[19 de 100] A grandiosidade do regionalismo de José Lins do Rego

Não há o que discutir, “Fogo Morto”, a obra-prima do escritor paraibano José Lins do Rego (1901-1957), é um livro importante na história da literatura brasileira. Lançado há exatos 70 anos, em 1943, o romance se tornou marco da literatura regionalista nacional, porém está longe de ser citado entre os maiores da língua pátria, como disse o escritor português Mário de Carvalho, em entrevista de 1998. Ao mostrar o declínio dos engenhos de cana-de-açúcar nordestinos, do começo do século XX, a partir de três protagonistas de castas sociais diferentes, Zé Lins construiu um denso e amplo perfil das figuras decadentes que giravam em torno dessa atividade econômica tão importante para o País até os anos 1800. Assim que o livro saiu, provocou um impacto impressionante entre os maiores críticos da época, que o festejaram como um acontecimento − Otto Maria Carpeaux, Antonio Candido, Tristão de Athayde, Afonso Arinos e Wilson Martins. Deixou extasiados os escritores Mário de Andrade e Gilberto Freyre. “São raras as obras literárias comparáveis aos diamantes, cujo brilho nunca se apaga. ‘Fogo Morto’ é, sem dúvida alguma, uma dessas raridades”, escreveu Antônio Torres, na apresentação da mais recente edição do livro.

Zé Lins escreveu um romance raro, capaz de retratar a alma de um povo e fazer o leitor vislumbrar suas mazelas e sua grandiosidade. Um olhar delicado, perspicaz e profundo sobre a formação de uma nação que ele retrata de modo engenhoso ao dividir a narrativa em três partes aparentemente distintas, cada uma focada na história de um protagonista, mas que se inter-relacionam. Na primeira, é apresentado o inesquecível mestre José Amaro, seleiro competente e orgulhoso do seu ofício, ranzinza e inconformado com sua sina de viver em um mundo cheio de injustiças e abusos. Difícil não se comover com suas histórias, a relação com a filha louca e a mulher, rir de seus rompantes e do fato de ser temido pelo povo do lugar por sua aparência cansada, fruto da insônia, que lhe rende a fama amaldiçoada de lobisomem. Por morar à beira da estrada, cruza com os mais curiosos personagens, como o cego Torquato e Alípio, mensageiros do Capitão Antônio Silvino, cangaceiro temido da região.

Na segunda parte, o foco se volta para o coronel Lula de Holanda, patrão do mestre José Amaro, coronel de temperamento difícil, cabeça dura que não consegue lidar com os novos tempos de declínio da cana-de-açúcar e se vê incapaz de fazer prosperar o engenho que recebera de herança. É a parte mais longa e densa do livro, em que a narrativa recua no tempo, à época da construção do Engenho de Santa Fé, para contar a saga das gerações que se sucederam nos engenhos – teria inspirado Gabriel García Márquez a escrever “Cem Anos de Solidão”? Lula é tido como um sujeito preguiçoso e autoritário, que impõe severos castigos aos escravos e lidera sua família a mão de ferro – não permite que nenhum homem se aproxime de sua filha, que se torna uma solteirona amargurada. Por fim, na última parte, destaca-se o Capitão Vitorino, considerado por alguns críticos como o personagem mais bem construído da literatura brasileira. Cangaceiro consciente e defensor dos mais pobres, Vitorino perambula pelo sertão como um errante, que ostenta poder e dignidade que está longe de possuir – em uma clara paródia e homenagem a “Dom Quixote de La Mancha”, de Miguel de Cervantes (1547-1616).

No processo meticuloso de estruturação de “Fogo Morto” – em referência à desativação das moendas dos engenhos –, Zé Lins faz com que esses três mundos se cruzem de modo a promover um embate de classes, cujo cenário nas proximidades do engenho Santa Fé é de miséria, doenças, politicagem e controle do voto, além da truculência policial a serviço de uma minoria que concentra o poder econômico. O mesmo universo injusto e sem esperança que gerou o banditismo simbolizado pelo cangaço. Embora tenha dito que o chamado ciclo da cana-de-açúcar encerrava-se com cinco livros anteriores – “Menino de Engenho”, “Doidinho”, “Banguê”, “Moleque Ricardo” e “Usina” –, “Fogo Morto” se encaixa nesse conjunto não como mais um volume, o sexto, mas na condição do mais expressivo entre todos que escreveu sobre o mundo decadente dos engenhos. Visto como um romance de caráter neorrealista por especialistas, o título mantém a perspectiva memorialista que se tornou uma obsessão em sua obra, no sentido de reconstruir fatos e personagens que conheceu ou vivenciou em sua trágica infância de órfão na vida real, apesar de neto de coronel.

A força de “Fogo Morto”, portanto, está em seus personagens, trágicos em suas vidas, prisioneiros de uma realidade que lhes foge ao controle. Um universo impiedoso, descrito com pungência e humanismo na medida certa, a ponto de levar o leitor a desejar conhecê-los pessoalmente, tamanha a força de sua construção. Para Antônio Torres, os protagonistas, somados a um elenco de coadjuvantes igualmente memoráveis, compõem um amplo aspecto da sociedade brasileira na transição entre a escravatura e a abolição, fato histórico que abalou toda uma estrutura econômica secular importante, comandada a mão de ferro pelos senhores de engenho. “A tensão que surge entre a casa grande e a senzala, entre o coronel e o homem do povo, da mulher com o homem, entre brancos e negros, cangaço e governo, numa teia em que a violência dá o tom das relações, marcadas por racismo, machismo e loucura.”

Zé Lins escreve ancorado em eventos históricos importantes que lhe serviram de contexto para compor uma obra gigantesca de caráter sociológico em que, por meio da sutileza, ele expõe as fraquezas e a força dos subjugados e de seus opressores. Mundos que só seu olhar sensível foi capaz de perceber e retratar em um livro que nasceu para a eternidade.


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