20 anos sem Luiz Eça


Há exatos 20 anos, vitimado por um infarto, o pianista e arranjador Luiz Eça saiu de cena, aos 54 anos.  Luizinho, como carinhosamente era chamado por todos, descendia do escritor português Eça de Queirós e estudou piano desde a infância.

Um dos grandes talentos do País, tanto na música erudita, quanto na popular, aos 22 anos ele ganhou uma bolsa de estudos do ex-presidente Juscelino Kubitscheck para estudar em Viena, Áustria, onde, entre outros grandes professores, teve aula com o pianista e compositor Friederich Gulda.

De volta ao Brasil, em 1962, Luizinho formou, ao lado do baixista Octavio Bailly Jr. e do baterista Hélcio Milito, um combo instrumental que seria o embrião do Tamba Trio, formado à partir da chegada do baixista Bebeto Castilho, que substituiu Bailly e acrescentou ao grupo saxofone e flauta transversal.

Na edição de maio da Brasileiros, que ainda está nas bancas, Bebeto fala sobre a importância de Luizinho Eça e também recorda os bastidores dos seis meses de gravações do álbum homônimo de estreia do Tamba Trio, que completa 50 anos em 2012, mas continua a impactar ouvintes e seduzir músicos. Confira aqui, a íntegra da reportagem de Marcelo Pinheiro

50 anos de puro som

Tamba Trio, álbum de estreia do grupo homônimo e um dos pilares do samba-jazz, lançado há 50 anos, continua seduzindo ouvintes e fascinando músicos. Baixista, flautista, e saxofonista do trio, Bebeto Castilho relembra aqui as experiências que resultaram no registro e reitera a importância do amigo Luiz Eça, o influente pianista do grupo

Na manhã de 18 de junho de 1962, o Brasil ganhou as páginas dos jornais do mundo. Liderado pelo gênio de pernas tortas Mané Garrincha o escrete canarinho – mesmo com a baixa de Pelé, contundido no segundo embate do torneio – alcançou, no Chile, o feito inédito de ser a primeira seleção sul-americana de futebol a vencer duas Copas do Mundo seguidas. Em novembro do mesmo ano, depois de pasmar a cena local, a bossa nova também ganhou os holofotes da imprensa mundial e tomou rotas internacionais depois de ser apresentada no Carnegie Hall, em Nova York. 

O impacto da chegada do novo gênero defendido por João Gilberto e Tom Jobim caiu como bomba no status quo musical do País e do mundo. Do dia para a noite, a bossa nova passou a ser a última palavra em modernidade. Músicos daqui e estrangeiros, desconcertados com o que parecia um ultrajante drible de Garrincha, também queriam, a todo custo, ser bossa nova.

Três rapazes cariocas, instrumentistas exímios e dispostos a viver de sua arte foram além: reunidos como Tamba Trio, espontaneamente criaram estatutos de um novo gênero, o samba-jazz, derivado da bossa e, por três anos mágicos para a música instrumental feita no País, entre 1962 e 1965, que brilhou em casas de shows do Rio de Janeiro e de São Paulo e teve sua história registrada em dezenas de álbuns que estão sendo redescobertos por jovens ouvintes atentos e colecionadores ao redor do mundo.

Novos Sons – Capa do primeiro Tamba Trio, um marco do samba-jazz. Luiz Eça & Cordas, a estréia solo do pianista

Um proto-samba-jazz já era praticado, na boêmia do centro de São Paulo, pelo Zimbo Trio, mas o gênero ganhou contornos definitivos com a chegada do Tamba, combo formado pelo pianista Luiz Eça, o baixista Bebeto Castilho e o baterista Hélcio Milito. Somando fundamentos da bossa e de trios do west coast jazz americanos aos requintes do piano clássico cheio de ginga, de Luizinho, o baixo robusto, a flauta etérea, o sax econômico (também tocados por Bebeto) e a cadência sutil da bateria de Hélcio, o Tamba Trio abriu caminho para um sem-número de trios, quartetos e quintetos do País. O grupo, que também cantava com uma harmonia invejável, foi batizado por Hélcio com o mesmo nome que ele havia dado a um kit de percussão que criou, achando que “tamba” era nome africano para, depois, descobrir que era nome de planta nativa da Amazônia.

