[22 de 100] O difícil inventário da dor de Philip Roth

Existe um quase subgênero biográfico ainda não devidamente reconhecido ou mapeado: o de filhos que escrevem memórias sobre seus pais e a importância que estes tiveram em sua formação. No Brasil, pelo menos duas obras relativamente recentes são exemplares disso pela excelência de seus textos – “Graciliano: Retrato Fragmentado” (1991), de Ricardo Ramos, sobre Graciliano Ramos; e “Quase memória” (1995), de Carlos Heitor Cony. Ambas tratam de um tema doloroso a seus autores, a ausência paterna e o testemunho de seu definhamento até a morte, sem cair na pieguice, no sentimentalismo ou na veneração. “Patrimônio”, de Philip Roth, segue o mesmo estilo autobiográfico com um esquema narrativo ficcional e elementos que dão fluidez à história, ao narrar a vivência com seu pai, o vendedor de seguros Herman Roth. Tudo se passa no decorrer de sete anos, entre duas tragédias que marcaram sua vida: a morte da mãe, em 1981, fulminada numa mesa de restaurante por um enfarto, e a descoberta, alguns anos depois, de que seu genitor estava com um câncer avançado no cérebro, aos 86 anos. 

Embora não apareça entre os livros mais celebrados do escritor norte-americano, “Patrimônio” deveria ao menos ser lembrado por um aspecto: tornou-se um divisor de sua obra literária, a passagem para um novo patamar de valores em sua produção. Foi a partir dessa narrativa mais ou menos autobiográfica que Roth chegou à maturidade temática, com abordagens mais densas e existencialistas. Escreveu um daqueles livros que o leitor costuma lembrar por toda a vida, tamanha a sua força dramática. A partir de franquezas corajosas e boas doses de humor, elaborou-o enquanto o pai ainda estava vivo, o que lhe permitiu experimentar as mais intensas experiências de sua vida: a reflexão diante da impotência causada por uma doença, da brevidade da existência e da certeza implacável da morte – temas que retomaria em “O Escritor Fantasma”, “O Homem-Comum” e “Nêmeses”. Por outro lado, explorou a redenção ao tratar de alguém que, na maior parte de sua existência, manteve-se distante da família por motivos diversos que iam de sua personalidade forte, dominadora, machista e inquestionável.

Só então, com mais de 50 anos de idade, Roth conheceu e aprendeu a amar o homem que só lhe permitira apenas respeitar ao longo de toda a sua existência. Um sujeito prisioneiro do próprio mundo, cercado de incertezas e fragilidades que lutou para não deixar fluir e vivenciar. A aproximação do fim humaniza tanto o pai quanto o filho. Herman se revela um sujeito extraordinário da forma mais dolorosa possível: à medida que o câncer o devora, ele perde parcialmente a visão e a audição e admite suas fraquezas físicas e emocionais. Nesse momento, o filho descobre outra pessoa e se encanta, mas com desconfiança, a princípio. A seu modo, os dois se deixam envolver por uma relação tocante. Ao relacionar memórias um tanto quanto fragmentadas e caóticas, de certo modo, o autor dribla os clichês para construir uma narrativa por meio da descrição de pequenos gestos e pelas observações que o filho atento faz do pai.

O que se poderia chamar de amizade entre os dois começa no velório da mãe e se completa depois com a descoberta da grave doença do genitor. Para o filho, satisfazer as necessidades da mãe, se ela tivesse sido a sobrevivente da relação, pareceria algo natural e fácil de gerenciar porque ela era o repositório do passado da família. Mas, com o pai, tudo se complicava. Ele possuía “uma personalidade mais difícil, muito menos sedutora e também menos maleável”. Roth se viu perdido diante da inevitabilidade de que o pai deixaria em breve de existir. Generoso, tenta simplesmente compreender o homem tão falho que o gerou. O narrador fraqueja o tempo todo em seu propósito. Mais que o pai, aos poucos, ele vai se desmoronando.

Ao reconstruir esses fatos, Philip Roth revela uma forma de superar a perda com grandeza, que o aproxima de uma experiência quase divina de descobrir nas pessoas algum sentido para justificar porque existimos ou porque somos o que somos. Mas não perde a mão em nenhum momento da narrativa. “O que os cemitérios provam, ao menos para gente como eu, não é que os mortos estão presentes, mas que se foram de vez. Eles se foram, enquanto nós, por enquanto, não fomos. Isso é fundamental e, embora inaceitável, bem fácil de compreender”, observa, no final. Ao ser relançado no Brasil, vinte e um ano depois de sua primeira edição, “Patrimônio” permanece poderoso e faz o leitor admirar Roth não apenas como escritor, mas pela pessoa que ele se revela nesse confessionário que deu outro sentido à sua vida e a seus romances.


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