cena exibida na tevê fez faiscar os olhos de Edméa Rafaela Davini Marinello. No Palácio do Planalto, em Brasília, a presidenta Dilma Rousseff recebia atletas brasileiros. “Ela deu um abraço caloroso na moça que ganhou uma medalha de ouro”, lembra Edméa. “Chorei de emoção.” Aos 84 anos, Edméa pegou uma folha pautada e, com letra miúda, escreveu uma carta para a presidenta. Deu os parabéns pelo “dinâmico poder”, contou que reza por ela, falou da própria dificuldade de locomoção, devido à fragilidade óssea. Edméa não pediu nada. Apenas relembrou episódios ocorridos há quatro décadas, quando, “como carcereira”, ela conviveu com dezenas de prisioneiras políticas “do Amazonas ao Rio Grande do Sul”. Durante quase três anos, uma das presas sob sua guarda era Dilma Vana Rousseff.
Na carta, Edméa cita mulheres com as quais convivia de forma mais próxima na Torre das Donzelas, como era chamada a parte do Presídio Tiradentes que abrigava presas políticas na capital paulista. Entre elas estavam a atriz Maria Barreto Leite e a advogada Therezinha Zerbini, mulher do general Euryale, que resistiu ao golpe de 1964. A antiga carcereira fala também do neto Adriano, que hoje é advogado. Quando ele estava para nascer, Edméa ganhou “touquinhas, babadouros e paletós de crochê” tecidos por presas políticas. Entusiasmada com as recordações do passado, Edméa se lembra até de uma frase improvável de Dilma: “Hoje estamos aqui, mas um dia serei livre para governar esta pátria”.
Assim que terminou a missiva, Edméa pediu ao neto que a digitasse e mandasse por e-mail. “A mensagem foi bloqueada”, lamenta. Se ela tivesse postado a carta em um envelope só com o nome da presidenta, teria dado certo. Os Correios entregam no Palácio do Planalto todas as correspondências dirigidas a Dilma Rousseff, estejam elas com endereço ou não. Outra possibilidade seria enviar uma carta eletrônica por meio do canal de comunicação “Fale com a Presidenta”, do site da Presidência da República. Nesse caso, depois de preencher o formulário, o remetente recebe em sua caixa postal um pedido para confirmar a autenticidade dos dados e da mensagem.
Todas as cartas que chegam para Dilma, seja por via postal ou eletrônica, são lidas e catalogadas. Desde a posse, a presidenta já recebeu 125.853 mensagens. Do total, 98% foram respondidas. À frente da Diretoria de Documentação Histórica do Gabinete Pessoal da Presidenta da República, o historiador Claudio Soares Rocha coordena com rigor científico o trabalho de uma equipe de 41 profissionais que se espalha por 350 m2 no subsolo do Palácio do Planalto.
Não se vê pilhas de papel em nenhuma mesa da diretoria. Enquanto parte da equipe lê e cataloga as cartas, outra prepara respostas, que são conferidas por um terceiro grupo antes da postagem. Uma consulta ao Sistema de Informação do Acervo Presidencial revela as cinco primeiras intenções do brasileiro ao escrever para a presidenta: criticar, sugerir, pedir, apoiar e cumprimentar. Quando se discrimina o gênero do autor da carta há diferença, como destaca Rocha: “A mulher é mais crítica. E pede mais. Só depois sugere. O homem sugere antes de criticar. Depois, pede”.
Em primeiro lugar como alvo de críticas vem a administração pública. Nela, o problema da corrupção. O tema está tão presente no cotidiano dos missivistas que o auge da “faxina” promovida em 2011 pela presidenta no governo coincide com um aumento expressivo na chegada de cartas de apoio a Dilma. Em segundo lugar nas críticas está a economia, a começar pelas instituições financeiras. Na sequência, os brasileiros criticam a Justiça, em especial os direitos humanos e o poder judiciário.
Questões ligadas à Justiça, Proteção Social e Previdência Social englobam os três pedidos mais frequentes feitos à presidenta. Quanto à Justiça, quase a metade das solicitações vem de presidiários em busca de algum tipo de indulto. “Tem um detalhe curioso. Durante todos os mandatos, à exceção do presidente Itamar Franco, tínhamos uma primeira-dama. Oito entre dez cartas para a primeira-dama pediam indulto. Quem escrevia era alguma parente do presidiário”, conta Rocha, que responde pelo acervo presidencial desde o governo José Sarney (1985-1990). “Agora os presidiários escrevem direto para a presidenta.” Ainda no campo dos pedidos, a maior parte dos que buscam Proteção Social tenta resolver problemas de habitação. Na Previdência Social, a grande questão é a aposentadoria.
Em tempos de disputas eleitorais, candidatos das mais diferentes agremiações também escrevem atrás de apoio político da presidenta. “Nesses casos, orientamos que eles procurem o partido”, diz Rocha. O historiador e sua equipe trabalham a partir de uma série de respostas-padrão, que são adaptadas de acordo com a necessidade. Exemplo: se alguém pede ajuda para resolver um problema na aposentadoria, um ofício com os dados é encaminhado ao Ministério da Previdência Social. O autor da carta é orientado sobre como deve acompanhar a questão.
