leno_capa_textoHá exatos 25 anos, o Brasil perdeu o talento singular e a irreverência anárquica de Raul Seixas. Morto aos 44 anos, o cantor e compositor baiano partiu cedo, mas deixou obra atemporal registrada em centenas de composições e quase duas dezenas de álbuns autorais. Portanto, hoje é dia de celebrar a memória do saudoso Maluco Beleza. Afinal, desde os anos 1970 – período no qual, como diria Rita Lee, roqueiro brasileiro tinha cara de bandido – Raulzito fez e continua a fazer a cabeça de milhões de brasileiros.

Quintessência costuma tratar de títulos raros e, convenhamos, Raul foi artista de grande êxito comercial. Falaremos, então, de sua pouco comentada faceta de produtor, por meio de Vida e Obra de Johnny McCartney, terceiro álbum solo do cantor e compositor Leno, da dupla Leno & Lílian, detentora de dois estrondosos sucessos da Jovem Guarda, Pobre Menina e Devolva-me.

Gravado nos estúdios da CBS em cinco sessões realizadas entre os dias 25 novembro de 1970 e 18 janeiro de 1971, Vida e Obra de Johnny McCartney foi o primeiro álbum brasileiro registrado em oito canais. Pioneirismo casual que reflete ambições bem planejadas por Leno e convertidas em moderna linguagem musical por Raulzito Seixas – nome artístico usado pelo baiano após o fim do grupo Os Panteras e antes de debutar em carreira solo.

As pretensões artísticas de Leno começam, claro, com o título do álbum que remete ao par de compositores dos Beatles. Mas, para além da citação supérflua, Leno atribuiu ao repertório do álbum expedientes conceituais certeiros, como os explorados pelos fab four na obra-prima Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band.

Aspirante a ídolo do rock n’ roll, o personagem Johnny McCartney é porta-vez das opiniões libertárias de Leno e Raul e defende um livre arbítrio inimaginável para os dias opressores vividos pela juventude brasileira naquele início de década. Afinal, o presidente do País era o temido general Médici e vivia-se o auge repressivo do regime ditatorial implantado com o golpe civil-militar de 1964. Não por acaso, o álbum teve metade das letras censuradas, fato que instigou os executivos da CBS a conferirem o que, afinal, estava sendo registrado pelos dois roqueiros. Pasmados com a ousadia de letras como Sr. Imposto de Renda, Não Há Lei em Grilo City, Por Que Não?, e o viés pouco comercial das 12 composições (como em Sgt. Peppers, há também uma vinheta final, de 33 segundos, que repete a faixa de abertura) a direção da CBS não hesitou em prontamente engavetar o projeto e dizer a Leno que as fitas seriam apagadas.

Além de Raul – que compôs seis das 12 canções com Leno, e com ele arranjou todas elas – Vida e Obra de Johnny McCartney reúne também os grupos A Bolha, Renato e Seus Blue Caps e os urugaios do Los Shakers. A exemplo de Leno, Raulzito toca violão e guitarra no álbum e fez também backing vocals em algumas canções. Quatro delas ganharam arranjo vocal do Trio Ternura, Lady Baby e Contatos Urbanos, e dos Golden Boys, Deixo o Tempo Me Levar e Pobre do Rei – esta última, dos irmãos Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle, aparente alusão ao general Médici, claro, foi uma das letras censuradas e contou com a participação de Marcos ao piano elétrico.

Leno e Raul em imagem da contracapa de Vida e Obra de Johnny McCartney
Leno e Raul em imagem da contracapa de Vida e Obra de Johnny McCartney

Em 1995, o jornalista e produtor Marcelo Fróes descobriu as fitas masters do LP, durante pesquisa para seu livro Jovem Guarda em Ritmo de Aventura (Editora 34, 2000). Vida e Obra de Johnny McCartney pôde, enfim, ser lançado de forma independente, por meio da gravadora Natal Records, de Leno, 25 anos após sua concepção.

Graças ao acaso e o faro essencial de Fróes, Leno pôde ter revelado esse capítulo emblemático de sua trajetória e o País pôde conhecer um dos trabalhos que preconizam e atestam a faceta de grande produtor de Raul Seixas (ele também assinou trabalhos de, entre outros, Tony & Frankye, Edy Star, Diana, Sergio Sampaio, Miriam Batucada e Oswaldo Nunes). À primeira audição, Vida e Obra de Johnny McCartney deixa patente que seu frescor e modernidade permanecem intactos principalmente graças ao belo acabamento dado por Raulzito às ideias do amigo Leno.

Ouça a íntegra de Vida e Obra de Johnny McCartney

Confira a íntegra do documentário Raul, o Início, o Fim e o Meio, de Walter Carvalho  

Boas audições e até a próxima Quintessência!

MAIS:

Leia a seguir relato de Marcelo Fróes sobre a descoberta das gravações do álbum.

O álbum Vida e Obra de Johnny McCartney foi concebido como um divisor de águas que Leno pretendia imprimir à sua carreira, iniciada com sucesso tanto quando da estreia da dupla Leno & Lílian em 1966, como também do lançamento de seu primeiro solo em 1968. Vivendo as mudanças sonoras e comportamentais que a música pop conferia ao final da década, suas músicas apontavam para novos rumos. Tendo a seu lado o amigo e então produtor Raulzito Seixas, Leno reuniu um forte repertório e convidou músicos de peso para acompanhá-lo em sessões de seu terceiro álbum solo, realizadas entre o final de 1970 e o início de 1971. Para um artista que poderia ter se acomodado à série de hits sucessivos que vinha acumulando no mercado, um ousado passo como este só seria possível com um músico cuja integridade e sinceridade artística o fizesse correr riscos. Leno correu e pagou o preço. Quando metade das letras do disco foram vetadas pela censura da época, a CBS resolveu ouvir o que vinha sendo gravado e, ao verificar que aquilo fugia aos padrões comerciais vigentes no mercado, determinou o arquivamento do projeto. Pouco depois, quando Leno mudava de gravadora, foi informado de que os tapes seriam apagados. Vinte e cinco anos depois, quando eu estava realizando uma pesquisa aprofundada nos arquivos de tapes da atual Sony, com vistas ao lançamento de um livro sobre a Jovem Guarda, deparei-me com duas caixas empoeiradas, em cujas etiquetas constavam músicas de Leno das quais nunca ouvira falar. Liguei para um artista e ganhei um amigo. Primeiro disco gravado em 8 canais no Brasil, Vida e Obra de Johnny McCartney foi mixado digitalmente a partir das fitas originais. Verdadeiro elo-perdido do rock brasileiro, com faixas que antecipam diversas tendências exploradas nos anos seguintes, este lançamento é coisa do destino!

Marcelo Fróes, 1995

Confira também reportagem escrita por Gonçalo Junior, editor da Brasileiros, a propósito do lançamento, em 2006, do livro Vivendo a sociedade alternativa: Raul Seixas no panorama da contracultura jovem, de Luiz Alberto de Lima Boscato.  

 


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