A alemã dos Vargas

A menina era para ter nascido no dia 1º de julho último. Mas aquele domingo veio e passou sem que a criança entrasse para a História. Não houve espanto ou drama: sabe como são imprevisíveis, os Vargas. E esse bebê tem linhagem direta com Getúlio Dornelles Vargas, de quem é tataraneta. Para alívio dos parentes, porém, o nascimento não encruaria até agosto – mês de desgosto para os brasileiros, principalmente para essa família. Fernanda Vargas Hamilton Kimball veio ao mundo em 4 de julho – dia da independência dos Estados Unidos – na maternidade do Cedars-Sinai Hospital, em Los Angeles. Filha de William (Billy) Kimball e Alexandra Manuela Vargas Hamilton Kimball. Neta de Cândida Darci, que era filha do doutor Lutero – o primogênito do presidente Getúlio. Ao caldeirão genético da pequena Fernanda some-se boa dose de cromossomos holandeses e alemães da família Ten Haeff, uma contribuição da artista plástica Ingeborg ten Haeff, a bisavó, primeira esposa de Lutero Vargas. Fraulain está vivíssima aos 92 anos*, e terá o prazer de segurar a descendente nas mãos – as mesmas que lhe servem de instrumento de trabalho e inspiração nos desenhos que faz.

Ausente da memória da maioria dos brasileiros, Ingeborg mora magnificamente no lado norte do Washington Square Park, epicentro copernicano do Greenwich Village, em Manhattan, Nova York. É, digamos, conveniente que assim seja. Quando os conterrâneos aficionados por Vargas remexem no passado, costumam falar bobagens e caluniar essa senhora.
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Há quem a acuse de ter sido espiã nazista, aboletada no Palácio do Catete, onde supostamente mantinha um rádio de ondas curtas para entregar o ouro aos bandidos. No caso, o posicionamento de navios cargueiros brasileiros e naus de guerra de bandeiras norte-americanas e britânicas, para serem torpedeados pelos U-Boats de Hitler. Contam que foi presa em flagrante delito e mantida incomunicável por ordem expressa do sogro, até ser expulsa do território nacional depois da guerra. E não param por aí as línguas-de-trapos. Tem gente jurando que a belíssima alemã era lésbica.

É, convenhamos, um tanto chato falar das atividades sexuais de uma nonagenária. Mas, por dever de ofício, um entrevistador deve tentar dois dedinhos de prosa. Sentada no sofá modernista em sua sala de estar no Village, Ingeborg sorri placidamente, em companhia do terceiro marido – John Githens, lingüista, escritor e guardião da obra da esposa. “Fui casada com três homens e nos intervalos tive alguns amantes do mesmo gênero”, diz elegantemente sem pruridos. É inimaginável que aquela figura – materialização do que os americanos chamam de bohemian – fosse negacear uma ou outra aventura gay. O estilo bohemian esbofeteia a cara das convenções, a começar pelas que tentam regular as tertúlias no leito. E quem mais, a não ser um bohemian, cobrir-se-ia com as roupas que Ten Haeff exibe com tanta sofisticação irônica? A começar pela ubíqua kaftan solta cor de café-escuro com estamparia puxando pelo abstrato-expressionista. Na cabeça, encobrindo parcialmente a sensual cabeleira ainda loura, um casquete marroquino – marca registrada daqueles que passaram pelo Marrocos – Tânger? Marrakesh? – na época em que o escritor beat norte-americano William Burroughs morava naquelas freguesias. O gorro confere à mulher o perfil de uma estatueta art déco. Os colares metálicos – bronze, prata e cobre – ajudam a reforçar essa imagem. São vários, longos e com design multiétnico. É preciso espinha dorsal de forte caráter para carregá-los. Os anéis – como a margarida de prata – encobrem ao menos três dedos das mãos famosas, ultra-expressivas, compridas, finas, mas fortes. Essas extremidades são reproduzidas ad infinitum nos desenhos que estão em museus europeus e americanos, ou nas exposições de galerias – como aquela do bairro Chelsea, em Manhattan, que encerrou a mostra mais recente em 16 de junho passado.

