[21 de 100] O único e certeiro tiro de Harper Lee

Na literatura, o mundo dos adultos visto pelos olhos de uma criança de 9 anos costuma ser ingênuo, pungente e generoso. Tocante ou piegas, até. Não é o que acontece no único romance da escritora norte-americana Harper Lee, lançado originalmente em 1960, que no Brasil ganhou título um tanto quanto sentimental de “O Sol é Para Todos” – por causa do batismo que deram à adaptação para o cinema, em 1962, com Gregory Peck no papel principal, que lhe rendeu o Oscar de Melhor Ator. No original, seria algo do tipo “Para Matar Passarinhos”. Quase desconhecido entre os leitores brasileiros, com apenas três edições lançadas em meio século e atualmente esgotadas – a José Olympio promete nova tradução para o começo de 2014 –, o livro é, desde a sua aparição, uma leitura fundamental para a formação escolar e até cívica das crianças nos Estados Unidos. 

Harper Lee, hoje com 87 anos, ganhadora do Prêmio Pulitzer, em 1961, sempre insistiu, nas raras entrevistas que deu, que seu romance é uma obra inteiramente de ficção, não autobiografia, portanto, embora seu pai tenha sido advogado e defendido negros. A história da família Fincher se passa nos Estados Unidos ainda segregacionista do sul, durante a grande depressão econômica da década de 1930, em que a ignorância e a arrogância de uma elite decadente simbolizavam um conservadorismo que a América defensora das liberdades queria acabar. Esse empobrecimento rápido trouxe um clima hostil de grande tensão social em que os protagonistas acabaram engolidos como em um furacão. Na história, acompanha-se três anos na vida de uma menina, Jean Louise Fincher, que vai dos 8 aos 10 anos, seu irmão Jem – quatro anos mais velho – e seu pai, Atticus Fincher, de 50 anos, um homem honrado, viúvo, que vive para educar os filhos e lhes impor preceitos de respeito, liberdade, igualdade e justiça.

Atticus – como os filhos o chamam, e não de “pai” ou “papai” – cuida das crianças com a ajuda de uma empregada negra, Cal, que praticamente assume o papel de mãe das crianças, embora toda a comunidade ignore a sua presença e considere o casal de garotos largados e sem atenção materna. Tudo fica mais complicado, porém, quando a família se depara com o preconceito racial na pequena Maycomb, no Alabama, onde mora, no momento em que ele se torna defensor de Tom Robinson, um homem negro injustamente acusado do estupro de uma garota branca e que está próximo de ser linchado pela Ku-Klux-Klan, organização racista formada por brancos encapuzados para perseguir e matar negros. Scout é o apelido de Jean, a narradora da trama, uma menina inteligente, esperta, valente, brigona na defesa das pessoas que gosta e nas ideias que seu pai lhe ensinou – chega a chutar a canela de um homem que tenta intimidar seu pai.

Antes desse fato, as duas crianças e seu amigo Dill passam a conhecer o estranho mundo em que vivem e descobrem os significados de palavras como respeito e tolerância e o quanto sua aplicação pode encontrar resistência. Juntos, vivem travessuras e as curiosidades típicas da idade que os levam a aventuras, descobertas e aprendizados. A obsessão dos três – que ocupa quase um terço da obra – é o misterioso vizinho Arthur “Boo” Radley, vítima da truculência do pai, que o mantêm prisioneiro em sua própria casa, após cometer um pequeno delito na adolescência – a ponto de enlouquecê-lo. Sinais de gentilezas e pedidos de ajuda fazem com que o trio acredite que o rapaz ainda está vivo. E só o que querem é libertá-lo. Até a autora entrar no tema do racismo, abordagem central do romance, os meninos precisam aprender a sobreviver em um mundo de falsas aparências e crueldade, que Harper Lee redimensiona a partir da convivência dos moradores de uma única rua, a que eles moram.

Maycomb é um lugar como outro qualquer – não só dos Estados Unidos como do Brasil – em que as aparências e as dissimulações por trás de seus muros e cortinas podem esconder segredos terríveis. É um mundo de interesses e atitudes muitas vezes cruéis, que chocam os dois irmãos e seu amiguinho. A cada dia, para ele, novas verdades surgem e impressionam. Os meninos, porém, estão longe de ser santos edificados tão típicos desse gênero de romance de formação. Como quaisquer garotos na sua idade, aprontam, teimam, desobedecem às ordens dos adultos – e questionam muitas delas – e levam palmadas e castigos por isso. “Achei estranho aquilo. Em Maycomb ninguém andava por andar”, observou a protagonista.

