O leitor afeito às preciosidades compostas por Vinicius de Moraes e Baden Powell haverá de reconhecer a saudação que intitula essa reportagem. Ela repete a reverência expressa em Samba da Benção, de 1965, com a afirmação do Poetinha: “A benção, maestro Moacir Santos, que não és um só, és tantos, tantos como meu Brasil de todos os santos”. Mesmo com admiradores tão ilustres e um primeiro álbum autoral arrebatador – Coisas, também lançado em 1965 –, sem perspectivas de trabalho em seu próprio País, Moacir Santos partiu para os Estados Unidos, em 1967.
Nas três décadas seguintes, o maestro seguiu praticamente anônimo para a maioria dos brasileiros. Felizmente, desde a redescoberta do repertório de Coisas, em 2001, por meio do projeto Ouro Negro, Moacir é cada vez menos um segredo para iniciados. Idealizado pelo maestro Mario Adnet e o saxofonista Zé Nogueira o projeto resultou em um CD duplo, lançado em 2001, e um DVD, de 2005, ambos com a participação de Moacir. Agora, somam força outras iniciativas: o lançamento de uma biografia e de um álbum em homenagem ao maestro; e a valorização de seu repertório por iniciativa de jovens músicos.
Para alguns historiadores, como Zuza Homem de Mello, o longo hiato de invisibilidade talvez se justifique mais pelo vanguardismo de Moacir do que por sua partida para os Estados Unidos. Em 2005, no artigo Coisas Afro-Brasileiras, Zuza defendeu a tese: “Coisas é o mais desconcertante disco instrumental dos anos 1960. É natural que suas consequências ficassem para muito depois. Na obra do maestro o primitivo encontra o futuro. O ontem o amanhã”. A mesma distinção foi feita na apresentação do LP, em texto assinado pelo produtor e dono da gravadora Forma, Roberto Quartin: “Moacir Santos criou um documento histórico autêntico no mapa da música popular brasileira. Esse disco é negro desde a capa até o vinilite, do músico ao som que se ouve”.
Desconhecido em seu próprio País, nos 40 anos que separam as duas declarações, Moacir Santos consagrou-se como um dos maiores compositores e arranjadores populares da música instrumental mundial. Os quatro álbuns americanos – três pela Blue Note (The Maestro, de 1972, Saudade, de 1974, e Carnival of the Spirits, de 1976) e um pela Discovery Records (Opus 3 n°1, de 1979) – não deixam dúvidas do legado grandiloquente deixado pelo maestro nascido em berço humilde em uma pequena cidade de Pernambuco, e morto em 2006, aos 80 anos, na Califórnia, Estados Unidos, em consequência de um derrame.
Na recém-lançada biografia Moacir Santos, ou os caminhos de um músico brasileiro (editora Folha Seca), a flautista e pesquisadora Andrea Ernest Dias persegue a trajetória internacional de Moacir, mas também retrocede a suas décadas de formação, entre os anos 1930 e 1940, para trazer à tona uma história de altivez e superação que beira a inverossimilhança e o romanesco, tamanhas as agruras enfrentadas solitariamente por ele dos 14 aos 18 anos. Até a chegada da biografia, pouco se sabia sobre a infância e a adolescência de Moacir, exceto ao fato de terem sido marcadas por uma série de provações, como ele mesmo relatou em depoimento de 1992 ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro.
A entrevista para o MIS foi uma das fontes da biógrafa. Autorizada por Moacir Santos Jr., filho único do maestro, Andrea também teve acesso ao acervo pessoal e ao estúdio de Moacir em Pasadena, na Califórnia. Em 2009, ano em que deu início à pesquisa, ela permaneceu nos Estados Unidos por quase um mês. Tempo suficiente para colher depoimentos de músicos locais que conviveram com Moacir, reunir informações sobre sua trajetória no exterior, esmiuçar sua rica biblioteca musical e conferir uma série de manuscritos memoriais.
Moacir pretendia escrever uma autobiografia, mas não teve tempo para fazê-lo. Para Andrea, esse contato com o acervo do músico possibilitou atribuir a ele uma importância ainda maior. “Em Pasadena, pude desvendar uma série de detalhes. O mais emocionante foi abrir os livros e encontrar anotações, teorias e análises musicais que ele fazia. Descobri uma pessoa muito culta. A trajetória de Moacir é uma bela história de aquisição de conhecimento. Os discos dele não tiveram uma vendagem enorme, mas a força de sua música fez com que ele se tornasse um dos grandes personagens da história do jazz.”
