No táxi amarelo que segue rumo ao estúdio do fotógrafo Daryan Dornelles, durante o curto trajeto entre o aeroporto Santos Dumont e o bairro da Glória, leio uma das antológicas histórias reunidas no livro João Gilberto (Cosac Naify). As páginas que devoro, do calhamaço organizado por Walter Garcia, relatam o cancelamento de um show de João no México, em Guadalajara, mesmo com sua tentativa desesperada de chegar de helicóptero, após perder o avião. “Grilada e assustada”, aos 5 anos, Bebel Gilberto estava nesse voo com o pai e a mãe. Encerro a leitura, e concluo que não deve ter sido nada fácil para Bebel Gilberto ser Bebel Gilberto.
Filha do “pai” da bossa nova e da cantora Miúcha, Bebel cresceu cercada por outros notáveis. Ela também é sobrinha de Chico Buarque e da atriz Marieta Severo. O sociólogo Sergio Buarque de Holanda, autor do canônico Raízes do Brasil, é seu avô. Ambicionar o meio artístico pode até ter sido escolha das mais naturais para ela, que também enveredou nos palcos como atriz. Mas o desafio de alcançar projeção e imprimir sua marca é sempre maior quando se trata de alguém cercado de talentos tão raros. Mas Bebel teve e tem personalidade de sobra, impôs sua força e formou um público cativo, que deu a ela impressionantes números de vendagem – como a do álbum Tanto Tempo, de 2000, que imprimiu a marca de mais de 2,5 milhões de cópias.
O retorno da cantora ao Brasil foi motivado pela chegada ao mercado de seu primeiro DVD. Gravado na Praia do Arpoador, em dezembro de 2012, o show também ganhou registro em CD. O lançamento de ambos, pelo selo Biscoito Fino, aconteceu em uma série de apresentações que a cantora fez no Rio de Janeiro e em São Paulo, entre os dias 2 e 10 deste mês de julho. Em busca por detalhes da turnê mundial de lançamento, e também para desvendar uma Bebel que o Brasil desconhece, fomos ao encontro da cantora. Lógico, a conversa revelou também deliciosas histórias protagonizadas por ela e seu enigmático pai, João.
Infância cigana
No estúdio de Dornelles, a voz de Bebel Gilberto ecoa pelos corredores. Ela está no camarim, finalizando cabelo e maquiagem, com Xicão Alves, seu personal stylyst e grande amigo há mais de três décadas, que cuidará, depois, dos looks da cantora para a sessão de fotos. Na recepção do estúdio, três caixas plásticas, repletas de LPs de vinil, despertam minha curiosidade. Entre os discos, preciosidades, como um LP do organista pernambucano Ed Lincoln (1963), o primeiro disco homônimo de Tim Maia (1970) e a estreia de Emílio Santiago (1975).
A conversa entre Bebel e Xicão ressona pelos corredores e é possível ouvir um comentário bem-humorado da cantora, que revela estar vestida como uma autêntica grunge. Em seguida, ela surge gentil e solícita, em um vestido curto, de tecido sintético, que imita couro, na cor carmim. Os cabelos vistosos e a maquiagem estão impecáveis. Bebel segue para a primeira sessão de cliques. Experimenta, mais tarde, outros dois figurinos e posa, descontraída, para outras dezenas de fotos. Quando o ensaio chega ao fim, ela ressurge e damos início à conversa. Bebel veste, agora, calça jeans, camisa de flanela xadrez em tom vermelho e uma jaqueta de couro. Os cabelos compridos reiteram a aparência grunge que, minutos antes, havia comentado com Xicão.
Bebel nasceu em 12 de maio de 1966, em momento complicado, de agravamento de um problema enfrentado por João, que limitou os movimentos de sua mão direita. Inimaginável seria pensar no pai da “batida diferente” da bossa nova abandonando seu violão, e João enfrentou, por três anos, uma maratona de viagens internacionais, diferentes diagnósticos, vários médicos, para, enfim, superar o problema em 1970. Aos 9 meses, Bebel deu início a um nomadismo que se tornaria frequente em sua vida. “Tive uma infância das mais agitadas. Viajei e vivi em muitos lugares. Fui deixada com uma babá portuguesa chamada Dolores e acabei ficando quase um ano e meio com ela. Depois, meu tio Chico foi me buscar e fomos ao México para encontrar meus pais.”