Os pedidos vindos do exterior são de fácil solução. O lugar comum é a fotografia autografada da presidenta, o que se resolve mandando um exemplar impresso. Colecionadores de assinatura têm direito à original. Moradores de 168 países já escreveram para Dilma, uma lista liderada pelos Estados Unidos, seguidos por Portugal e Espanha. Primeiro país da América do Sul na relação, a Argentina aparece em 8o lugar. Já a Bulgária, terra natal de Pedro Rousseff, o pai da presidenta, está na 18a posição.
Dois por cento das cartas ficam sem resposta. Correspondem àquelas sem endereço do remetente ou que integram categorias batizadas pela equipe da Documentação Histórica como Excêntrico, Insistente, Falsário e Falecido.
Excêntricos têm discurso desconexo ou inverossímil – incluem aqueles que acreditam ter chips implantados no cérebro por extraterrestres. Por precaução, seus nomes são repassados para a segurança da presidenta. Não, a mulher que se apresentou como “o marido” de Dilma e tentou invadir o palácio no mês passado não estava na lista. Mas o homem que meses antes tentou subir a rampa do Palácio do Planalto com um carro integrava o rol de excêntricos.
Insistentes escrevem seguidas vezes sobre um assunto sobre o qual já receberam orientação. Falsários, como o termo indica, tentam se fazer passar por outra pessoa. Falecido foi uma categoria criada para bloquear a remessa automática de respostas depois de um episódio constrangedor. Rocha conta o caso, mas se recusa a indicar o nome do presidente: “Uma pessoa se fez passar por um grande amigo do presidente e nós não percebemos. Saiu uma resposta agradecendo as palavras de apoio e incentivo. A viúva pegou o telefone, ligou para o presidente e perguntou o que era aquilo. O mau-caratismo de quem fez isso é desmedido.”
Há ainda a categoria Campanha. Nela se enquadram mensagens enviadas por várias pessoas, de diferentes locais, com texto igual. O assunto em alta este ano são os protestos contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. “Teve uma época que o principal tema eram os ianomâmis”, diz Rocha.
Nascido na cidade goiana de Catalão, Rocha tem 52 anos, a mesma idade da Capital Federal, onde chegou aos dois anos. Funcionário concursado do Arquivo Nacional, ele foi para o Palácio do Planalto em 1988, para cuidar do Projeto Memória dos Presidentes. Depois de duas décadas de regime militar, o primeiro civil na Presidência, José Sarney, tinha particular interesse em documentar sua trajetória como homem público. Inspirado nas bibliotecas presidenciais americanas, Sarney colecionava até cardápio. Nos jantares que oferecia, ele passava o menu para que os convidados assinassem. Em seguida, arquivava.
Antes do governo Sarney a situação era diferente. Ao final de cada mandato militar, o general de plantão promovia imensas fogueiras. “Há depoimentos de antigos servidores do Alvorada sobre a queima de papéis”, afirma Rocha. Em 1989, em comemoração ao centenário da República, Sarney mandou para o Congresso um projeto de lei sobre a memória presidencial. Sancionada dois anos depois, a lei dispõe sobre a preservação, organização e proteção dos acervos documentais privados dos presidentes brasileiros. Prevê que, em sua origem, os documentos pertencem ao presidente, mas coloca restrições. Em caso de venda, a União tem preferência. Como é de interesse público, o acervo não pode sair do Brasil sem o aval da União.
Embora a regulamentação seja recente, documentos do gênero vêm sendo arquivados desde os tempos do Império. Depois da Proclamação da República, pelo menos dois governantes deixaram acervos de grande importância histórica: Getulio Vargas e Juscelino Kubitschek. A correspondência com os governados não passava por um processo de catalogação como o atual, mas também tinha direito à resposta.
Há pouco tempo, o responsável pelo acervo privado de Dilma descobriu uma correspondência presidencial com a sua própria família. Era um telegrama, no qual Kubitschek agradece à mãe de Rocha, Carmen, a “amável e expressiva manifestação a respeito da inauguração de Brasília”, e, “sensibilizado” envia-lhe “cordiais cumprimentos”. Empolgada com a nova capital, Carmen havia planejado participar da festa de inauguração, mas, grávida, não pode viajar. Escreveu então ao presidente. A resposta de Kubitschek chegou em Catalão três meses antes do nascimento de Rocha, que mantém o documento impecavelmente conservado.