Sorriso campeão
Ingeborg nasceu em Düsseldorf, em 31 de julho de 1915, mas mudou-se para Berlim ainda menina. Foi na capital alemã, em pleno apogeu do III Reich, que Lutero Vargas entrou em sua vida. “Num dia claro da primavera de 1939, fui a um almoço promovido pelo artista Hugo von Habermann, que pintara meu retrato. O restaurante ficava às margens do lago Wannsee. Éramos muitos convidados numa mesa do terraço. O diplomata Sérgio Alvarenga, primeiro-secretário da embaixada brasileira em Berlim, conhecia Von Habermann e por acaso foi ao mesmo restaurante levando um conterrâneo. Logo a dupla juntou-se à nossa mesa e coube ao meu lado direito a companhia do brasileiro desconhecido. Ele não falava alemão – a não ser alguns termos médicos, pois fazia estágio com a equipe de cirurgia do mundialmente famoso Dr. Ferdinand Sauerbruch. Eu, claro, não falava nada de português. Mesmo assim, conseguimos nos comunicar e nos apaixonamos imediatamente. Lutero tinha um sorriso campeão”, diz Ten Haeff.

Seguiram-se novos encontros e – riso para cá, riso para lá – o namoro engrenou. Mal sabiam os pombinhos que o ditador Benito Mussolini estava para jogar água fria naquele fogo. Na primavera de 1939, as hordas da Wehrmacht e as tropas soviéticas já haviam invadido a Polônia. França e Grã-Bretanha declararam guerra ao Reich. Mas a bronca ficou só na declaração. Durante um bom tempo, ninguém deu um único tiro. Trata-se do período que ficou conhecido como “Guerra Falsa”. Mas, no início de 1940, Mussolini ligou para Getúlio Vargas avisando que o pau iria começar para valer em pouquíssimo tempo. “Vargas, tire o Lutero de Berlim, pois a guerra vai começar mesmo”, teria dito Il Duce. O italiano propôs ao brasileiro que seus filhos fossem juntos para o Brasil, ou seja: o primogênito de Benito – um piloto capaz e que morreria em combate na guerra que se iniciava – voou para Berlim para salvar Lutero. Foram dali para Roma, seguindo para Lisboa e Açores e aterrando finalmente no Rio de Janeiro. Ingeborg ficou a ver navios – como se comprovaria ao pé da letra pouco depois. Seu amado partiu banhado em lágrimas.

Três semanas depois da debandada de Lutero, Ingeborg atende à campainha de sua porta e do outro lado da soleira está Alvarenga. Vinha de chapéu na mão direita e telegrama na esquerda pedir a mão da moça em casamento em nome do jovem Vargas. Sua missão foi coberta de sucesso: Getúlio estava prestes a ganhar uma nora de 25 anos. “O difícil foi convencer os nazistas a me darem o visto de saída. Perguntavam repetidamente por que eu queria me casar com um estrangeiro. Se eu achava que não havia um alemão, ariano puro, que quisesse casar comigo”, diz Ingeborg. Mas a diplomacia brasileira em Berlim, novamente, trabalhou bem. Em poucos meses, a noiva embarcava, acompanhada por um diplomata, num vôo para Roma, depois Lisboa, onde abordou a nau S.S. Bagé.

“Uma das condições impostas pelos alemães para que fosse emitido passaporte alemão com visto de saída era que Ingeborg fosse recebida pelo embaixador da Alemanha no Rio e ficasse hospedada na embaixada até o dia de seu casamento”, diz o atual (desde 1968) marido, John Githens. “Mas à primeira vista do Rio, o navio parou ao largo, bem antes do porto. Ingeborg foi avisada de que seria transferida para outra embarcação. Para espanto dos demais passageiros, ela desceu a precária escada de cordas, para abordar uma lancha da Marinha do Brasil. No convés estava Lutero, com seu sorriso e vestindo o mesmo terno que trajara no último encontro dos dois”, diz John.

A lancha dirigiu-se a um desembarcadouro privado e, de lá, um carro os levou ao Catete, para as apresentações formais aos sogros Darcy e Getúlio. O embaixador alemão é que, dessa vez, ficaria a ver navios. O casamento civil, em 20 de setembro de 1940, foi realizado no Palácio Guanabara, e a cerimônia religiosa, no Convento de Santa Teresa. Em julho de 1941, nasceu Cândida Darci Vargas, filha única do casal. “Enquanto Lutero praticava a medicina em sua clínica, eu tratei de absorver tudo o que podia da cultura brasileira. Estava encantada principalmente com as artes no País. Logo desenvolvi um amplo círculo de amigos. Estudei violão com o músico afro-brasileiro Patrício Teixeira, pois me interessei muito em cantar obras da MPB. Outro relacionamento que desenvolvi foi com o escultor polonês exilado August Zamoyski, que me usou como modelo e passou a me ensinar escultura. E foi também quando passei a produzir minhas obras com dedicação mais sistemática.” As línguas-de-trapos brasileiras passaram a produzir quantidades industriais de fofocas e rumores, que culminariam, anos depois, com o divórcio e o alcoolismo de Lutero.

