Foto: Valéria Rehder
Entre amigos
Meirelles, hoje correspondente de O Globo em Washington, entrevista Borges em 1980

Incrustada na porta de madeira do apartamento 6-B, num antigo edifício da Calle Maipú, em Buenos Aires, a pequena placa dourada continha, em preto, uma palavra que identificava o seu morador: “Borges”.

Logo depois de tocar a porta, os visitantes tinham uma surpresa. Ela era aberta pelo próprio Jorge Luís Borges, apoiado em sua bengala chinesa de bambu, a sua favorita:

– A minha governanta é um pouco surda… não ouve quem chega. Eu não enxergo, mas escuto bem – disse ele, com um sorriso irônico ao me receber na primeira vez que o visitei, em setembro de 1980. A cena se repetiria outras 16 vezes nos cinco anos seguintes, então já sem necessidade da explicação, e tornou-se uma espécie de ritual.

A porta se abria, nos cumprimentávamos e ele, então, dizia: “Ah, é o brasileiro…”, e, depois de se acomodar no sofá de tecido verde na pequena sala de estar com duas paredes cobertas por livros, perguntava:

– E então, quais são as novidades da rua? Solitário, Borges gostava de visitas. Ele não possuía televisão nem rádio, tampouco um toca-discos. Bastava telefonar para ele e perguntar quando poderia conversar. Uma ou outra vez foi para entrevista formal. A maior parte das vezes foi pelo simples prazer da conversa.

– Se puder ser daqui a pouco… Ou quem sabe no início da tarde – ele dizia, ávido por uma companhia.

– Vivo a monótona vida de um velho cego que já deveria ter morrido – costumava justificar. Borges atenuava a solidão criando contos e guardando-os na memória prodigiosa até que aparecesse um amigo para ouvir e transcrever, à máquina, o ditado de suas histórias. Ele não parecia triste. Melancólico, sim. Dizia não ter medo de morrer. Isso, afinal, seria o fim da solidão:

– Estou um pouco cansado… gostaria de morrer o mais rápido possível – disse-me em várias ocasiões.

A sua fascinação por facas o fazia repetir, como quem conta um conto, o relato de brigas entre gaúchos que teria presenciado na juventude. Brigas de faca. Era difícil distinguir entre realidade e ficção, ao ouvi-lo contá-las. A cegueira era outro tema constante, espontâneo. Borges dizia estar conformado com ela, assim como com a velhice e a ausência de amigos – quase todos já mortos, então:

– Já com idade avançada aprendi a resignação de ser Borges… Ele não fumava. Tampouco bebia. Contava não ter se dado bem com as drogas: – Com a cocaína ensaiei três vezes seguidas e me pareceu uma pastilha de menta. Acho que o mesmo aconteceria com a maconha e as demais drogas. O que se passa é que as pessoas se dão corda… Gostava de caminhar de manhã sob as árvores da Plaza San Martin, à meia quadra de seu apartamento, sempre de terno e gravata. Comia pouco. Ir ao cinema parecia ser a sua diversão preferida:

– Ver, no meu caso, é uma metáfora. Mas continuo indo ao cinema para ouvir os diálogos.

Achava-se o homem mais banal do mundo, que vivia frugalmente com uma pensão de funcionário público e direitos autorais que pingavam aos poucos. Escrever era a sua sina:

– Um destino literário não seria o melhor, mas o único possível para mim. E… o que pode fazer um cego, senão escrever? Creio que não perdi a capacidade de continuar sonhando e, assim, continuo escrevendo contos e poesias.

Importante? Não, jamais se sentiu assim. Celebridade? Muito menos. Chegava a ser amargo e cruel consigo mesmo:
– Sou um mero literato da república meramente argentina! – dizia enfaticamente.

Afirmava que seus livros eram apenas variações parciais de si mesmo:

– Eles são o recurso clássico da irreparável monotonia. Um exercício de cego.

Certa vez lhe perguntei quem, afinal, era Borges. Depois de pensar longamente ele abriu um sorriso maroto, e balbuciou:

– Ah, meu filho… isso eu ainda estou tratando de averiguar. Às vezes eu mesmo me sinto farto de Borges. Ele passou as últimas duas décadas de sua vida convencido de que a sua fama se devia mais à piedade do que ao seu talento literário:

– Me aplaudem em Tandil (cidade do interior da Argentina) e em Nova York; mas… quem não aplaude um velho cego, não é mesmo? Criticado por ter defendido as juntas militares, ele tinha uma definição muito peculiar sobre a vida política:

– A democracia, como se sabe, é uma superstição baseada na estatística.

Um dos momentos mais sublimes nos encontros vespertinos que tivemos, a maioria deles por conta apenas de uma boa conversa – não se tratavam de entrevistas formais -, aconteceu quando voltando, pela enésima vez, à questão da cegueira, Borges contou que se sentia resignado a ela sobretudo porque um velho amigo sofria do mesmo mal e, segundo ele, tinha uma existência mais sofrida que a sua. E explicou:

– Enquanto eu ainda consigo ver sombras e vultos amarelados, ele os vê cinzas – disse.

Ingênuo, perguntei que diferença fazia isso se, afinal, nenhum dos dois enxergava. Por que o amigo teria
uma vida mais dura que a dele, devido a essa diferença de cor? E Borges, sorrindo gostosamente como quem acabara de pregar uma peça em alguém, respondeu:

– Ah, meu filho… você já pensou o que é beijar lábios cinzas?

* Jorge Luís Borges morreu em Genebra, em 14 de junho de 1986. Ele nasceu em 24 de agosto de 1899, em Buenos Aires.


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