No dia 29 de novembro de 2006, Rosane Gutjahr estava pronta para viajar para um dos lugares mais bonitos do litoral brasileiro. O destino era o Costão do Santinho, um resort em Florianópolis. Mas, naquela sexta-feira, o aeroporto Afonso Pena, em Curitiba – onde ela mora -, não seria a escala para o paraíso.
Pelo contrário, ali começaria um período de dor e indignação que já dura quase cinco anos.
No início daquela tarde, Rosane recebeu um telefonema do marido, que estava em Manaus a trabalho e a encontraria à noite no aeroporto. “Ele disse: ‘Nega, o voo está meio atrasado, mas estou embarcando daqui a pouco’. Perguntei se estava trazendo casaco, pois fazia muito frio em Curitiba. Enquanto eu preparava o jantar em casa, lá pelas sete da noite, a empregada atendeu uma ligação e começou a chorar. Então, liguei para a agência de turismo que Rolf comprava passagens, e a funcionária também atendeu chorando. Mas, até ali, eu imaginava que meu marido pudesse estar vivo.” Pouco depois, ela já estava no aeroporto.
Rosane é viúva de Rolf Gutjahr, uma das 154 pessoas que estavam no voo 1907, Boeing 737 da Gol que foi atingido por um jato Legacy enquanto fazia a rota Manaus-Brasília. O avião caiu em Mato Grosso, matando todos a bordo. Segundo maior desastre aéreo do Brasil, o acidente expôs falhas do controle aéreo. O assunto deflagrou ainda aberturas de Comissões Parlamentares de Inquéritos (CPIs) e investigações da Polícia Federal e Aeronáutica, que concluiu que o equipamento anticolisão (transponder) do jato havia sido desligado durante o voo. Os pilotos norte-americanos Joseph Lepore e Jan Paul Paladino, que estavam a serviço da ExcelAire, empresa que tinha acabado de adquirir o Legacy junto à Embraer, retornaram aos Estados Unidos 60 dias depois da colisão e continuam atuando em empresas aéreas – Lepore segue trabalhando para a ExcelAire e Paladino hoje é funcionário da American Airlines.
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A partir do acidente, Rosane iniciou uma verdadeira cruzada para ver os dois pilotos condenados pela Justiça. Com outras 103 famílias, formou a Associação de Familiares e Amigos das Vítimas do Voo 1907, esboçada ainda no hotel em Brasília onde ficaram à espera de notícias dos parentes. Além das famílias, que se dividem para realizar tarefas pautadas semanalmente em reuniões via internet e telefone, sete profissionais estão na folha de pagamento da Associação, todos pagos mensalmente por Rosane. Além do advogado Dante D’Aquino, que é assistente de acusação do Ministério Público na ação criminal contra os pilotos do Legacy, jornalistas e peritos trabalham no caso. Há até mesmo um profissional responsável por divulgar as ações da Associação em redes sociais da internet, como Facebook e Twitter. Um site (www.190milhoesdevitimas.com.br) foi criado para abrigar as notícias sobre o acidente.
“A partir do momento em que foi ficando clara a culpa dos pilotos, começou essa briga enorme, mas desigual entre, digamos, pessoas normais e potências como a American Airlines, a ExcelAire e o governo dos Estados Unidos. Quando entendi o que aconteceu, comecei a brigar para que essas pessoas que mataram o meu marido pagassem por esse crime. E é isso que eu estou fazendo até agora”, diz Rosane, que recebeu a reportagem da Brasileiros em seu apartamento em Curitiba, dias antes das audiências dos pilotos Lepore e Paladino à Justiça brasileira, realizadas em 30 e 31 de março. De Nova York, os pilotos foram ouvidos por meio de videoconferência e negaram que o sistema anticolisão do jato estivesse desligado. No último mês de abril, a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), pela primeira vez desde o acidente, reconheceu a falha dos dois pilotos e da empresa dona do jato Legacy. Com isso, serão encaminhadas notificações à Federal Aviation Administration (FAA, órgão similar à ANAC nos Estados Unidos) e ao Departamento de Controle do Espaço Aéreo (DECEA). O desejo da Associação é que os pilotos tenham seus brevês cassados pelos órgãos americanos. “Não estamos lidando com suposições, mas com fatos. As caixas de voz e voo comprovam que eles desligaram o transponder, que não conheciam a operacionalidade da aeronave e que não fizeram planejamento de voo. São dados técnicos que não podem ser contestados”, diz Rosane, que contratou peritos para analisar as causas do acidente.
