30 anos de vanguarda

O I Festival Universitário de Música Popular Brasileira, realizado pela TV Cultura em São Paulo, no final de abril e início de maio de 1979, pode ser considerado um divisor de águas da nossa música. O júri, presidido pelo dramaturgo Chico de Assis, ou seguia a preferência do público e contemplava “Brigando na Lua”, um samba de breque de Mário Manga, que na época se chamava Biafra, defendido pelo grupo Premeditando o Breque, ou apostava no novo, representado por “Diversões Eletrônicas”, de e com Arrigo Barnabé à frente de uma banda que trazia, entre outros, Itamar Assumpção no contrabaixo e Bocato no trombone. Preferiu arriscar. No final do mesmo ano, o Festival 79 de Música Popular realizado pela Rede Tupi de Televisão, já em seus estertores, ratificava a decisão da Cultura dando dois prêmios para “Sabor de Veneno”, de Arrigo Barnabé. Melhor arranjo para o autor e melhor intérprete para a paranaense Neusa Pinheiro. No ano seguinte, Arrigo lançaria Clara Crocodilo, um disco independente que se tornaria o símbolo da vanguarda paulista, que naquele tempo não era chamada assim.

O Teatro Lira Paulista criaria um selo para lançar Beleléu (1981), estréia de Itamar, e por um breve momento acreditou-se que tudo iria mudar. E, descontando-se o sucesso financeiro que nunca chegou, mudou mesmo. A gravadora Atração, cujo proprietário é Wilson Souto Jr., o “Gordo”, criador do Lira, abre um espaço em seu catálogo popular para relançar a discografia de Arrigo. E comemora o lançamento com o CD inédito Arrigo Barnabé e Paulo Braga, Ao Vivo, Em Porto, concerto realizado em junho de 2004 no Teatro Nacional São João daquela cidade portuguesa. Traz interpretações pianísticas em duo de quatro temas de “Clara Crocodilo”, além de “Outros Sons”, parceria com Carlos Rennó, e “Cidade Oculta”, com Eduardo Gudin e Roberto Riberti, da trilha do filme de mesmo nome dirigido em 1986 por Chico Botelho. O próprio Arrigo comenta os lançamentos para Brasileiros.
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Ouça a faixa “Cidade oculta”:

 

BRASILEIROS – Quais discos deverão ser relançados?
Arrigo Barnabé –
Todos, a começar por Cidade Oculta e Suspeito, que ainda não haviam saído em CD. De novidade, seriam algumas compilações de material para teatro, cinema, faixas em álbuns de outros intérpretes, como as gravadas no LP do festival da Cultura (Arrigo classificou também “Infortúnio”) e a gravação de Tetê Espíndola para “Londrina” (finalista do MPB Shell 81) e “Canção dos Vagalumes”, que só saiu em compacto simples.

BRASILEIROS – No encarte de Ao Vivo em Porto, Regina Porto (musicista e parceira de Arrigo em vários trabalhos, entre eles, Diversões Eletrônicas) disseca as interpretações e fala do solo de “Sinhazinha em Chamas” composição sua gravada por Passoca e outros. Mas ela não está no disco.
A.B. –
Não, na verdade ela está comentando o show.

BRASILEIROS – Você já havia trabalhado com Paulo Braga em Gigante Negão, Façanhas, e na continuação de Clara. Como surgiu a idéia do duo e quem faz o quê?
A.B. –
Começamos em 1991 ou 1992. Geralmente o Paulo improvisa e eu faço a base e vocais. Em alguns momentos eu improviso alguma coisa, e o Paulo também faz vocais.

BRASILEIROS – Procede a lenda que você teria levado a fita de Clara Crocodilo para o Paulinho da Viola dizendo que era dodecafônica (*) e ele teria respondido que já o conhecia e que na verdade tratava-se de música serial?
A.B. –
Nossa, nunca ouvi falar nisso! Fui até a casa do Paulinho levar o LP. Esperei um tempão num bar embaixo, porque ele estava dormindo. Finalmente ele me recebeu, bastante irritado. Não me conhecia, é lógico. Quando leu a dedicatória no LP sorriu e disse: ‘pena não poder ouvir agora, meu som está quebrado…mas vou escutar com cuidado… (Paulinho gostou tanto que participou do disco seguinte, Tubarões Voadores)

BRASILEIROS – Afinal, Clara é serial ou dodecafônica?
A.B. –
Quando fizemos o material musical de Clara Crocodilo, eu e o Mário Cortes, co-autor da música, não sabíamos nada sobre dodecafonismo. É evidente que não é dodecafônica. E, para ser serial, necessitaria, primeiro, ser dodecafônica. Eu a defino como modular, uma música que trabalha com módulos e cada um deles tem um centro tonal próprio, mas não é uma coisa evidente. Também “Sabor de Veneno” não tem nada, nada, de dodecafônica. E o “Office-boy” tem a primeira parte dodecafônica, quer dizer, usa essa técnica, mas aí também há, muito disfarçadamente, um pedal em mi.

BRASILEIROS – De qualquer forma, remetia à estranheza do dodecafonismo. A que você atribui o, digamos, sucesso que você alcançou? Afinal, muitos músicos de hoje se formaram ouvindo Clara.
A.B –
Acho que existe bastante vitalidade nessas peças que escrevi nos anos 1970. Mas, principalmente, são espontâneas, e é aí que eu aceito a possibilidade de serem “música popular”.

BRASILEIROS – Nela tem pop, quadrinhos, mas será que o ritmo marcado da bateria e o baixo teria deixado as estruturas mais roqueiras?
A.B. –
Como se pode observar, o ritmo marcado não é exatamente rock, mas eu identifico nessas músicas a mesma vitalidade do rock, esse caráter épico, essa qualidade menos lírica que o rock tem.

BRASILEIROS – O disco ficou muito bom. Como a Regina escreveu, parece que você expôs as maquetes do trabalho ao executar as músicas dessa forma.
A.B. –
Falou, acho que está bem feito esse trabalho… ao vivo, sem cortes e edições…dá pra colocar num CD mesmo.

(*) O conceito de música serial pode ser observado desde o final do século XIX em vários compositores, mas consolidou-se com Arnold Schöenberg na segunda década do século XX. A idéia, apesar de extremamente cerebral, era livrar a música das amarras harmônicas e tonais para torná-la… livre. Schöenberg pegou a escala cromática, ou seja, as sete notas que conhecemos de Dó a Si mais os cinco semitons entre elas (as notas pretas do piano), um total de 12 sons, daí dodecafônica, e elaborou séries. O sistema foi trazido para o Brasil por H. J. Koellreutter nos anos 1940. A combinação de notas que não se repetiam para muitos foi considerada um “pesadelo auricular”.

Clara Crocodilo

(1980 – Independente, 2000 – Thanx God Records)

Tubarões Voadores

(1984 – PoLydor, 2000 – Thanx God Records)

Cidade Oculta

(1986 – Barclay)

Suspeito

(1987 – 3M)

Façanhas

(1992 – Camerati)

Gigante Negão

(1998 – Núcleo Contemporâneo)

A Saga de Clara Crocodilo

(1999 – Thanx God Records)

In Memoriam – Itamar Assumpção

(2006 – Thanx God Records)


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