Seja quando apresenta estética mais semelhante à da pichação, seja quando se aproxima do muralismo e da pintura, o grafite é, fundamentalmente, arte urbana. Conhecido também como street art, ele se desenvolveu ao longo das últimas décadas, diversificou suas linguagens e temáticas, entrou em museus e galerias, mas nunca deixou de ser a arte das ruas. Acontece que o minúsculo distrito rural de Riacho do Meio, no município de Choró, no Ceará, nem mesmo possui algo que se possa chamar de rua – apenas alguns caminhos de terra. Mas tem, desde março último, uma série de grafites nos muros das casas, do bar, da igrejinha e da sede da associação comunitária, criando uma paisagem peculiar no sertão nordestino.
O autor das obras é o artista recifense Derlon Almeida, 29 anos, que a convite da marca de tênis Vert fez uma residência artística em Riacho do Meio, uma das comunidades que vende algodão agroecológico para a empresa franco-brasileira fabricar seus calçados. Dono de traços bastante característicos, Derlon ganhou destaque nos últimos anos ao transportar para o grafite referências da cultura tradicional nordestina. “Ele tem essa capacidade de transcrever uma estética popular em algo contemporâneo”, diz o curador artístico do projeto, Paul Duboc. Mas, se os trabalhos de Derlon trazem traços inspirados no cordel, na xilogravura e em outras manifestações fortes do sertão, eles sempre tiveram espaço nas cidades (seja em muros ou em obras expostas em mostras).
Depois de pintar paredes em metrópoles como Recife, São Paulo, Londres, Amsterdã e Lisboa, Derlon chega agora a esse povoado onde vivem cerca de 70 famílias. E, por estranho que possa parecer, crava sem titubear: “É o meu maior projeto artístico”. Não só pela proporção – são 12 grafites ao todo –, mas pelo significado da experiência, ele explica. “Muito do que eles produzem culturalmente no sertão acaba fluindo para as cidades. Em Recife, absorvi conhecimento do que as pessoas produzem no interior e foi assim que cheguei ao meu trabalho. Nesse sentido, é como se eu estivesse devolvendo para eles tudo o que absorvi, como uma retribuição.”
Sustentabilidade
A ideia do projeto Ouro Branco partiu dos proprietários da Vert (chamada Veja na França), marca que chegou ao mercado nacional no ano passado. Fundada pelos jovens François-Ghislain Morillion e Sébastien Kopp em 2005, a empresa surgiu com a proposta de produzir sapatos de modo sustentável, a partir dos conceitos de agroecologia e comércio justo, e com preocupações sociais e de proteção do meio ambiente. A diferença deles em relação a outras empresas que se dizem sustentáveis (quase todas atualmente) é que a dupla foi fundo na iniciativa e colocou em prática um sistema inovador para a produção de sapatos no Brasil.
Tudo parecia arriscado. Primeiro, comprar o algodão orgânico – cerca de 60% mais caro do que o produto convencional – diretamente de pequenos agricultores em comunidades como a de Riacho do Meio. Depois, comprar a borracha, no Acre, diretamente de associações de seringueiros, eliminando intermediários e praticando também o chamado comércio justo. E, além disso, produzir os sapatos no sul do País, e não em locais de mão de obra barata, como o sudeste asiático. Para que tudo pudesse funcionar, a marca buscou parceiros em cada região, como o Projeto Dom Helder Câmara e o Escritório de Planejamento e Assessoria Rural (Esplar) do Ceará. No fim, deu certo, e a produção, que começou com cinco mil pares de tênis por ano, chega hoje a cem mil.
A pergunta é: como o tênis da marca, que paga tão mais caro na produção, chega ao mercado com um preço competitivo? “A gente precisa economizar no marketing. Em um tênis convencional, a maior parte do preço de venda, às vezes 70%, é marketing. Tivemos de dizer tchau para a publicidade”, afirma François. Para divulgar o produto, os empresários passaram a usar a internet e as redes sociais, e se esforçam continuamente para contar a história do projeto, buscando alcançar também um público mais consciente dos processos de produção. Apreciadores das artes plásticas e do grafite, promovem também projetos como a exposição São Paulo Mon Amour (que levou a arte brasileira a Paris em 2009) e o Ouro Branco, que começou com as intervenções de Derlon em Riacho do Meio e terá sequência com exposições em São Paulo, Rio e Paris.
