A cabeça de Joaquim Barbosa

O CHEFE DO JUDICIÁRIO – Joaquim Barbosa, que agora preside o Supremo Tribunal Federal

Doutor em Psicologia, professor-convidado de várias universidades (University College London Medical School, Uniwersytet Jagielloñski e Uniwersytet Warszawski, na Polônia, Hebrew University of Jerusalém, USP, PUC-SP, PUCC, Universidade de Brasília, UNESP, Mackenzie, Aspirus Wausau Hospital, Wisconsin, nos Estados Unidos), autor de mais de dois mil trabalhos entre livros, ensaios, crônicas, palestras publicadas no Brasil e exterior, artigos em jornais e revistas, e entrevistas em rádio, televisão e internet, Jacob Pinheiro Goldberg é também poeta inspirado, premiado e traduzido, além de psicólogo que diariamente ganha seu pão em um discreto consultório na Avenida Angélica, em São Paulo. É onde ele me recebe para um diálogo em que, por meio da imagética, analisa uma das figuras mais emblemáticas da atualidade brasileira.

Brasileiros – No começo do julgamento do mensalão, Joaquim Barbosa me deu a impressão de ser um estadista. Mas, com o passar das sessões, passei a ter medo dele, me pareceu mais um ditador. O senhor também viu assim?
Jacob Pinheiro Goldberg –
Dedico meu livro O Direito no Divã a Luiz Gama que é, de certa maneira, paradigmático, como alguém que advoga uma posição radical de resistência negra. Ele defendia o direito do escravo, caso o senhor não concordasse com sua libertação, em matá-lo. Uma tese que aparentemente viola preceitos fundamentais do Direito contemporâneo, que é o respeito à vida, mas que encontra reverberação, por exemplo, em Emmanuel Levinas, filósofo que assoalha que com a escravidão o indivíduo deixa de ser pessoa. Nessa hipótese, o escravo estaria atuando em legítima defesa porque equivaleria a estar morto. Quer dizer, o indivíduo sem liberdade é um indivíduo morto. Esse é o pano de fundo, na minha opinião, que deve ter habitado os tecidos de formação da mentalidade de Joaquim Barbosa. Acredito que seria extremamente artificial e fantasioso tentarmos compreender o psiquismo dele sem inseri-lo no quadro das interações entre brancos e negros no Brasil. Acabei de apresentar um trabalho, por videoconferência, na Universidade de Stanford, cujo título é Cavalgar a Mula sem Cabeça, em que exponho um pouco o significado que enxergo no acaso na vida das pessoas. Se você ler a biografia de Joaquim Barbosa, verá que ela é inverossímil. Nenhum romancista escreveria essa história. Se alguém apresentasse a vida dele como roteiro de filme, nenhuma produtora estaria de acordo em financiar essa produção. Aparentemente, ela é desarrazoada. Mas só aparentemente porque, na realidade, por uma força de vontade férrea, que a gente observa em quase todos os movimentos e pronunciamentos, e lances dramáticos do Joaquim Barbosa no Supremo, porque agora ele assume um personagem central do psicodrama nacional, você percebe que ele é o cavaleiro que monta na mula sem cabeça e domina esse instrumento do destino que a gente poderia presumir, imaginar, em prospectiva, como um destino ingrato. Tudo indicaria, na infância e na adolescência desse homem, um destino cruel. Uma probabilidade muito maior de se transformar em um excluído da sociedade, em um transgressor, do que juiz. No decurso da história do Brasil, o negro é sempre visto no banco dos réus. E não por acaso, no momento em que um negro assume a presidência dos Estados Unidos, uma mulher assume a presidência do Brasil, um negro assume a presidência do Supremo. Ora, no momento em que esse negro chega ao tribunal e nós acompanhamos isso desde o início, ele começa e dá a impressão de alguém extremamente equilibrado, diplomático, a ponto de você dizer que ele começa como estadista. E eu concordo, é assim que ele começa. Ou seja, ele entra desarmado. Mas não é assim que ele é recebido. Ele foi nos primeiros tempos quase que intimado a tomar uma de duas posições que sempre foram a regra na categoria da relação branco-negro na sociedade brasileira. Ou a submissão ou a condescendência. E ele se recusou. Desde o começo. Tem aquela frase que repercutiu de maneira tão impactante em que ele não admitia que o colega falasse com ele como se estivesse falando com um de seus jagunços. Quem é o jagunço? É o negão que faz o serviço sujo. Então, me parece que a gênese de tudo isso que estou falando, inclusive da aceitação popular dele, na minha opinião, implica profundas mudanças das placas tectônicas que formam o psiquismo da sociedade brasileira hoje. As placas tectônicas da sociedade brasileira nesse momento estão se movimentando, estão se mexendo. São movimentos sutis, complexos e contraditórios.