O peregrino que virou maestro
Nascido em 26 de julho de 1926, em Flores, cidade vizinha ao Rio Pajeú, em Pernambuco, Moacir José dos Santos ficou órfão da mãe, Julita, aos 3 anos. Fato que só agravou a sobrevivência dele e dos quatro irmãos – três meninas e um menino –, pois assim que nasceu Moacir, o pai, José, abandonou o seio familiar para aderir a uma força volante que empreendia caçada ostensiva ao bando de Lampião.
Entregues à própria sorte, os irmãos foram adotados por famílias de Flores. A guarda de Moacir ficou sobre a responsabilidade de sua madrinha Corina, mas logo o menino foi tutelado pela família Lúcio, aos cuidados da filha Ana, moça solteira que o colocou na escola e permitiu que ele tivesse proximidade com a banda municipal da cidade. Autodidata, nos intervalos dos ensaios do conjunto, Moacir aprendeu a tocar vários dos instrumentos utilizados pelos músicos. Aos 10 anos, já lidava com trompa, saxofone, percussão, clarineta, violão, banjo e bandolim.
Embora Ana Lúcio tenha assegurado boa formação ao menino, à medida que crescia, ele percebia que era uma espécie de escravo da família por ter de encarar contingências diárias para lá de pesadas, como buscar água no Pajeú, trabalhar no roçado, provisionar o consumo de lenha e tratar dos porcos. Aos 14 anos, gozando de prestígio local em apresentações musicais como “O Neguinho de Flores”, Moacir tomou a decisão de fugir de casa e peregrinar pelo sertão nordestino em mais de uma dezena de cidades. Um roteiro de incertezas e privações – ele chegou a passar fome e dormir na rua – que só fez cessar com sua chegada ao Rio de Janeiro, no início de 1948, com a mulher Cleonice.
Recomendado por políticos paraibanos Moacir, que estava antes em João Pessoa, entrou para o elenco de artistas da Rádio Nacional e tornou-se o único maestro negro da história da emissora carioca. Em 1949, ano de nascimento de seu filho Moacir Santos Jr., entrou no curso de Regência de César Guerra-Peixe. Pouco depois, estudou com outros dois gigantes, o maestro Radamés Gnatalli e o alemão Hans-Joachim Koellreutter. Na virada dos anos 1950 para os 60, Moacir passou a atuar como professor. Entre seus alunos ninguém menos que Nara Leão, João Donato, Paulo Moura, Baden Powell, Roberto Menescal, Geraldo Vespar, Oscar Castro Neves, Dom Um Romão, Flora Purim, Airto Moreira, Maurício Einhorn, Raul de Souza e Sergio Mendes. Na primeira metade dos anos 1960, Moacir também escreveu as trilhas sonoras dos filmes Ganga Zumba e A Grande Cidade, de Cacá Diegues, O Santo Módico, de Sacha Gordine, Os Fuzis, de Ruy Guerra, O Beijo, de Flávio Tambellini e Seara Vermelha, de Alberto D’Aversa.
Em um manuscrito encontrado por Andrea, datado de 1955, Moacir escreveu: “Há 500 anos, eu fui trazido para o Brasil nos genes de meus ancestrais. Sonho em fazer minha música para um aspecto que não se enquadra na poética popular do ‘pintar um quadro diferente’”. A realização desse sonho, o álbum Coisas, rendeu a Moacir ainda mais respeito e admiração de seus pares, mas em 1967, lamentando não encontrar perspectivas profissionais no Brasil, ele partiu para os Estados Unidos. Por lá fez história e jamais voltou.
Coisas atemporais
Além de concluir a biografia de Moacir, Andrea Ernest Dias acaba de lançar o segundo álbum do Trio 3-63, formado por ela, o pianista Paulo Braga e o percussionista Marcos Suzano. O trabalho, que ganhou o nome Muacy (gravadora Sambatown), reúne temas do maestro, de Radamés Gnattali e composições inéditas. Andrea também idealizou o Festival Moacir Santos que, em agosto passado, chegou à segunda edição. Na primeira, houve apenas um destino, Recife. Neste ano, o festival começou no Rio de Janeiro, passou por Brasília e terminou em Recife, com a participação de um ilustre convidado, o flautista Hubert Laws, um dos ícones do jazz americano na segunda metade do século 20.
Entre as atrações da edição 2014 um debutante irreverente chamou a atenção: o quinteto paulistano Quartabê, que apelidou a versão que fizeram de Nanã, o maior clássico de Moacir, de Nanã-Nenê. O grupo é formado por Maria Beraldo Bastos (clarone e clarineta), Joana Queiroz (sax, clarone e clarineta), Ana Karina Sebastião (contrabaixo), Chicão (teclados) e Mariá Portugal (bateria).