Em plena atividade, aos 73 anos, o ex-baixista do grupo, Bebeto Castilho, falou à reportagem da Brasileiros por quase duas horas e lembrou episódios memoráveis vividos ao lado dos amigos Luizinho, que morreu há 20 anos, vítima de um infarto, aos 56 anos, e Hélcio, que abandonou as baquetas para servir a indústria fonográfica, como importante produtor e diretor artístico durante muitos anos e hoje vive nos Estados Unidos “incomunicável”, segundo Bebeto, que iniciou a conversa falando de sua formação musical.

Embaixador 171

 

Durante as gravações de Getz/Gilberto (1963), que impulsionou o sucesso mundial da bossa nova: Stan Getz, Milton Banana, Tom Jobim, Creed Taylor, João Gilberto e Astrud. ao lado, as capas originais dos álbuns do Tamba 4 lançados pela CTI, selo criado por Taylor, em 1967

Fundador do mítico selo Impulse! – que abrigou gênios como John Coltrane, Charles Mingus e Archie Shepp – e ex-produtor da Verve Records – celeiro de alguns dos maiores nomes da história do jazz – Creed Taylor, 83, atuou como embaixador cultural e foi determinante para as carreiras internacionais de brasileiros como Tom Jobim, Luiz Bonfá, Eumir Deodato, o organista Walter Wanderley, Astrud e João Gilberto. Em 1967, o tamba trio foi assediado por Taylor, à frente de seu novo selo CTI Records – batizado com as iniciais de seu nome, acrescidas de “incorporated” – para lançar dois álbuns americanos, como Tamba 4, We And The Sea (1967) e Samba Blim (1968). Cultuados ao redor do mundo, os álbuns foram marcados pelo oportunismo e intervenções estéticas do super-produtor, como revela Bebeto: “O Creed Taylor sempre foi um 171 danado. não quero entrar em maiores detalhes, mas é fato que ele armou até com o Eumir Deodato e nosso empresário também teve muitos aborrecimentos. O Creed tinha aquele jeitão calado e, quando você menos esperava, já tinha aprontado contigo. mas esse é um problema histórico. Carmem Miranda, por exemplo, não tinha nada a ver com aquele tico-tico. Quem a conheceu na rádio nacional sabe que ela não era nada daquilo. eles modificam tudo. Se não for do jeito deles, você morre seco”.

Carioca de berço, Bebeto cresceu em meio a dez irmãos (ao todo seis mulheres e cinco homens), um deles, Carlinhos Castilho, violonista profissional, foi determinante para sua formação, como também foi o saxofonista e clarinetista Paulo Moura, amigo de Carlinhos, que ensinou ao menino de 11 anos a difícil arte de tocar clarineta. Inquieto e curioso, Bebeto acumulava outras façanhas, como construir o próprio contrabaixo elétrico aos 15 anos (segundo ele, um dos primeiros do Brasil) e potentes amplificadores com a ajuda de revistas que ensinavam a produzir equipamentos eletrônicos.

Logo, os amplificadores invadiriam o porão da casa em que Bebeto vivia com os pais, na Tijuca, Zona Norte do Rio, e o subsolo do lar dos Castilho seria transformado pelo garoto na “Boate 45” (uma referência ao endereço da casa).

João Donato, João Gilberto, Carlos Lyra, Roberto Menescal e o ás do piano Luiz Carlos Vinhas foram alguns dos ilustres visitantes da “boate”. Um seleto grupo de amigos que, anos depois, cresceu exponencialmente, com a chegada do primeiro disco do Tamba às lojas. Bebeto recorda com orgulho o impacto do lançamento e a epidemia de trios, que surgiu da noite para o dia.

“O sucesso do primeiro disco foi uma grande surpresa para nós. Você vê a quantidade de trios que veio depois dele?! Algo natural, porque deixamos claro que aquela fórmula dava muito certo e, sobretudo, era barata. Quando esse primeiro LP saiu, ficou todo mundo assustado, se perguntando: ‘Mas o que é isso?!’. No palco, Luizinho e Hélcio cantavam um de frente para o outro e eu ficava entre eles. Fazendo isso com um único microfone no teto, em estúdio ou em shows, captávamos todo o som do Tamba. Para contratar uma apresentação da banda, bastava alugar os instrumentos, comprar três passagens e, se fosse o caso, hospedar os três músicos em um único quarto de hotel. Tudo isso, lógico, foi pensado por Hélcio, que sempre foi muito empreendedor e esperto. Ele sacava os lances antes de todo mundo.”