Brasileiros – Aqueles embates iniciais que ele teve com outros ministros estão no contexto do embate brancos-negros e vice-versa?
Goldberg –
Houve, desde o começo, um espírito de corpo branco, que estava tendo muita dificuldade em absorver um negro, que além de negro eu diria que a aparência estética do Joaquim Barbosa não é a aparência estética do Obama. Obama é um negro muito mais palatável.

Brasileiros – Como assim?
Goldberg –
De aparência física. Joaquim Barbosa, com aqueles óculos fundo de garrafa…

Brasileiros – Mas ele é o mais elegante de todos. Na roupa, quero dizer…
Goldberg –
Certo. E não por acaso. Ele precisa ser elegante. Ele é porque tem de ser mesmo. Essa elegância dele é uma justaposição, até em relação à postura física, à gestalt dele, de doença. Aquilo é algo que clama aos céus a dor desse homem, essa dor de coluna que não se resolve, é gritante que se trata de um sintoma psicossomático.

Brasileiros – Por que a sociedade brasileira – e Joaquim Barbosa com ela –, sempre tida como tolerante (e de certa maneira era), passou a achar que punição é civilização, quando a punição é barbárie?
Goldberg –
Em 1968, De Gaulle deu ordem de prisão contra Jean Paul Sartre porque ele tinha se aliado aos estudantes no episódio da invasão da Sorbonne. Ordenou ao chefe de polícia que prendesse Sartre. André Malraux, que tinha uma tradição de intelectual comunista, mas que posteriormente se aliou ao presidente De Gaulle, mandou um memorando a De Gaulle que fez história. Ele disse: “Presidente, não se põe na cadeia a inteligência”. Eu me lembrei disso e fiz uma analogia pensando: colocar na cadeia o Zé Dirceu é, de certa maneira, tentar colocar na cadeia o espírito da revolução social que o Brasil está vivendo. E acho que aí se estabelece alguma coisa extremamente complexa. Creio que haja muito mais coisas em comum entre o psiquismo do José Dirceu e o de Joaquim Barbosa. Eu me lembro de ter participado de um debate com José Dirceu e com Roberto Jefferson, intermediado pelo Marcelo Crivella, a respeito da CPI do PC Farias. Depois do debate, Zé Dirceu me deu uma carona e eu observei nele uma compulsão em apressar a história com passos velozes. Que eu sinto também em Joaquim Barbosa. É como se Joaquim Barbosa precisasse, pela manifestação de uma personalidade rígida, dura, severa, reparar algumas centenas de anos de brutalidade do branco. Joaquim Barbosa, indivíduo, à custa de esforços tremendos cria, esculpe um molde quase insuportável, tanto é que causa as dores terríveis que o impedem de ficar sentado. Nós não podemos fugir, em hipótese alguma, dessa realidade. Ele assume, mas não senta; ele assume, mas fica deitado. É quase uma figura sacralizada de um Cristo levado à cruz. Imaginar – só imaginar – que qualquer ser humano seja obrigado a trabalhar milhares de horas em um processo de uma complexidade jurídica, com implicações sociológicas e políticas extraordinárias, debaixo das dores. É o que está acontecendo com ele, só isso já exige de nós uma tentativa de compreender esses conflitos internos e suas repercussões externas. Eu não posso deixar de lado, nessa tentativa de compreensão do psiquismo da personagem de Joaquim Barbosa – porque, obviamente, eu não estou fazendo uma análise da pessoa de Joaquim Barbosa, seria antiético, sequer o conheço pessoalmente –, não posso deixar de lado uma hipótese que um dia desses me ocorreu e que tenho certeza de que só com o fato de eu levantar essa questão, vou arguir um elemento altamente polêmico. Se, porventura, eu fosse advogado constituído por um dos réus do mensalão, levantaria uma preliminar: até que medida um juiz submetido a dores confessadas de tal intensidade está em condições de emitir sentenças com tranquilidade?

