48 horas na Cisjordânia

Absolute Israel ou Free Palestine? Tudo depende se o viajante está no bairro judeu ou em frente à quinta estação da Via Sacra, no bairro muçulmano da Cidade Antiga de Jerusalém. A chamada “Cidade Antiga” tem apenas 1 quilômetro quadrado de área, mas até as camisetas vendidas aos turistas refletem as divisões profundas dessa região do mundo. O viajante mais atento não demora a perceber que aqui as palavras, ou melhor, a escolha de cada palavra define de que lado você está. Enquanto o número 40 espalhado pelas ruas de Jerusalém em 2007 significava para os guias turísticos israelenses os 40 anos da liberação de Jerusalém, para os palestinos os mesmos 40 marcavam os anos da ocupação israelense. Dependendo do seu interlocutor, o paredão de concreto construído unilateralmente por Israel é um muro ou uma cerca de segurança. Na Terra Santa, descobre-se rapidamente que as estampas das t-shirts à venda para os turistas são mais do que um simples trocadilho com a vodca Absolut ou uma piada sobre o serviço de inteligência israelense.

O centro histórico de Jerusalém é uma das primeiras paradas da minha viagem a caminho de Ramallah, na Cisjordânia. Oito portões dão acesso à parte mais antiga da cidade, que é cercada por uma muralha construída há quase 500 anos por ordem do sultão otomano Solimão, o Magnífico. Impossível não notar a quantidade de câmeras de segurança e soldados. E todas as vezes que passeei pelas ruas estreitas, cercadas pela muralha, vi jovens e homens muçulmanos sendo revistados ou tendo os documentos checados por soldados israelenses.
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Parto de Jerusalém para Ramallah num fim de tarde. Apesar de já ter visto tantas imagens de checkpoints, confesso estar apreensiva por finalmente passar por um dos mais de 500 bloqueios israelenses em estradas na Cisjordânia. Mas o que me espanta é verificar que passamos rapidamente sem qualquer pergunta ser feita – aliás, tanto na ida quanto no regresso a Israel. A explicação é que estamos em um carro com placa de Israel dirigido por um palestino, cidadão israelense, e que nenhum dos passageiros tem “cara” de árabe.

Controle e bom humor
As próximas 48 horas em Ramallah são como um redemoinho de encontros, histórias, passeios pela história, dramas e gargalhadas – porque se há algo que os palestinos tentam não perder é o senso de humor. A começar pelo checkpoint. “Ah…” – confidencia o relações-públicas Kamel Husseini ao pararmos no meio de uma estrada por causa de um tanque israelense -, “usamos o checkpoint como desculpa para tudo… Se chegamos atrasados a um encontro, foi o checkpoint, se deixamos de fazer alguma coisa, a culpa é da ocupação israelense, e assim a gente vai levando…”

Minha anfitriã é Wafa Abdel Rahman, diretora da Filastinyat, uma ONG criada há três anos para promover o debate sobre mulher e jovens nos meios de comunicação palestinos. Ela já me recebe com um aviso: “Amanhã tem festa com churrasco!”. E muda o tom ao começar a falar do trabalho. “Não é fácil porque, é claro, existem a ocupação, o muro e os assentamentos de colonos israelenses, mas esses assuntos estão na mídia. Nós trabalhamos com assuntos tabus, que existem, mas que a sociedade prefere ignorar, como os casamentos entre pessoas de religiões diferentes ou o namoro pela internet – uma mania entre os jovens que agora só querem ficar nos chats. Também ensinamos mulheres líderes em diferentes profissões a atrair a atenção da mídia para o trabalho que estão fazendo e criamos um banco de dados com todas as jovens líderes da Faixa de Gaza e Cisjordânia. A única condição para fazer parte da organização é ser secular.”