Em comunidade
Apesar de ser comum entre grafiteiros certo repúdio à arte feita por encomenda para empresas, Derlon se mostra tranquilo nesse ponto. “Não tive nenhum incomodo porque a proposta é muito boa, como projeto de marca sustentável, que paga bem aos agricultores.” Além disso, uma situação nova surgiu no processo de feitura das pinturas, e a interação com a comunidade acabou dando novos rumos ao trabalho. Como a proposta era contar nas obras um pouco da história da produção do algodão agroecológico (que chegou à comunidade há cerca de dez anos) e da luta contra a pobreza, “os agricultores foram também curadores do projeto”, segundo Duboc.
“A ideia era ir e conceber lá essas intervenções”, diz Derlon. “Eu não estava mais indo como um artista urbano, mas como um artista para pintar novas paredes, em outros suportes, com outra vivência. A gente tinha um planejamento anterior, e li sobre a história deles e a agroecologia. Mas precisava ouvi-los, estar lá e fazer essa obra crescer com eles.” Foram dez dias vivenciando o cotidiano da comunidade, dormindo nas casas dos agricultores e dialogando sobre as intervenções. Uma delas, que teria a imagem de um caminhão representando o pau-de-arara (símbolo da migração), não agradou os moradores. Segundo eles, a vida, mesmo que difícil, melhorou, e a ideia da partida não é mais predominante na região. No lugar do caminhão, Derlon registrou uma família tradicional, simbolizando o início da história de Riacho do Meio.
História que, de fato, se transformou muito nos últimos tempos. “A agroecologia é talvez a maior mudança em nossas vidas”, diz o agricultor João Félix, que mora na comunidade desde os anos 1980. Mas foi a divisão de terras feita na década anterior o passo inicial que permitiu as transformações. O morador mais velho de Riacho do Meio, o pacato senhor Luiz Barbosa tem 89 anos viveu grande parte de sua vida em um sistema praticamente de servidão, no qual os agricultores recebiam um pedaço de terra para plantar, cediam 50% da produção para os patrões e ainda eram obrigados a vender para eles o restante, a preços que não podiam escolher. Barbosa é um dos homens retratados por Derlon nas paredes da comunidade.
Durante uma conversa com João Félix e outros moradores, na sede da associação de agricultores, uma cena inesperada deu aos jornalistas alguma ideia do que é a batalha diária da vida no semiárido. Quando uma chuva forte começou a cair, alguns se levantaram e começaram a aplaudir, outros abriram um sorriso no rosto que durou até o fim do dia. Mas se a chuva ainda é – e sempre será – problema crucial na região, a comunidade já desenvolveu, baseada na agroecologia, uma série de sistemas para ter sobrevivência digna mesmo nos anos de seca. E foi isso que os moradores pediram a Derlon: “Vimos que havia a vontade dos agricultores de escrever essa história, para que não se perdesse, da mudança do padrão antigo para o agroecológico”, explica Duboc.
A história foi contada. “Não é uma narrativa, cada painel fala por si só. São elementos”, explica Duboc. E, agora, o grafite de Derlon, que foi da cidade ao sertão, volta às ruas da cidade, mas de um modo diferente. Em São Paulo, registros dos trabalhos em Riacho do Meio feitos pelo fotógrafo Pablo Saborido serão impressos em pôsteres lambe-lambe tamanho gigante (medidas que chegam a 5,5m por 11m) e colados em paredes nos entornos da praça Benedito Calixto. A mostra Ouro Branco vai ainda ao Rio (na galeria Artur Fidalgo) e à Paris, onde estará exposta em muros próximos ao rio Sena; para que o mundo conheça um pouco não só a arte de Derlon, mas a vida e cultura do sertão nordestino.
Serviço – Exposição Ouro Branco – São Paulo, a partir de 10 de maio na praça Benedito Calixto; Rio de Janeiro, a partir de 22 de maio na Galeria Artur Fidalgo (Rua Siqueira Campos, 143); Paris, no fim de junho.
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