Em 1970, o México era destino de grandes músicos e grupos brasileiros, que por lá ficaram radicados, como o trombonista Raul de Souza e o Tamba Quatro, entre outros. João, Miúcha e Bebel também moraram em Guadalajara por quase três anos. Dias felizes, recorda ela: “Morávamos em uma casa bacana e fui alfabetizada em espanhol. Ainda tenho contato com minha primeira professora, miss Marissol. Em casa, a mistura era total… Eu falava em espanhol com meus pais, eles falavam em português comigo, mas eu também misturava o inglês”.
Às vésperas de completar 5 anos, Bebel voltou ao Brasil e a data foi celebrada em grande estilo: ela fez a primeira viagem a Juazeiro, na Bahia, onde foi conhecer seus avós e outros familiares de João. “Fomos de carro, do Rio até a Bahia, eu, minha mãe e meu pai. Viajamos a bordo de um Opala creme. Meu pai adorava dirigir. Estava com muita saudade da família e, quando chegamos à casa da minha avó, dona Patu, uma festa incrível nos esperava. Os docinhos foram preparados por dona Mariá, mãe da Gal (a cantora Gal Costa), que era muito amiga da minha avó.”
Depois da viagem a Juazeiro, Bebel e os pais foram, novamente, morar em Ipanema. O retorno ao Brasil permitiu a João travar contato com novos artistas que por aqui despontavam, como seus autointitulados discípulos Caetano, Gil e Gal. Mas uma empatia ainda maior aconteceu entre João e a trupe louca dos Novos Baianos. Proximidade que também envolveu Bebel e fez nascer a deliciosa história de batismo do álbum considerado a obra-prima do grupo. “Visitávamos os Novos Baianos escondidos da minha mãe. Meu pai adorava dirigir à noite pela zona sul do Rio, em minha companhia. Em uma dessas visitas, eu estava um pouco sonolenta, caí, machuquei a perna e comecei a chorar. Meu pai ficou desesperado. E aqueles cabeludos ficaram até mais apavorados do que eu. Para acalmá-los, comecei a falar, em português e espanhol, ‘tá bom, acabou chorare, acabou chorare!’, e o disco acabou ganhando esse nome.”
A história contada por Bebel é manjada por qualquer fã dos Novos Baianos, mas ela se diverte ao lembrar de que recentemente foi obrigada a contá-la, de novo, dessa vez a um inusitado ouvinte: “Fui resolver uns problemas com o gerente do meu banco, em Nova York, e ele estava ouvindo o Acabou Chorare. Entusiasmado, perguntou: ‘Do you know this album?’ (Você conhece esse álbum?)”.
Depois do breve retorno ao Rio, Bebel voltou a viver em São Paulo, em 1971. Os pais haviam acabado de se separar, Bebel ficou sob a guarda dos avós maternos e sentiu a distância de João e Miúcha. “Fiquei na casa dos meus avós por quase quatro anos e não entendia muito bem o que estava acontecendo. Mas minha avó Memélia (Maria Amélia Buarque de Holanda, mãe de Chico) era uma pessoa maravilhosa. Meu avô Sérgio, então, era uma piada. Brincava comigo o tempo todo. Voltei para o Rio com 8 anos.”
Em 1974, Miúcha foi aos Estados Unidos gravar um álbum com o saxofonista tenor Stan Getz, e Bebel não perdeu a oportunidade de ir junto com a mãe, para matar as saudades de João. Acabou ficando por lá, bem mais do que previa. Questionada sobre a suposta rusga entre João e Getz – os dois lançaram, em 1964, o álbum Getz/Gilberto e, segundo consta, Getz faturou uma fortuna muito superior aos modestos dólares embolsados por João –, Bebel explica que, naquele momento, João já havia relevado há tempos essa questão. “Eles apaziguaram. Mas a questão é que, como eu, meu pai nunca foi um grande negociante. Aliás, esse não é mesmo um talento da família. Nem do lado do meu pai, nem do lado da minha mãe. Dos Buarque, o único que realmente se deu bem foi meu tio Chico.”
Prova inconteste de que Getz e João nutriam mesmo verdadeira amizade, Bebel acabou ficando em Nova York, por quase dois anos, dessa vez, na casa do saxofonista. “A família dele é maravilhosa. Até hoje sou amiga da filha dele, Pamela. Lembro que havia um aparelho de som com quatro caixas espalhadas em meu quarto e eu adorava ouvir a Shirley Temple. Outra memória marcante foi meu primeiro Halloween, que passei com a Beverly, filha mais velha do Stan.”