Vida interrompida
Gaúchos, Rosane e Rolf se casaram em 1981. No mesmo ano, eles se mudaram de Canoas, no Rio Grande do Sul, para Manaus, onde ele havia sido contratado para trabalhar em uma empresa alemã de componentes eletrônicos. Dez anos depois, Rolf conseguiu montar sua própria empresa de cabos eletrônicos, a GK&B, com dois sócios.
Os negócios prosperaram e, ao longo dos anos, Rolf e Rosane se tornaram proprietários de mais duas empresas. Em 2005, Rolf foi eleito o Empresário do Ano pela Federação das Indústrias do Estado do Amazonas (FIEAM), coroando uma vida empresarial de sucesso. Rosane mantém até hoje, orgulhosa, um arquivo sobre a vida profissional e afetiva do marido. Por causa de um tratamento de inseminação artificial que Rosane iniciou em Curitiba, o casal se mudou para a capital paranaense depois de 14 anos no Amazonas. A partir dessa mudança, Rolf passou a frequentar semanalmente a rota Manaus-Curitiba. A mesma que, no dia 29 de setembro de 2006, não conseguiu concluir.
Rolf foi o segundo a ser encontrado pelas equipes de regate. Estava embaixo da asa do avião. Ficou tão desfigurado que os peritos não souberam precisar se o corpo era de um homem ou de uma mulher. Rolf só foi reconhecido, antes do teste de DNA, porque estava com o celular de Rosane no bolso da camisa. “Só retomei as atividades nas empresas nos últimos dois anos. Até então, eu não tinha a mínima estrutura para nada. Os meus dois sócios tocaram os negócios. Minha filha tinha quatro anos na época do acidente, e eu tinha de dar atenção a ela. Tive de aprender a conciliar casa, família, trabalho e as questões dos processos.”
Rosane vive em um apartamento amplo em um bairro nobre de Curitiba. Mas ainda é uma pessoa à sombra da morte do marido. Um misto de revolta, saudade, ódio e indignação não a deixa ter uma vida normal. Nas três horas em que conversou com a reportagem da Brasileiros, ela fumou mais de dez cigarros e tomou vários cafés. Vive à base de tranquilizantes e não consegue dormir nos dias que antecedem uma manifestação ou decisão importante dos processos relacionados ao acidente. A filha Luiza, hoje com oito anos, ainda frequenta uma psicóloga e só agora começou a entender o que é a morte, que seu pai não voltará mais.
Além dos dois processos criminais contra os pilotos do Legacy e a ExcelAire, Rosane é autora de outros quatro processos. Dois deles contra o blogueiro norte-americano Joe Sharkey, que estava no Legacy na hora da colisão. Em seu blog, Sharkey colocou em dúvida a qualidade do controle aéreo do Brasil, além de publicar mensagens ofensivas ao povo brasileiro. O terceiro processo é por conta dos pertences das vítimas do acidente, que teriam sido roubados antes mesmo de os corpos serem identificados. Já a ação de indenização contra a Gol, segundo Rosane, é apenas uma “condição legal”, uma formalidade para que os outros processos não prescrevam.
Até agora, somente cinco famílias não fizeram acordo indenizatório com a Gol. “A grande maioria foi obrigada a aceitar o acordo para não passar fome, mas as pessoas continuam indignadas. Imediatamente após o acidente, a Gol me chamou para um acordo e propôs R$ 400 mil, sendo que eu teria de desistir de qualquer tipo de processo”, diz Rosane. Segundo ela, com o andamento dos processos, a Gol subiu a oferta e chegou a lhe oferecer uma indenização milionária, muito superior à que é estipulada pela lei brasileira para casos similares.
“O laudo do IML diz que a maioria das pessoas morreu no solo. Elas efetivamente morreram com a batida. Ficaram quase dois minutos em queda livre sabendo que iam morrer. Você pode imaginar o que passou pela cabeça dessas pessoas? E os dois culpados por tudo isso estão vivendo normalmente, trabalhando, morando com suas famílias. Nunca vou aceitar indenização. O que eu quero é indenização moral, que as pessoas que provocaram esse acidente paguem.”
Ainda que as famílias que fazem parte da Associação ajudem a não deixar que o acidente seja esquecido, participando de manifestações públicas a favor da condenação dos pilotos, como a que aconteceu em frente ao hotel em que Barack Obama esteve hospedado no Rio, Rosane é hoje a única autora dos processos e quem paga todas as custas. Ou seja, se ela desistisse das ações, ou aceitasse o acordo proposto, o acidente, provavelmente, já teria sido esquecido.
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