O racismo aparece no livro na página 103, na abertura do capítulo 9. Depois de brigar com um colega, Jean observou: “Na véspera, ele afirmara no pátio da escola que o pai de Scout Finch era defensor de criouléu. Neguei, mas contei a Jem”, narrou a garota, que levou a história ao pai. Atticus explicou a ela porque defendia um negro no tribunal. “Por várias razões. Principalmente porque se não fizer isso, não poderei andar de cabeça erguida, não poderei representar o município na Câmara, não poderei nem mesmo dizer a você e a Jem que façam o que eu mandei.” Mais adiante, acrescentou que fazia isso “porque eu não poderia exigir que me obedecessem. Scout, pela própria natureza da profissão, todo advogado enfrenta pelo menos uma vez na vida um caso que o afeta pessoalmente. Acho que este é o meu. Se ouvir coisas ofensivas a meu respeito na escola, quero que me prometa uma coisa: você vai manter a cabeça erguida e os punhos abaixados”. O racismo, observou ela, era uma luta peculiar e mais complexa. “Dessa vez é diferente, Scout, não estamos lutando contra os ianques, lutamos contra nossos amigos. Mas, lembre-se, por mais difícil que se torne a situação, eles ainda são nossos amigos, e este ainda é o nosso lar.” 

Em nome da moral e dos bons costumes, pode-se fazer de tudo em Maycomb, no pior sentido. Desde tornar a vida de uma família algo insuportável. Harper Lee descortina o lugarejo de “O Sol é Para Todos” como um médico legista que rasga a pele do cadáver para expor o câncer que ali corrói a carne e a alma. Levanta o lençol para expor o corpo à beira da calçada, numa via pública, ou numa estrada deserta. Subversiva demais, desnuda o estilo de vida americano, pregado pelo desenvolvimentismo econômico da década de 1950, na época em que o livro foi lançado como a melhor alternativa à ameaça do comunismo que se propagava da União Soviética. Ao mesmo tempo, é uma obra universal, que trata de valores comuns a todos, ancorados na hipocrisia e no preconceito.

Assim, Harper Lee construiu um livro grandioso, tanto pela narrativa tecnicamente perfeita, como na construção dos personagens, que os torna inesquecíveis, quanto nos valores que se propôs a defender, de grande coragem naquele começo de década de 1960. Basta lembrar que a luta pela igualdade de direitos dos negros com os brancos estava engatinhando. Seu texto é enxuto, vigoroso, que fui com uma naturalidade impressionante, além de sedutor. O romantismo possível ao livro se esvai já nas primeiras páginas, quando a narradora relembra que os dois primeiros clientes de seu pai morreram na cadeira elétrica por teimosia, ao se negarem uma proposta de acordo no tribunal que lhe dariam prisão perpétua. “Para Matar Passarinhos”, nesse sentido, parece mais destruir a inocência das crianças, fazê-las perceber de modo traumático o lado cruel das pessoas e da existência. Por isso, o livro de Harper Lee é uma obra revolucionária em seu tempo, de uma coragem rara, além de dirigida a leitores mirins, com o propósito de incutir em suas mentes que eles têm o poder de mudar as coisas, de fazer do mundo um lugar melhor.

Sutil ao tratar do racismo, engraçado nos muitos diálogos em que Jean Louise entra em confronto com o mundo adulto, poderoso na defesa de valores nobres de humanismo, “O Sol É Para Todos” faz o leitor imaginar com clareza cada instante do livro. Por isso, tornou-se um dos romances mais adorados de todos os tempos. Traduzido para mais de 40 idiomas e mais de 30 milhões de exemplares vendidos, não por acaso, foi eleito pelo “Librarian Journal”, dos EUA, o melhor romance do século XX. Em 2006, uma pesquisa na Inglaterra sobre os livros mais importantes da história o colocou no primeiro lugar da lista, à frente da “Bíblia” e da trilogia “O Senhor dos Anéis”. Portanto, passou da hora de ser reverenciado entre os brasileiros.


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