Aos 9 anos, em 1975, Bebel debutou, como cantora, em grande estilo. Apresentou-se com a mãe e Stan Getz no Carnegie Hall, em Nova York. O show aconteceu no mesmo palco que, em novembro de 1962, a bossa nova foi apresentada ao mundo, em um concerto que reuniu mais de uma dezena de artistas brasileiros, liderados por seu pai, João, e o maestro Tom Jobim. Treze anos depois, a noite foi também memorável para Bebel.
“Fomos à loja Alexander, e eu mesma escolhi minha roupa. Minha mãe recomendou apenas que eu estivesse ‘bem charmosa’. E foi o que fiz. Entrei no palco piscando os olhinhos para todo mundo, pois já entendia o que era aquilo. Cantei O Que Quer Dizer, uma música do Péricles Cavalcanti gravada por minha mãe. Meu pai até foi convidado a participar ou simplesmente conferir a apresentação. Mas, lógico, ele não foi. Foi nessa noite que conheci o Dizzy Gillespie. Ele ficou brincando comigo, abrindo aquela bochecha incrível. O Ruy Castro conta que ele ficou fazendo ‘bochechada’ quando foi me ver, logo que nasci, mas a história verdadeira é essa. Fomos nos conhecer somente nessa ocasião.”
Garota zona sul
Em 1979, uma nova fase na vida de Bebel, marcada pela descoberta de novas e grandes amizades, teve início com sua volta ao Rio de Janeiro. Um caminho marcado por desbunde e total desprendimento à formação educacional. “Fui convidada a me retirar da escola, por diversas vezes. Depois que entrei no Centro Educacional Aloísio Teixeira (CEAT), comecei a frequentar a praia com a turma do Posto 9 e também ia muito ao Circo Voador. Havia no Circo um curso de teatro chamado Para-Quedas, e o Xicão era quem fazia as inscrições. Foi lá que nos conhecemos. Fui abandonando a escola até que larguei tudo, aos 14 anos. Algo que não recomendo para ninguém.”
Foi também no curso do Para-Quedas, coordenado pelo ator Perfeito Fortuna, do grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, que Bebel se aproximou daquele que se tornaria seu mais inseparável amigo, o cantor e compositor Cazuza, com quem ela dividiu histórias hedonistas e a bela composição Eu Preciso Dizer que te Amo, um dos maiores sucessos da carreira efêmera e trágica de Cazuza: “Éramos completamente malucos. Tudo era possível, tudo era permitido. A casa da minha mãe era uma das unidades da turma. Também nos reuníamos na casa da Lucinha e do João (pais de Cazuza), mas, na minha casa, a coisa era, séria, 24 horas por dia. Íamos para lá, fumávamos muito, comíamos muito e, depois, íamos a pé para o Circo Voador. Fiz uma peça com o Cazuza chamada Parabéns Para Você, e o Xicão assinou o figurino. Fiz também uma peça com o Naum Alves de Souza, Um Beijo, Um Abraço, e Um Aperto de Mão, na qual contracenei com minha tia Marieta.”
A intensa relação entre Bebel e Cazuza fez dela a maior confidente do autor de Exagerado. Logo após a descoberta da doença que, precocemente, deu fim à vida dele, aos 32 anos, Cazuza recorreu a ela para desabafar. “Ele me telefonou, aflito, e contou tudo. Convivi o máximo que pude com ele enquanto ele esteve doente. Por um triz, ele não ficou por aqui, mas sei que ele já não suportava mais tanto sofrimento. No final da vida, carregava muita angústia. Dias antes de morrer, ele virou um ‘bebê’ e eu não gostava de vê-lo daquele jeito. O velório e o enterro dele foram uma loucura. Lembro de um amigo nosso que pirou total. Bebeu, cheirou, fumou uns baseados ao lado do caixão, e sabia todas as rezas que você possa imaginar. Depois de cantar várias, gritou: ‘Quem aí sabe Salve Rainha?’.”
Um novo ciclo
Com a morte de Cazuza, em julho de 1990, viver no Rio de Janeiro passou a fazer cada vez menos sentido para Bebel. Foi, então, que, mais uma vez, ela fez as malas e partiu para Nova York. “Fugi dessa tristeza e tive um incentivo especial: o convite do Arto Lindsay para participar de um show, em homenagem a Carmem Miranda, que incluiu, além de mim, Gal Costa, Naná Vasconcelos e Regina Casé. A Laurie Anderson (compositora de vanguarda, mulher do cantor Lou Reed) também participou desse show.”
