. Embora tenha influenciado muitos escritores nas primeiras décadas do século, nenhum livro seu, porém, teve o impacto e deflagrou um movimento literário quanto “Pé na Estrada”, de Jack Kerouac (1922-1969). Mais que isso, a obra gerou uma revolução cultural de vanguarda, com reflexos na música, na moda e no comportamento de modo geral, na segunda metade do século. Daí admitir o romance como um acontecimento literário, mesmo com a demora do reconhecimento por parte da chamada crítica intelectualizada.
Ancorado no tripé transgressão (ao explorar o lado sombrio e menos glamouroso do sonho americano), lirismo e loucura, Kerouac conta a história de dois amigos jovens, Sal Paradise e Dean Moriarty, nascidos em Paterson, estado de New Jersey. Eles cruzam o país de costa a costa, rumo ao Oeste, sem data certa para chegar e aproveitando cada momento intensamente, entre bebedeiras, reflexões e sexo. Pela mitológica Rota 66, os dois se expõem a uma série de experiências conflitantes que vão mudar suas vidas para sempre. Desde a sua publicação, percebeu-se que seus personagens empreenderam a viagem que jovens do mundo todo passaram a sonhar fazer um dia, com garotas, bebidas e, acima de tudo, liberdade – faziam isso, claro, com um exemplar do livro de Kerouac na mochila.
Ao criar o que se chamou depois de um novo tipo de prosa, mais livre e sem compromisso com regras literárias ou de construção do gênero romance, com valorização do vocabulário das ruas, principalmente dos errantes e fora da lei, Kerouac não se limita a narrar, mas refletir sobre um tempo – os anos do pós-guerra do final da década de 1940, que trazia mais dúvidas e incertezas que a promessa ou mesmo a garantia de uma era de prosperidade econômica individual ou coletiva. A sombreá-los, a ameaça do cataclismo das bombas atômicas, ante uma quase inevitável guerra nuclear contra os países comunistas liderados pela União Soviética. Daí os libertários terem cunhado a expressão “viva o hoje porque o amanhã é incerto” ou “a Deus pertence”. Os mais radicais consertavam: “Viva o hoje porque o amanhã não existirá”.
Apesar de eventuais críticas positivas que realçavam o caráter inovador de “On the Road”, muitos o consideraram subliterato e imoral, pelo modo como se fala de sexo antes da invenção da pílula anticoncepcional. Como peça de valor literário, “On the Road” (título original) está longe de ser uma unanimidade entre aqueles que estudam ou escrevem sobre livros e literatura, mais de meio século depois de sua publicação. Embora raríssimos “críticos” literários tenham lido o catatau quando saiu a primeira edição, muitos simplesmente a ignoraram, tanto pela sua importância histórica quanto pelo seu caráter transformador do ponto de vista da narrativa ficcional. Em parte, os eruditos costumam ser resistentes a qualquer narrativa que fuja ao formato convencional, o consagrado, o clássico. Ou seja, que proponha uma ruptura de estrutura no modo de narrar. Histórias densas, necessariamente, precisam vir acompanhadas do apuro técnico, da elaboração das frases e dos personagens – bem estruturados, construídos e conduzidos, claro. Por que não apenas supervalorizar um desses aspectos ou simplesmente deixar de lado algum outro? Por que não sobrepor a temática à técnica?
Por muito tempo – e essa birra ainda permanece –, acostumou-se a tratar com desprezo, por exemplo, os autores da chamada literatura regionalista brasileira, surgida no final da década de 1920 e consolidada nos trinta anos seguintes. Se o autor foi bom vendedor de livros, então, como é o caso da maioria – Jorge Amado e José Lins do Rego, por exemplo – vai-se do desdém ao desprezo ou mesmo à ofensa, quando se percebe muitas vezes o uso de clichês literários e pouco conhecimento do autor e da obra em questão para se falar “mal”. Na segunda metade do século XXI, ainda é grande a resistência da academia a diversos desses autores. Kerouac está no topo da lista dos desprezíveis, com uma obra que teria sido escrita densa, extensa – e confusa em algumas passagens para alguns – em apenas duas semanas. Ninguém seria capaz de fazer algo de valor em tão pouco tempo? Bob Dylan contou certa vez que “Blowin the Wind”, que inaugurou a canção de protesto e mudou a história da música pop, veio inteira em sua mente, de uma vez só, e ele só precisou de alguns minutos para colocá-la no papel, fez quase uma psicografia.
O processo de concepção do livro é curioso e relevante de se lembrar. Jack Kerouac usava uma máquina de escrever e uma série de grandes folhas de papel manteiga, que cortou para servirem na máquina e juntou com fita adesiva para não ter de trocar de folha a todo o momento – como um imenso rolo de papel higiênico, interminável porque ele sempre acrescentava mais e mais folhas. Redigia de forma ininterrupta, invariavelmente sem a preocupação de cadenciar o fluxo de palavras com parágrafos, o que impressionou muito seus editores. Talvez gostasse da expressão “vômito literário” para definir sua experiência. Dessa concentração quase autista, intensa e hipnótica, surgiu sua prosa espontânea, como ele chamava. Ainda segundo suas palavras, usou uma técnica parecida com a do fluxo de consciência. Diz a lenda que ele teria escrito o livro sob o efeito de benzedrina, uma droga estimulante, mas ele revelou depois que seu único combustível foi café.
A compreensão de sua importância literária e histórica passa também por detalhes de como o livro foi publicado – modificado e editado. A primeira versão do romance foi entregue ao editor Malcolm Cowley, da editora Viking Press, em 1957, que se assustou ao ver uma obra escrita em forma de rolo. Mesmo assim, teve a boa vontade de ler e se impressionou tanto a ponto de topar publicá-lo (ainda naquele ano), caso o autor topasse fazer algumas mudanças. Persuasivo, com sua empolgação e fundamentação de editor, convenceu Keroauc a cortar 120 páginas do texto original e a corrigir a pontuação, com inserção de vírgulas, por exemplo. Mesmo assim, seu estilo acelerado e alucinante foi preservado. Histórias, enfim, que dignificam um mito.
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