O baterista Hélcio Milito empunhando um berimbau, o pianista Luizinho Eça e Bebeto Castilho, em foto promocional do disco homônimo, lançado pela Philips, em 1962

A estreia do Tamba contou também com a participação de Durval Ferreira e seu violão imponente. Apelidado de “Gato” por conta de seus olhos, azuis como o mar de Ipanema, Durval, morto em 2007, vitimado por um câncer, teve a alegria de participar da gravação histórica e, de quebra, ver registrada a primeira versão do clássico assinado por ele e Mauricio Einhorn, Batida Diferente.

O álbum, cinquentão, traz impressionantes 14 faixas registradas. Fato incomum para a época, por conta da limitação de tempo de gravação imposta pelas prensagens em vinil. Hoje, item raro, disputado por colecionadores, o LP vendeu quase 300 mil cópias. Vinha embalado em uma capa branca que reproduz o perfil dos três músicos com o nome Tamba Trio estampado em uma tipografia vermelha, que nitidamente faz alusão à logomarca da Coca-Cola. Como o refrigerante, que carrega uma fórmula única, perseguida por muitos, o disco de estreia do Tamba trouxe novas informações, musicalmente decifradas, e, depois, disseminadas por grupos inventivos e com uma deliciosa disposição para o improviso, como o Sambalanço Trio, de Cesar Camargo Mariano; o Bossa Três, de Luiz Carlos Vinhas; o Sambrasa Trio, de Hermeto Paschoal; o Trio 3-D, de Antonio Adolfo; o Copa Trio, de Dom Um Romão; o Bossa Rio, de Sergio Mendes; o Rio 65 Trio, de Dom Salvador; o Manfredo Fest Trio, do brilhante pianista cego; o Milton Banana Trio, liderado pelo “pai da bateria bossa nova”; e o supergrupo Os Cobras, que, como o nome sugere, reunia um verdadeiro “quem é quem” da cena do samba-jazz.

O habitat dessas feras dos pianos, baterias, baixos, trompetes, saxes, flautas e trombones, era a boêmia da Praça Roosevelt, em São Paulo, e do Beco das Garrafas, no Rio de Janeiro, destinos recorrentes nas peregrinações em busca de canjas remuneradas, como lembra Bebeto: “Eu fazia ronda noturna atrás de trabalho. A gente costumava dizer: ‘Vamos rodar bolsinha?’. E tocava até as 6h30. O pessoal saindo para ir à missa e eu voltando para casa com aquela cara horrível, impregnado de fumaça. Fumava-se muito nas boates!”.

A exposição à tamanha boêmia, muitas vezes, mal resultava em dinheiro suficiente para pagar a própria consumação: “O Bottle’s (cultuado inferninho do Beco das Garrafas) era o bar do pindura, tinha tanto relógio na parede que mais parecia uma relojoaria. O músico devia e penhorava o relógio. O Giovanni Campana, que também era dono do Little Club, era muito moleque e bastante generoso, concordava que os relógios ficassem no prego. O músico pagava, ele ia lá e devolvia”.

Tempos difíceis, sim, mas ao menos para Bebeto, Hélcio e Luizinho, em 1962, os dias de dureza estavam contados. Graças à aposta de Armando Pittigliani, executivo da Philips que ignorou a recusa dos concorrentes e apostou todas as cartas no Tamba Trio, a ponto de dar total liberdade para os músicos fazerem o que bem entendessem ao longo de seis meses nos estúdios da gravadora: “Trabalhamos diariamente, experimentando de tudo. Precisávamos mesmo ser ousados, pois a gravação foi feita em fita mono e não havia grandes recursos. Alguns dias foram tão exaustivos que havia horas em que era preciso juntar as cadeiras e tirar um cochilo. Armando abria o estúdio, dizia: ‘É de vocês’. E ficava ali ouvindo a gente tocar com prazer, mas, às vezes, até ele cochilava. Lembro que o Celinho, técnico de som do disco, criava coisas inacreditáveis. Cobriu toda a extensão da caixa do piano com uma flanela e, por baixo, colocou um microfone dentro do instrumento. Celinho fez também um círculo com um elástico para prender um microfone flutuante, e montou no cavalete do meu baixo um microfone”, recorda Bebeto.