Wafa começou o ativismo político ainda na escola. Ser ativista na escola significava lutar contra a ocupação. Confessa que na época da universidade, quando estudava história e ciência política, era marxista, o que provocava infindáveis discussões políticas. Depois, fez mestrado em desenvolvimento alternativo, o que reforçou o desejo de trabalhar com a sociedade civil. Na família, todas as irmãs estudaram. Hoje ela faz parte da Comissão Internacional de Mulheres, formada por palestinas e israelenses, e trabalhou com Hanna Ashrawi, ex-porta-voz da Autoridade Palestina, antes de criar sua própria ONG. As dificuldades são muitas. “Eu preciso de permissão dos israelenses para sair de Ramallah e ir para Belém, que fica aqui do lado… Nós trabalhamos com mulheres em todo o território. Eu não posso nem ir a Gaza, onde vivem meus pais. Gaza fica a duas horas de Ramallah e eu levei oito anos para conseguir uma permissão. Fiquei oito anos sem ver meus pais” – repete, tentando conter as lágrimas. “Quando cheguei, um sobrinho veio me buscar. Eu não o reconheci, pois a última vez que o tinha visto ele tinha 12 anos. A minha irmã acaba de ir a Gaza, ela também levou oito anos para conseguir uma permissão e teve medo de levar a filha, que até hoje não conhece os avós. Há pouco tempo, quando minha sobrinha tinha 2 anos, conseguimos uma permissão de cinco horas para irmos a Jerusalém. Nós corríamos de um lado para o outro tentando mostrar-lhe tudo, para que ela memorizasse os diferentes aromas de Jerusalém, e repetíamos o nome da cidade e dos lugares, com medo de que ela se esquecesse de que esteve lá. Mas essa não é uma história exclusiva da minha família. Todo mundo aqui passa por isso.”

Vida real, sofrida
Meu primeiro dia oficial em Ramallah começa cedo. Das 7 da manhã às 10 da noite temos mais de 12 encontros com ex-ministros, negociadores, gente do governo. Mas são as viagens de carro que proporcionam as conversas ainda mais inusitadas. De carona com Kamel Husseini, passamos em frente ao muro. Kamel dá um sorriso amarelo: “Tenho pena dos contribuintes israelenses, seus impostos pagaram uma obra cara e que mais cedo ou mais tarde vai ter de ser destruída… Enquanto isso, para nós, palestinos, o muro separa famílias, amigos, e nos separa do nosso inimigo, os israelenses. Se a paz é se fazer ouvir pelo outro, o muro impede qualquer contato. Mas não tenho dúvida, este muro aí que você está vendo vai virar peça de museu, do museu do conflito palestino- israelense, de algo que passou, que não durou para sempre”.

Especialista em comunicação, Kamel se revolta por achar que a imprensa não fala das histórias de compaixão dos dois lados. “Os pais do menino morto em Jenín, que resolveram dar os órgãos do filho para crianças israelenses, não viraram notícia em lugar nenhum. Eu levava minha mãe para tratar de câncer na época da segunda Intifada. No hospital chegavam soldados israelenses e jovens palestinos ensangüentados. Havia muito ódio nas salas de espera, entre as famílias, e no departamento de oncologia eu via minha mãe e outras palestinas e israelenses com câncer. Nenhuma se importava com a religião ou de que lado estavam, elas só se preocupavam em consolar as demais. Na época, eu fiquei tão emocionado que escrevi um artigo chamado ‘Quimioterapia da Paz’. Ninguém quis publicar. Para mim só há uma solução, você vai rir, mas é Hollywood. A gente precisa que alguém como Steven Spielberg faça um filme, sem medo, sem vergonha, sobre o drama humano desse conflito. Há dez anos eu envio cartas para o escritório dele. Todas voltam, pois o escritório não abre correspondência não solicitada. Mas eu continuo tentando.”