O nome Quartabê faz alusão à quarta série do ensino fundamental, como explica Mariá: “Surgiu de uma brincadeira. É como se estivéssemos naquela fase da escola em que a gente não sabe se está aprendendo ou brincando, em que há uma grande sensação de liberdade”. Mas engana-se quem acha que essa irreverência resulte em um tratamento displicente com o repertório de Moacir. Afinal, o quinteto é formado por músicos experientes. Chicão é colaborador do Teatro Oficina e integra a banda Memórias de Um Caramujo. As quatro meninas compõem o grupo O Neurótico e As Histéricas com o qual, ao lado de Mario Manga e Paulo Braga, Arrigo Barnabé tem feito releituras de seu álbum Clara Crocodilo. Mariá explica os procedimentos do Quartabê: “Com uma premissa irreverente, mas com todo respeito e admiração, procuramos extrair dos temas do Moacir coisas que não aparecem nas versões mais tradicionais. Como Tom Jobim, ele tem essa capacidade de transitar entre a música erudita, a contemporânea, o jazz e a música brasileira, e ainda trazer fortes elementos africanos. Moacir tem muito para nos dar. Sua obra ainda vai render muitos frutos”. Para além do festival, os músicos do Quartabê decidiram dar continuidade ao projeto, fazendo shows no eixo Rio-São Paulo e planejando o lançamento de um álbum de releituras.
Se o quinteto é uma grata novidade, a big-band paulistana Projeto Coisa Fina pode se orgulhar de ter quase uma década de dedicação ao repertório de Moacir Santos. O grupo foi criado, em 2006, pelo saxofonista Daniel Nogueira depois de ele passar cinco anos pesquisando a obra de Moacir, a partir do contato com o CD duplo lançado pelo projeto Ouro Negro em 2001.
Gabaritado com a realização de dezenas de shows o Projeto Coisa Fina lançou o álbum independente Tributo ao Maestro Moacir Santos (2010). Nos últimos três anos, a missão de defender o legado do pernambucano extrapolou as fronteiras do Brasil. Em 2012, a big-band se apresentou em Toronto, no Canadá. No ano passado, em Amsterdã e em Roterdã, na Holanda. Neste ano, os 13 músicos encantaram o público de Berlim, na Alemanha. Atualmente, eles preparam o repertório de um novo álbum, que deverá ser lançado no início de 2015 – composto de temas de Moacir, claro, mas também de trabalhos autorais e de outros compositores.
Para Daniel Nogueira, que teve o prazer de conhecer seu ídolo em 2005, cabe aos novos músicos levar a um número cada vez maior de brasileiros a diversidade musical de Moacir: “Para mim, é sinônimo de resistência poder divulgar a música desse compositor tão importante para o Brasil. Quando chegar o dia dos brasileiros realmente reconhecerem a importância desse grande maestro, ficaremos felizes em ter contribuído para isso. Enquanto esse dia não chega, seguimos em frente, Escutar Moacir, tocar Moacir será sempre um prazer para todos nós”.
Leia também O Gênio Incorruptível de Moacir Santos, resenha do álbum Coisas publicada na coluna Quintessência
Moacir, segundo Wilson das Neves |
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Veterano da indústria fonográfica, com atuação em mais de 600 álbuns, o baterista Wilson das Neves fala de sua amizade com o maestro pernambucano e como foi participar da gravação de Coisas, o cultuado primeiro álbum de Moacir Santos. |
“Moacir já era famoso quando passamos a tocar juntos na Rádio Nacional. Pouco depois, fui com ele estudar Harmonia, pois ele era o único professor que podia me dar aulas no tempo livre que me sobrava. Eu passava o dia gravando e, à noite, tocava em vários lugares. Sabendo dessa rotina, um belo dia ele propôs: ‘Wilson, a hora que você tiver um tempinho para estudar, me liga que eu dou um jeito de te encontrar’. Moacir era um ser humano ímpar, íntegro e gentil. Você jamais encontrará alguém que possa falar algo negativo sobre ele. Quando me chamou para tocar no Coisas, o convite soou para mim como uma grande surpresa e um ótimo sinal. Pensei: ‘Se o maestro me convidou para tocar no disco dele, é porque estou fazendo algo que preste’. As gravações foram bem tranquilas. Tocávamos o que estava escrito e bastava olhar para ele que tudo acontecia. Eu já havia feito gravações de arranjos do Moacir para outros artistas, mas participar do disco dele foi como estar no Céu, porque ele era um músico de vanguarda. Era impossível descrever o que ele fazia, pois ele estava muito à frente do seu tempo. Moacir foi um dos maiores da música popular, não só do Brasil, mas do mundo. Ele é o cara! Digo é, porque ele não morreu. Enquanto houver músicos dispostos a tocar suas composições ele continuará vivo, muito vivo.”
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