Brasileiros – O fato de ele condenar de modo tão severo tem a ver com as dores dele?
Goldberg –
Veja bem, existe uma expressão em alemão, que cala fundo na psicanálise, que é weltshmerz. A dor do mundo. No sentido de dor de existir. Quer dizer, um ser humano sensível tem uma dor natural perante a natureza das coisas. Perante seu próprio sofrimento e do alheio. Acredito que por mais que Joaquim Barbosa seja um jurista, e ele é um dos maiores juristas brasileiros, não obstante mudanças nas constituições, o Direito brasileiro em geral, desde a fundamentação no Direito Romano e nas suas posteriores modificações, é um Direito extremamente conservador. Depois das ditaduras de Getulio Vargas e depois dos militares, é um Direito que continua influenciado por substrato fascista e ditatorial. É um Direito de oligarquia. O Direito da Avenida Paulista não é o Direito da periferia de São Paulo. E Joaquim Barbosa transita, na minha opinião, no seu íntimo, pelos dois Direitos. Em termos biográficos, ele é filho da senzala. Em termos de formação acadêmica e social, ele é filho da casa grande. E esse homem passa a ter o poder – e eu seria seduzido pelo eventual frasista a dizer “pelo destino”, mas não é no destino que eu acredito, é na firmeza da atuação de Joaquim Barbosa – que nas mãos dele fica o julgamento – e isso é que é contraditório e paradoxal – de algumas figuras, basta citar Zé Dirceu e José Genoino que são indivíduos que tentaram mudar e inverter até o jogo do poder no Brasil. Essa é a grande contradição. É quase a revolução devorando seus filhos. É quase Robespierre.

Brasileiros – O senhor vê algum elemento de vingança no comportamento de Joaquim Barbosa?
Goldberg – A presidenta Dilma disse que aceitava as decisões do Supremo, mas que deixava claro que não podia reagir debaixo de emoções. Todos são passíveis de errar e sujeitos a emoções.

BrasileirosTanto os juízes quanto os réus… Mas me parece que o pano de fundo de tudo isso é certa direitização da sociedade brasileira, o que cria esse clima de “mata, esfola”, como se o fato de mandar pessoas à cadeia melhorasse o Brasil.
Goldberg –
O que me parece é que a presidenta levanta uma questão que, acredito, será um dos eixos fundamentais da aplicação do Direito no século 21, que é um elemento fundamental da minha tese, a Psicologia do Sentenciado, que apresentei em conferências no Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. E a tese é exatamente essa: em que medida o juiz, o promotor, o réu, os jurados são capazes mesmo e até que limite o ser humano é capaz de manter isenção e distanciamento civilizado do fato que o envolve no território do crime. Há uma questão em relação a Joaquim Barbosa e me parece que existe nisso algo de intencional, decidido, portanto intelectualmente produzido, que é uma questão de reparação. E aí nessa reparação, no bojo disso, acho que entram todos os processos de anseio por justiça da sociedade brasileira, desde a questão da negritude até a questão da miséria. Ou seja, ele acaba se transformando no porta-voz de um sentimento que fica entre a reparação e a vingança. Ou seja, ele precisa acertar contas. O que é contraditório e paradoxal é que as contas estão sendo acertadas não em cima dos coronéis nem em cima dos banqueiros, nem em cima dos oligarcas. Aí, sim, por uma ironia do destino parece que quem vai acabar pagando as contas são alguns homens que, em determinado instante, representaram o que havia de melhor na vontade democrática e socialista do País. Você não pode, na minha opinião, tratar e eventualmente condenar homens que colocaram absolutamente suas vidas em risco, tentando superar as injustiças da sociedade brasileira, enfrentando as maiores ameaças e perigos à sua vida pela tortura, como é o caso de José Genoino e Zé Dirceu. Você não pode tratar esses homens como se fossem membros das máfias que, essas sim, assolam, por meio do regime capitalista, a dor e o sofrimento de brancos e negros na sociedade brasileira. Acho que Joaquim Barbosa corre um grande risco de se transformar em uma espécie de arauto da UDN brasileira, aquele partido que, em nome dos melhores propósitos, ficou célebre, a longo prazo, como uma das sementeiras da ditadura militar. Quer dizer, em nome do combate à corrupção, do saneamento da moral e dos bons costumes, acaba indo para essa ideia de que a solução dos problemas do País está na cela.