Aparentemente, o homem que virou a cara dos negociadores palestinos também tem uma solução quase hollywoodiana para o conflito. Para Saeb Erakat, negociador-chefe palestino, as negociações se esgotaram. “O que precisamos é de líderes que decidam, que Olmert e Abbas se sintam sozinhos, sem assessores, sem minutas, sem câmeras, sem vazamento de informação para a imprensa, e produzam meia página de decisões. Com essas decisões nós produzimos o acordo de paz. Para o que perder mais tempo? Eu estou escrevendo um livro sobre o comportamento dos negociadores palestinos e israelenses e, claro, dos norte-americanos, já que eles são os parceiros mais presentes destes anos de negociação. Antes de os norte-americanos irem para o Japão ou para a China, eles aprendem como comer de pauzinho, a ser atentos às diferenças culturais etc. Aqui eles chegam com uma lista de compras de supermercado. Se eu não digo o que eles querem, eles vão para o Bassan, se o Bassan não diz o que eles querem, eles vão para o Mohammad… até encontrarem alguém esperto, que diga exatamente o que eles querem ouvir. E eles acreditam. É por isso que Camp David falhou. O ponto é que o fracasso aqui não significa só um livro sobre fracassos, mas milhares de mortos – a maioria palestinos, mas também israelenses -, ou seja, vidas perdidas dos dois lados.”

O que você faz quando entra num campo de refugiados e o levam imediatamente para a casa dos pais de um menino que morreu vítima de um tiro disparado por um soldado israelense? Quando a mãe e o pai muito pobres mostram aquela foto emoldurada que nos acostumamos a ver de tempos em tempos no noticiário da TV? E quando cinco minutos depois estão levando você para ver a clínica que estão tentando construir e a praça com um monumento aos mártires que morreram lutando contra a ocupação? O silêncio entre os que visitam o campo de Jalazon é desconfortável e, se tivesse sabor, seria amargo.

Cenário de guerra
Chego à Mukata ao pôr-do-sol. Mukata é a sede do governo palestino, onde Yasser Arafat está enterrado e onde ficou sitiado por tanques israelenses na ofensiva de Ariel Sharon contra os territórios palestinos, em dezembro de 2001. Ao entrar na Mukata é quase automático lembrar das cenas do cerco de Arafat e, posteriormente, do seu enterro em 2004. Temos uma audiência com o chefe de gabinete de Mohammad Abbas, mas eu confesso que, depois de ter escrito tantos textos sobre o que acontecia no Oriente Médio, sempre baseados em notas divulgadas por agências de notícias internacionais, tenho uma curiosidade irresistível de entrar na sala onde Arafat passou seus últimos dias, antes de ser levado para o hospital em Paris. Assim que a reunião termina, pergunto se podemos entrar. A sala permanece como Arafat a deixou. Atrás da mesa, um gigantesco pôster com a foto do Domo da Rocha, o único santuário islâmico antigo que sobreviveu intacto em Jerusalém.

Quando deixamos a Mukata já passa das 9 da noite. Ficamos sabendo de um encontro que não estava agendado. Mohammed Dahlan vai nos receber. Dahlan é um personagem polêmico da recente história palestina. Acaba de chegar à Cisjordânia, apesar de estar jurado de morte pelo Hamas, que controla atualmente a Faixa de Gaza. Ex-chefe do Conselho de Segurança Nacional palestino e membro do Fatah (partido do governo), saiu de Gaza pouco antes do confronto com o Hamas, deixando para trás, abandonados, segundo muitos palestinos, os seus subordinados. Quando jovem, liderou ações contra os israelenses e passou cinco anos em prisões do inimigo. Depois, esteve envolvido em negociações secretas que culminaram com o Tratado de Oslo e, mais tarde, também esteve presente nas fracassadas negociações de Camp David. Dahlan, que durante as negociações fazia questão de viajar de primeira classe e ficou famoso pelos ternos italianos, chegou a ser acusado de trabalhar para os israelenses. Não pensamos duas vezes em aceitar um encontro cara a cara com um homem considerado o verdadeiro senhor da guerra. Ao chegarmos, ficamos esperando dentro do carro a ordem para entrar. No terraço, atiradores a postos com seus rifles. Ao entrar, somos revistados. Na sala de espera, enquanto a secretária nos dá boas-vindas, entre duas poltronas descansa uma AK-47, que, passados uns minutos, a assistente tenta esconder. Somos postos numa sala de reuniões com a maior mesa que eu já vi em toda a minha vida. Ficamos uma hora com ele. Fazemos algumas imagens iniciais e ele pede que o resto da conversa seja longe da câmera – apesar de esta já ter sido minuciosamente checada pelos seus seguranças. Sorri ao explicar que, em razão do tempo passado na prisão, ele e a maioria dos palestinos de sua geração (Dahlan nasceu em 1961) aprenderam a falar hebraico e que essa, muitas vezes, havia sido a língua usada nas negociações entre israelenses e palestinos. Para surpresa dos norte-americanos, que nada entendiam. Mais importante do que qualquer palavra que Dahlan diz é a aventura do encontro com ele em Ramallah.