Depois de um primeiro EP (extended play, o formato intermediário entre o compacto e o álbum), produzido em 1986, Bebel enfrentou um hiato de cinco anos até lançar um novo disco – rejeitado por ela, diga-se –, editado apenas no mercado japonês. “Fiz um álbum que falo pouco dele… Mas, ok, rendeu uma boa grana. Chama-se De Tarde Vendo o Mar. Você sabe qual é? Pois não saiba, não! São músicas japonesas vertidas em português. Fiz, depois, um comercial para a TV, cantando um jingle do McDonald’s em arranjo de bossa nova. Ganhei uma boa grana, meu pai me deu uma ajuda, e decidi ficar em Nova York. Estava desiludida com a morte do Cazuza.”
O retorno aos Estados Unidos foi determinante para consolidar a faceta de cantora, perseguida desde a infância por Bebel. E foi justamente em sua terra natal que ela lançou os maiores êxitos de sua trajetória. Os álbuns Tanto Tempo (2000), Bebel Gilberto (2004), Momento (2007) e All in One (2009). Entre os quatro álbuns, evidenciando a mistura de elementos orgânicos e colagens eletrônicas que se tornaram marca registrada de Bebel, outros dois discos foram lançados. Tanto Tempo Remixes (2001) e Bebel Gilberto: Remixed (2005).
Os primeiros sinais de que um caminho ascendente seria trilhado por Bebel, surgiram com o nascimento de outra grande amizade, logo após seu retorno aos EUA. “Conheci um cara maravilhoso, que começou a me procurar em todos os lugares que eu cantava. Seu nome era Tim Johnson e ele tornou-se um grande amigo e meu empresário. Tim criou uma série de shows, chamada Brazilian Season, que foram realizados no extinto Ballroom, em Nova York, no qual eu me apresentei muitas vezes. Uma honra, ele chegou a levar a Liza Minnelli e o Tony Bennett para verem meu show.”
O registro de seu maior sucesso comercial, até aqui, o álbum Tanto Tempo, coincidiu com dias turbulentos na vida de Bebel. “Gravei esse disco no Brasil e meu casamento começou a ficar meio assim… Meu ex-marido Regis nasceu no Brasil, mas foi criado com a família na França. Ele atua no mercado financeiro e eu tinha de ir com ele a jantares e encontros formais. Fui ficando novamente rebelde. Quando nos casamos, até dei uma boa aquietada, mas, quatro anos depois, cheguei à conclusão de que não queria aquela vida. Mas sou muito grata a ele, pois o fato de termos ido morar em Londres me purificou daquela coisa americanizada que eu carregava. Ele cuidava muito de mim, e eu retribuía sua gentileza cozinhando para ele. Virei ‘mulherzinha’, mas nos separamos, e retomei com força minha carreira.”
Com o sucesso de Tanto Tempo, o circuito de shows feitos por Bebel passou a incluir novos destinos, o que permitiu a ela multiplicar seu número de fãs. “Faço shows regulares nos Estados Unidos – especialmente, em Nova York –, na França e no Canadá. Tenho um grande público na Ásia, em maior número no Japão. Tocar em Israel foi uma loucura! É um dos países que mais me deixou impressionada. Os jovens israelenses são muito modernos e bem parecidos com a gente. Também costumo fazer shows na Turquia e no Leste Europeu. No ano passado, participei de um festival em Budapeste, e foi o máximo!”
As polêmicas de João
Antes de se casar com Miúcha, em 1964, João Gilberto conviveu por quase cinco anos com a baiana de ascendência alemã Astrud Gilberto, com quem teve seu primeiro filho, João Marcelo. Ela foi decisiva para a carreira do ex-marido, pois as versões em inglês para Garota de Ipanema e Corcovado, carros-chefe do álbum Getz, Gilberto, que impulsionou a carreira mundial de João, foram registradas na voz miúda e sedutora de Astrud. Bebel admite ter pouco contato com ela e o irmão, que só foi conhecer aos 18 anos, mas diz ser bastante ligada a sua sobrinha. “Meu irmão tinha sofrido um acidente e precisava vir para cá, para ver meu pai. Foi então que conheci o João Marcelo e a Astrud. Falo pouco com eles, mas tenho muito contato com minha sobrinha, Katrina.”
João e Miúcha se separaram quando Bebel tinha apenas 5 anos. A ruptura, em vez de ganhar contornos dramáticos e provocar traumas na menina, foi praticamente imperceptível para ela. “Meus pais sempre foram grandes amigos e ainda são tão próximos que, para mim, nunca fez a menor diferença saber que os dois estão separados. Fiquei longe de meu pai por quatro anos, mas, depois, reconheço que ele foi um tremendo paizão. Tudo o que ele não fez durante a minha infância, compensou na minha adolescência. Lógico, minha mãe também foi importante para minha formação, assim como meus tios Marieta e Chico, que sempre ajudaram a segurar minha onda.”