Os esforços e os experimentos empenhados pelo trio logo resultaram em um sucesso sem precedentes para um disco instrumental, com apenas três faixas cantadas: “Naquela época, a média de vendagem considerada boa, atingida por cantores populares, como o Miltinho, era de 90, 100 mil LP’s. Nós vendemos 280 mil e fomos convidados para fazer outros dois discos”.

Além dos dois álbuns para a Philips, Avanço (1963) e Tempo (1964), o Tamba lançaria outros nove LP’s, dois deles como Tamba 4, com a participação do violonista, baixista e percussionista Dório Ferreira, lançados nos Estados Unidos pelo cultuado selo CTI, We And the Sea, de1967, e Samba Blim, de 1968. No ano seguinte, com a saída de Luizinho Eça que, tempos depois, formou o grupo A Sagrada Família, o pianista foi substituído pelo maestro Laércio de Freitas. A chegada de Freitas marca também um período de intensa atividade no México, onde lançaram um álbum, intitulado Tamba 4, pelo selo Orfeon Vidoevox,  Chegaram a ser contratados pela Varig para tocar na primeira classe dos DC-10, super-jato, de três turbinas e um dos primeiros aviões comerciais a romper a barreira do som. Como banda de apoio, o Tamba fez outros dois álbuns clássicos, um deles, pela Elenco, escoltando Edu Lobo em sua estreia, A Música de Edu Lobo por Edu Lobo, de 1965, e outro, pelo selo Forma, ao lado das meninas do Quarteto em Cy, Som Definitivo, de 1966. 

Sobre a importância do amigo Luizinho, arranjador incensado até mesmo por Tom Jobim, que era fã de seus discos solo Luiz Eça e Cordas (1965) e Luiz Eça Piano e Cordas, Volume II (1970), Bebeto enfatiza: “Luizinho foi para Viena em 1958, porque Juscelino deu uma bolsa para ele. Ele poderia ter seguido uma carreira de músico erudito, mas não quis. Foi reprovado em um teste, porque improvisou enquanto tocava Beethoven e Chopin. A banca toda desprezou a atitude dele, menos um jurado, o maestro alemão Koellreutter, que disse: ‘Interpretação zero, mas improvisação nota 100. Toma jeito, Luizinho!’. A meu ver, a grande contribuição do Luiz para a música brasileira foi mesmo o Tamba. Ele deu ao grupo um personalidade própria, que ninguém conseguiu reproduzir. Nem mesmo nós, quando convidamos o Ohana (o baterista Rubem Ohana) para substituir o Hélcio. Quem primeiro nos alertou para isso foi o irmão dele, Osmar (o pianista Osmar Milito), que viu a gente no dilema de continuar ou não e disse: ‘Vocês estão se esquecendo da identidade do grupo?! No primeiro compasso já se sabe que é o Tamba e isso é algo invendável, não dá para sair por aí e comprar identidade’. Osmar estava certíssimo. Em 1982, nos reunimos para comemorar 20 anos de carreira e gravar um novo disco. Começamos a ensaiar e, quatro meses depois, já estávamos tocando até para a rainha Silvia, da Suécia. Olha o peso da identidade que construímos!”, defende ele.

Como bem definiu Osmar, basta ouvir os primeiros compassos de Tamba, tema que abre o disco, para concluir: 20, 30 ou 50 anos depois, como agora, o disco de estreia do combo e a música do Tamba Trio continuam irresistíveis. I


Comentários

Uma resposta para “20 anos sem Luiz Eça”

  1. Avatar de José Fcº Silvestre
    José Fcº Silvestre

    Privilegiado por ter nascido numa época em que a música popular passava por sua fase áurea, registrio meus cumprimentos ao Bebeto, baixista, flautrista e cantor do TAMBA TRIO, que faz parte da minha história de músico autodidata. A química musaical dos tres, interpretando e improvisando no samba, foi uma das bússolas que me nortearam ao longo do tempo. Já na maturidade, continuo a tocar minha bateria e também a cantar. A música prá mim é uma terapia. Graças a Deus recebi essa bênção que é o dom da musicalidade. Ao caro Bebeto, meus votos de muita Saúde e cada vez mais música em sua vida!

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