São 11 da noite quando chego na casa de Wafa para o churrasco, que está apenas começando. Muita música, muita gente, todos dançando, discutindo política, se divertindo. Festa como em qualquer lugar do mundo. Essa só acaba lá pelas 5 da manhã. “A gente tenta se divertir” – diz Wafa no dia seguinte na conversa que, desta vez, é à base de húmus, item indispensável no café-da-manhã que comemos numa lanchonete no centro de Ramallah. Wafa é a única mulher, o que não a intimida nem um pouco. Fazemos um tour pelas ruas. A maioria das lojas está fechada, mas a sorveteria está aberta. “Ramallah é famosa pelo sorvete” – anuncia minha guia. E em minutos estamos todos experimentando o arabic gum, o sabor típico de Ramallah. Na mesa ao lado, um grupo de jornalistas, todos homens, discutem política. Ninguém parece muito animado com mais uma iniciativa de paz norte-americana. Continuamos o passeio por ruas desertas, pois é sexta-feira e a maioria das pessoas lota as mesquitas. Nas paredes, cartazes meio gastos de mártires. Chegamos à praça principal onde acontecem todos os protestos e onde Wafa costuma organizar manifestações. Ela aponta, sorrindo, para o segundo andar de um prédio em que se pode ver a versão palestina da rede de café americana Starbucks – aqui em Ramallah, Stars & Bucks.

“As pessoas estão cansadas. É difícil falar em esperança no dia-a-dia quando você não tem nenhuma mensagem de esperança para passar” – continua Wafa. “Também não nos peçam para ficar parados, esperando de tempos em tempos algo do tio Sam ou do tio Shlomo. Estamos aqui para ficar e temos de encontrar soluções criativas conjuntas para viver lado a lado, israelenses e palestinos.”

Na volta para Jerusalém, subo ao terraço do prédio onde estou hospedada. O velho hospício austríaco, na esquina da Via Sacra, convertido em hotel, é uma das jóias da Cidade Antiga, com a melhor vista dessa parte de Jerusalém. Aqui, ao amanhecer, o cantar dos passarinhos se mistura ao som dos jumentos, aos chamados das preces muçulmanas, das judaicas, e ao toque dos sinos das igrejas cristãs. E eu deixo a Cidade Santa com a imagem gravada do que vi no meu primeiro dia em Jerusalém, quando, correndo apressada, perdida, por uma das escadarias, vi de relance duas mães empurrando seus carrinhos de bebê ao mesmo tempo, subindo o mesmo degrau. As duas religiosas, as duas cobertas por inteiro, uma muçulmana, a outra judia ortodoxa. As duas caminhando assim, lado a lado.

FRAMEWORK PARA A PAZ
Simone Duarte foi ao Oriente Médio para as filmagens do documentário Track4, que está produzindo. Ela acompanhou três dos 13 estudantes norte-americanos que, durante três meses, simularam uma negociação de paz entre palestinos e israelenses. A simulação não foi um mero exercício acadêmico. Eles se tornaram os primeiros no mundo a criar um “framework” para uma solução regional de paz no Oriente Médio. Três meses antes de o presidente Bush reunir os líderes árabes, europeus, palestino e israelense em dezembro de 2007, em Annapolis, os três estudantes de mestrado de Nova York partiram para a Cisjordânia e Israel para mostrar o resultado de suas negociações a palestinos e israelenses. Na próxima reportagem, Simone escreverá sobre os dias passados em Israel.


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