Há cerca de quatro meses, João vem sendo protagonista de uma nova polêmica. Ele está sendo acionado judicialmente por ter cancelado a série de shows que seriam realizados para celebrar seus 80 anos, em 2011. As apresentações foram suspensas, após João alegar e atestar, com exames médicos, que enfrentava problemas de saúde. Os empresários exigem agora um ressarcimento milionário para cobrir prejuízos, mas a ação ainda tramita em Justiça. O cancelamento dos shows teve repercussão para lá de parcial na imprensa cultural do País. Houve quem defendesse João, mas também quem condenasse seu gesto. Questionada se acompanhou a repercussão de tais polêmicas, Bebel diz que “fez a egípcia”, utilizando-se da gíria gay que tem o mesmo sentido de desdém. “Prefiro não ler nenhuma linha. Se eu ler, sei que vou ficar triste ou ficar bem ‘p’ da vida. Já me envolvi tanto e tive tanta dor de cabeça que, hoje em dia, o que faço é dar o máximo de apoio a meu pai. É meu dever, como filha, mas não há nada além que eu possa fazer.”
A entrevista aconteceu em 6 de junho, quatro dias antes do aniversário de 82 anos de João. Pergunto a Bebel se ela tinha encontros frequentes com o pai e como andava a saúde dele. Ela trouxe boas novas, mas também deixou escapar vestígios da excentricidade e do desprendimento que marcou a vida de João. “Meu pai está ótimo. Conversamos ontem à noite. Vez ou outra ele desaparece, some até mesmo para nós da família, mas está bem de saúde, numa boa.”
Fato esse capaz de tornar seu amigo Xicão invejado por um sem-número de jornalistas, que há décadas sonham em colher uma mínima aspa de João, Bebel comenta que ele e outros grandes amigos têm tráfego livre na casa do baiano. “Por muito tempo, meu pai detestou meus amigos, mas, lógico, ele teve de mudar de opinião, pois jamais acreditou que eu teria os mesmos amigos há mais de 30 anos. Somos leais, construímos amizades verdadeiras e meu pai sabe disso. Ele adora o Xicão. Dia desses, pedi a ele para ir até a casa de meu pai, para pegar umas roupas minhas, e eles ficaram horas conversando.”
No final do encontro, comento com Bebel que a tradição de João de faltar em shows é algo que parece fugir de seu controle. Reiterando que essa não é uma escolha voluntária, que denote mau-caráter, Bebel relembra justamente a história narrada no livro de Walter Garcia (da aflitiva viagem de João a Guadalajara, em um helicóptero). “Coitado do papai, tamanho esforço para o show ser cancelado Mas, se bem o conheço, embora não me recorde precisamente do que aconteceu depois, tenho certeza de que ele deve ter ficado pela rua curtindo a cidade. Adoramos ter morado lá. Viramos ‘mexicanos’. Há pouco tempo fiz, inclusive, um show no Auditório Nacional, na Cidade do México. Eu estava bem saudosa das praias de lá e fretei um carro que pudesse acomodar eu e minha banda. Acordei todos, logo cedo, e fomos até a Pirâmide da Lua e a Pirâmide do Sol. Tiramos uma foto hilária, com todos vestidos de poncho. Subimos nas duas pirâmides. Um dia lindo. Fui me abençoar no extremo norte, já que, novamente, passei a ser uma garota zona sul.”
Na despedida, descubro que os discos que estavam na recepção do estúdio estão sendo vendidos por Marcelo, sócio de Dornelles, e negocio com ele a compra dos LP’s de Ed Lincoln, Tim Maia e Emílio Santiago. Curiosa, Bebel observa cada um dos discos e, quando topa com a contracapa do álbum de Emílio, se entusiasma. “Esse disco é incrível! A versão de Bananeira (o clássico de João Donato e Gilberto Gil registrado no álbum Lugar Comum, do acreano) é muito absurda. Aliás, que bela coincidência. Ouvi muito esse disco, quando fiz o Tanto Tempo, especialmente essa música, que foi muito inspiradora para a sonoridade do meu disco.”
Um abraço apertado e, como manda o protocolo carioca, beijos nas duas faces do rosto, acrescidos do comentário: “Valeu pela regressão, quase voltei ao meu nascimento”. Os gestos selam o aprazível encontro.
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