Em 1942, porém, o casal ainda estava firmíssimo quando foi apresentado ao milionário norte-americano Nelson Rockefeller, que visitou o Brasil como coordenador de Assuntos Interamericanos do Departamento de Estado. Lutero recebeu convite para uma peregrinação de dez meses pelos Estados Unidos. Washington estava trabalhando duro para que Getúlio Vargas não interrompesse o fornecimento de matéria-prima e entrasse de vez na guerra do lado dos aliados. Um documento do Departamento de Estado norte-americano da época – descoberto pela revista Brasileiros – revela uma ampla investigação sobre Lutero e Ingeborg feita pelos serviços de inteligência daquele país. Dá conta de que não havia nada desabonador sobre o casal e dizia não haver impedimentos para que Rockefeller se relacionasse com qualquer um dos dois. Sobre as origens alemãs de Ingeborg, o Office of Strategic Services (OSS) – órgão de inteligência norte-americano que funcionava durante a guerra e foi precursor da Central Intelligency Agency (CIA) – disse que ela não tinha qualquer ligação com o governo nazista. “Minha ficha era tão limpa que ganhei bolsa da Fundação Rockefeller e, anos depois, da escola de música Julliard.”

“O episódio mais curioso dessa nossa primeira ida aos Estados Unidos foi que um submarino alemão afundou o navio que carregava nossa bagagem. Ficamos nos Estados Unidos praticamente sem roupas”, relembra Ingeborg.

Combustível cultural
O Brasil declarou guerra ao Eixo quando Ingeborg e o marido ainda estavam na América do Norte. Ao retornarem, mal deu tempo de fazerem novamente as malas – as de Lutero repletas de fardas -, pois o filho de Getúlio serviria na Força Expedicionária Brasileira, logo depois de um estágio de treinamento em quartéis norte-americanos. “Foi quando fui admitida na Julliard e fiquei hospedada até o fim da guerra na casa do embaixador do Brasil em Washington”, diz Ingeborg.
O interesse pelas artes e a completa integração aos meios artísticos cosmopolitas dos Estados Unidos serviriam como combustível para que a nora de Vargas decidisse ficar por lá. Com o final da guerra, Lutero voltou ao Rio. “Mas para minha grande surpresa, ele me pediu o divórcio em 1944. Decidi então fazer nova vida em Nova York, onde conheci em 1948 meu segundo marido, o arquiteto Paul Lester Weiner, e minha carreira como desenhista deslanchou”, conta a pintora.

Lutero virara um caco. O ciúme o levou à bebida e, juntos, acabaram com seu sorriso campeão. Cândida, a filha do casal, ficou com o clã dos Vargas e morreria de câncer em 2001. “Ela me visitava muito, assim como outros membros da família Vargas”, diz Ingeborg. Alexandra, a neta, já vive nos Estados Unidos desde a adolescência e mantém contato sempre que pode. “Não sei se dará para aproveitar muito a chegada de minha bisneta. Infelizmente, virei bisavó muito tarde”, comenta. Mas ainda haverá muito tempo para que saia pelo menos um desenho das mãozinhas da nova Vargas.

* Ingeborg ten Haeff  faleceu em 2011.


Comentários

2 respostas para “A alemã dos Vargas”

  1. Avatar de Osny Zipperer
    Osny Zipperer

    No ano de 1974/1975 fui bolsista do Rotary Clube Curitiba Norte, em Berlim/Alemanha. Na época meu orientador que pertencia ao Rotary Club Berlin e também era o seu secretário foi o Senhor K. M. Roscher, aliás uma pessoa brilhante. O Sr. Roscher contou-me na ocasião que Lutero Vargas, filho do Presidente Getúlio Vargas, era seu cunhado. Acredito que o Sr. Roscher deve ter sido casado com a irmã da mencionada Ingeborg ten Haeff. Gostaria imensamente que esta informação que tive naquela época pudesse ser melhor esclarecida. Afinal qual era sua família na Alemanha? Desde já agradeço eventual resposta.

  2. Avatar de hélio parreira
    hélio parreira

    história incrivel, parece que fomos enganados nas escolas, nunca soube o verdadeiro motivo do atentado da rua toneleros, nem da existência desta senhora magnifica.

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