A brasilidade se manifesta no cinema

Certa vez, produtores americanos – cercados de suas avançadas geringonças high-tech e embolados com os milhões de dólares no bolso – ficaram estupefatos com a sequência inicial da galinha fugindo do caldo no fenômeno Cidade de Deus (2001), o que rendeu boquiabertos questionamentos ao diretor do longa, Fernando Meirelles. “Mas, ora, era uma câmera presa em um cabo de vassoura e um cara a manejando numa cadeira de rodas, com mais alguém empurrando a dita cuja naquela velocidade.” Não foi bem assim que o cineasta respondeu, mas o método utilizado foi esse sim: o do jeitinho brasileiro – sine qua non no cinema deste lado do continente. Mais malemolência é empregada também na apresentação de nossas produções: como, por exemplo, a realização de um grandioso festival de cinema em uma cidade sem salas de exibição. Assim como para os americanos, vem a atônita pergunta: mas como assim? De qualquer maneira, a ideia deu certo – e como. E se repete pela 13ª vez entre 22 e 30 de janeiro, na cidade histórica de Tiradentes (190 km de Belo Horizonte).
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Batizada com o apelido um tanto picaresco de um filho ilustre, herói que faturou feriado nacional, a cinematográfica Tiradentes não entra em festa anualmente apenas no mês de abril. Com seus sossegados cinco mil habitantes e centenas de habituais turistas em marcha, tanto pelas ruas pé-de-moleque quanto pelas trilhas em meio da mata, a aconchegante cidadezinha nos arredores de São João Del Rei entra em ebulição com a 13ª edição do festival que abre a temporada audiovisual do Brasil em 2010: a Mostra de Cinema de Tiradentes.

Grande vitrine que oferece em cenário colonial a multiplicidade da produção brasileira contemporânea, a Mostra de Tiradentes traz como slogan a manifestação da brasilidade no cinema e a pré-estreia dos principais filmes que serão destaque em 2010, incluindo películas que fizeram sucesso quando botaram o pezinho em festivais internacionais no ano passado. Além disso, debates, seminários, exposições, shows, oficinas, trupes circenses e programação infantil recheiam a programação do evento, que oxigena de cinema em atmosfera intimista o encontro de cinéfilos, diretores, críticos, acadêmicos e toda a gente que está por ali, entre uma igreja e outra. Sem caráter competitivo – contando apenas com um júri popular que elege o melhor curta e o melhor longa, os quais recebem o Troféu Barroco -, a Mostra de Tiradentes faz parte do programa Cinema sem Fronteiras, um circuito de festivais que ainda conta com a Mostra de Cinema de Ouro Preto (a qual busca difundir o audiovisual como patrimônio, e que este ano chega em sua quinta edição entre os dias 17 e 22 de junho) e com a Mostra Cine BH (que trabalha contextualizando o mercado audiovisual, e cuja quarta edição vai de 21 a 26 de outubro).

Com homenageados ilustres e temas que procuram refletir sobre o momento cinematográfico do País, já passaram por Tiradentes cineastas, videoartistas e atores da velha (como Nelson Pereira dos Santos, na edição de 2004, ou Paulo José, em 1998) e da jovem guarda (como Beto Brant e Matheus Nachtergaele, ambos na edição de 2007). Neste ano, o diretor cearense Karim Aïnouz é quem recebe a homenagem do festival, que exibe seu mais novo longa (feito em parceria com Marcelo Gomes, de Cinema, aspirinas e urubus, 2005) na cerimônia de abertura: Viajo porque preciso, volto porque te amo, road movie poético-experimental para o qual os cineastas colhiam material desde 1999 – e que não podia ter vindo à tona com um título mais lindo. A mostra traz uma retrospectiva de Karim com O céu de Suely (2007), os médias Sertão de acrílico azul piscina (2004, também dividido com Gomes) e Paixão Nacional (1994), além do curta Seams (1993). O filme de estreia de Aïnouz – que também revelou o ator Lázaro Ramos -, Madame Satã (2002), ficou de fora – o que de maneira nenhuma significa que ele seja imperdível.

A escolha de Aïnouz representa bem o espírito que o festival quis promover este ano, através do tema Paradoxos do contemporâneo – Contemporâneo em movimento – Diversidade em produção. A grande diversidade de inscritos – e os paradoxos que eles exalavam – foi o que inspirou a organização na abordagem que reflete a mescla de propostas, realizadores, gêneros e temas que inundam o cinema brasileiro hoje. Para o crítico e cineasta Cléber Eduardo, curador do festival, o tema não procura criar mais paradoxos, mas relacionar as diferenças e encontrar as relações entre elas, além de alavancar um debate que desloque aquele senso comum de que nossas produções sempre giram em torno das comédias de costume, dos dramas sociais e dos documentários.

Entre os 128 filmes em exibição no Centro Cultural Yves Alves e nas duas tendas enormes montadas no centro da cidade, há 29 longas e 99 curtas – a lista é grande e tentadora. Por enquanto, as maiores atenções estão voltadas para Insolação, de Felipe Hirsch e Daniela Thomas, apresentado no Festival de Veneza do ano passado (assim como Viajo porque preciso, volto porque te amo); para a sessão especial de A alma do osso, de Cão Guimarães; o provocador Os inquilinos (Sérgio Bianchi); o vencedor do Festival do Rio, Os famosos e os duendes da morte, do estreante Esmir Filho; além de Natimorto (Paulo Machline) e Cabeça a prêmio (Marco Ricca). Outro destaque vai para a “onda musical”, que traz os filmes Herbert de perto (Roberto Berliner e Pedro Bronz), Mamonas pra sempre (Cláudio Kahns) e o aguardado Dzi Croquettes (Raphael Alvarez e Tatiana Issa), que arrebatou diversos prêmios no Festival do Rio e na Mostra de SP e não para de receber elogios por aí (como o de melhor documentário do ano). Há ainda a Mostrinha de Cinema, que investe na exibição de filmes infantis e reflete a preocupação da formação de público – sem contar as oficinas, direcionadas tanto às crianças quanto aos adultos, que aproximam os espectadores e fomentam novos talentos. E a extensão da mostra não para aqui: a realização de seminários, que discutem as políticas do audiovisual e a presença de entidades e personalidades importantes para os rumos da sétima arte no país, não falta em Tiradentes – um exemplo é o Secretário do Audiovisual Silvio Da-Rin.

A proximidade sugerida pelo clima da Mostra vai mais longe ainda. Todos os dias se realizam debates com os diretores, críticos e a plateia sobre filmes apresentados no dia anterior. Os diálogos e as novas ideias pipocam por todos os lados neste encontro eclético que movimenta o cinema e, para ser mais ousado ainda, oferece todas as atividades de graça – o que prova, mais uma vez, o bom jeitinho brasileiro que dá resultado: é a brasilidade se manifestando no cinema.

Visite o site da Mostra e confira a programação: www.mostratiradentes.com.br


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