BrasileirosEle é o arauto da punição severa, da palmatória…
Goldberg –
Creio que existam na persona de Joaquim Barbosa dois elementos em um conflito selvagem: o menino negro que precisa e de certa maneira se transforma no herói da sociedade brasileira e alguém que forma o self made man, uma espécie de cowboy do faroeste americano que não se conforma realmente com o crime. Muito bom. Mas qual é o risco que esse justiceiro eventual corre? De se passar para a história como um algoz. Acredito que seria o mais trágico que poderia acontecer para seu próprio psiquismo. E aí volto outra vez à questão da sua dor. Essa dor não se instala exatamente na transposição desse papel, quer dizer: o negro que sai do banco do réu e vai para a condição de juiz, que preço está pagando? Está confortável nesse papel? Não me parece.

BrasileirosO vilão é Roberto Jefferson e não Zé Dirceu. Jefferson é o delator e delator sempre é vilão. No entanto, a pena dele será menor.
Goldberg –
Tenho defendido que o Direito no século 21 precisa ser um Direito amparado na ordem emocional. Existe uma ética da emoção, que tem discrepância com a ideia de ver Genoino e Zé Dirceu atrás das grades. Tem algo de errado. Tem algo que esteticamente denuncia alguma coisa que afronta um senso inato de justiça. Cometeram erros? Tudo leva a acreditar que sim. Eventualmente foram cometidos crimes? É possível que sim. Mas existem outras maneiras da sociedade tratar indivíduos que em certo instante foram a encarnação não só da esperança, mas do heroísmo de todo um povo. Mas, voltando ao psiquismo de Joaquim Barbosa, quais as forças internas nele que atuam no externo? O que imagino, são duas grandes alternativas. The point of no return agora é a assunção dele na presidência do Supremo. Acho que esse é o test drive. Na presidência do Supremo – e vou colocar isso no campo estritamente psicológico – ou ele equilibra essas forças internas e por meio desse equilíbrio consegue se impor como autoridade ou ele se deixa dominar pelas compulsões, e aí se transforma em um braço vingador. Que seria o final infeliz desse roteiro. Desde o riso de Joaquim Barbosa, passando pela preocupação estética com as suas roupas civis, tudo denota a prefiguração de um potencial carismático inédito e singular nos jogos de conflitos que rompem os quadros naturais que sempre montaram um quebra-cabeça lógico na manutenção da ordem e da aplicação da lei no Brasil. Essa figura, na mesma medida em que procura se apresentar inteiramente transparente, guarda características de enigma difíceis de serem interpretados. Declara-se eleitor do PT e ao mesmo tempo toma posições que chocam e praticamente o incompatibilizam com o partido que está na direção do Executivo. É um personagem e um mito que se forja, mas também é possuído pelo espírito do tempo. Ele se apresenta como a salvação. Ele fala em nome da moral. Ora, quem fala em nome da moral veste também a roupagem sacerdotal. Ele tem a toga do juiz, mas tem também o caráter do “Super Eu”. Joaquim Barbosa é Rui Barbosa hoje. Sua erudição, coragem e honestidade fazem o seu perfil carismático. Joaquim Barbosa é um gênio do espírito negro em um Brasil patriótico, que Luiz Fux anunciou com a guitarra…


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