Edméa, a antiga carcereira de Dilma Rousseff, também mantém intacta a carta que escreveu para a presidenta. Ela não conseguiu mandá-la, mas o simples fato de tê-la escrito parece ter reconectado Edméa com o passado. Mineira da cidade de Ouro Fino, ela veio com a família para São Paulo em 1950. Planejava dar aulas, mas a dificuldade em completar o magistério a levou a trabalhar com um irmão advogado. No fórum, soube que haveria um concurso para preencher 25 vagas para mulheres na Polícia Civil. Edméa passou em 4o lugar. Exercia uma função administrativa quando foi transferida para o Presídio Tiradentes. Lá, ocupou-se da parte destinada às presas políticas: “As meninas chegavam muito machucadas. Algumas nem conseguiam andar”. Edméa se lembra bem de Dilma. “Ela sempre foi muito séria”, conta. “Não era muito chegada na gente.” Em 1973, depois que Dilma saiu da prisão, o presídio foi demolido. Transferida para o aeroporto de Viracopos, em Campinas, Edméa checou passaportes até a aposentadoria. Com problemas de locomoção, hoje passa os dias em casa, na zona norte de São Paulo. Quando fala dos tempos que trabalhou como carcereira, ela garante que Dilma tinha um comportamento diferenciado: “No Tiradentes, ela não ficava presa no presente. Parecia que a cabeça dela estava no futuro”.
400 KG ÀS DUAS DA MADRUGADA
U m corredor de pouco mais de 13 m liga o elevador privativo da presidenta Dilma Rousseff a seu gabinete de trabalho, no 3o andar do Palácio do Planalto. Por esse corredor costumam passar apenas a presidenta e seu chefe de gabinete, Giles Azevedo. Todos os dias, presentes enviados a ela são expostos nessa passagem sobre um pequeno balcão. O procedimento é similar ao que ocorria no governo Luiz Inácio Lula da Silva. Os mimos, porém, mudaram radicalmente. Enquanto camisas de futebol proliferaram nos tempos de Lula, hoje imperam acessórios e ornamentos para casa. De vez em quando, a presidenta escolhe alguma peça do balcão. “Ela gosta muito de artesanato, em especial das bonecas do Vale do Jequitinhonha”, conta o historiador Claudio Soares Rocha.
O volume e a diversidade das oferendas feitas à Dilma são imensos. Pela última contagem, a presidenta havia recebido 3.872 presentes. Todas as peças são inspecionadas pela segurança e catalogadas antes de serem expostas a ela. De telas a óleo a sapatos e bolsas, chega de tudo. Entre os mais recentes regalos está um tapete de pele de zebra, oferecido pelo presidente do Zimbábue, Robert Mugabe. Depois da etapa do balcão, a maioria dos presentes vai para um depósito climatizado do Palácio do Alvorada, a residência oficial da presidenta.
Artigos perecíveis vão direto para o Alvorada. Na maioria das vezes são flores, em especial orquídeas, que a presidenta adora. Há também surpresas, como a encomenda que antes da Semana Santa movimentou uma noite de sexta-feira em ambos os palácios. Passava das 21 horas quando a jornalista Adelina Lapa Nava Rodrigues, da Secretaria de Imprensa da Presidência, atendeu ao telefonema de um senhor do Espírito Santo: “Ele dizia que havia preparado um banquete para a presidenta. Fez com o maior carinho e estava tudo parado no aeroporto. Tinha torta de siri e moqueca capixaba, além de 400 kg de peixe congelado.”
O senhor despachara os víveres, mas não contou com um imprevisto: o atraso da carta pedindo que retirassem o presente no aeroporto de Brasília. Rocha, o historiador responsável pela Diretoria de Documentação Histórica, se exercitava em uma academia quando foi acionado para resolver o problema. Mandou um funcionário para o aeroporto, mas não foi fácil liberar a encomenda. “Só conseguimos o número do conhecimento às 23 horas”, recorda Rocha.
Quando o banquete e os 400 kg de peixe chegaram ao Alvorada, a questão da segurança falou mais alto. Como não havia jeito de inspecionar os alimentos naquele momento, o administrador do palácio colocou para fora do edifício um freezer e nele acondicionou a carga. Eram duas horas da madrugada. Resultado: os peixes, que tinham sido despachados dias antes, não puderam ser aproveitados. O presenteador soube por telefone do desfecho. Esse, porém, foi um episódio excepcional.
No dia a dia, a presidenta ganha presentes mais fáceis de manusear. Leitora assídua, ela recebe com frequência livros – e leva alguns para a biblioteca particular com mais de 3.500 volumes que mantém anexa a seu apartamento no Alvorada. Os demais presentes permanecem guardados, assim como toda a correspondência privada.
Quando deixar o governo, Dilma terá de encontrar um destino para o patrimônio que se acumula nos dois palácios. Pela lei que rege os acervos presidenciais, pertencem à União apenas os presentes recebidos nas chamadas cerimônias de troca entre chefes de Estado. Todo o restante é particular. Quando terminou o segundo mandato, Fernando Henrique levou consigo nove carretas de material catalogado. Oito anos depois, o acervo de Lula ocupou 12 carretas. Não por acaso, ex-presidentes precisam criar seu próprio instituto, de preferência com espaço suficiente para abrigar toneladas de arquivos.
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