A cidade que não é mais uma droga

Segurança – Turistas fazem pausa após almoçar em um dos restaurantes da Plaza Mayor, totalmente remodelada com centros de convenção, cultura e teatro

Por longo tempo, olhei Medellín como uma cidade com história atribulada pelo poder do cartel internacional da droga e dos terroristas que ali se instalaram, incensados pelo cheiro de pólvora. Nunca havia estado lá. Mas esse dia chegou e, de repente, vi-me na segunda maior e mais importante cidade colombiana. Logo que coloquei os pés no local, tudo o que imaginava foi por água abaixo. A cidade tornara-se modelo de recuperação social e urbanística em menos de uma década. E as impressões que se colhe lá são de que é possível mudar, mesmo quando se vive no pior dos mundos.

A viagem a Medellín aconteceu em abril de 2013. Chovia há dias e a luz da cidade contribuiu para criar um clima de Antigo Testamento quando, ao entardecer, o sol tímido, entre densas nuvens que anunciavam tormenta, compunha reflexos dourados no asfalto e reluzia nas paredes dos edifícios. Chuva e sol se alternaram. Mas a incerteza do clima não mais encontrava reflexo nas oscilações entre violência e esperança que convulsionaram os medellinenses em décadas passadas não muito distantes. Lembranças que estão vivas em todos nós.

A origem da criminalidade que se alojou em Medellín, e no restante da Colômbia, iniciou-se em 1948, com movimentos insurgentes pela disputa de terras. Agravou-se a partir da década de 1970, perante a incapacidade do governo nacional em frear a injustiça social, o que acabou beneficiando guerrilheiros, narcotraficantes, paramilitares e outros delinquentes. Esses, desafiando o Estado, levantaram inicialmente bandeiras ao estilo Robin Hood – lendário ladrão das histórias juvenis, que roubava dos ricos para dar aos pobres. Suas moedas de troca, porém, àqueles que se opunham às suas ordens, eram sequestros, estupros e sicariatos – assassinatos cometidos por matadores profissionais. Instalaram fábricas, construíram prédios e corromperam meio mundo, desde policiais a altos administradores. Criaram, assim, um verdadeiro estado paralelo.

Para ter uma ideia do caos, de 1948 a 1988, Medellín teve 40 prefeitos – média de um por ano. Nesse período, predominou a arrogância e a vontade dos cartéis das drogas, contrapondo-se à impotência do Estado – também arrogante – em combater as ações criminais. O posicionamento dos políticos ante esse conflito, até o início deste século, lembrava, em muito, o personagem Bartleby, um escrevente criado pelo escritor americano Herman Melville (1819-91), famoso porque, quando o mandavam cumprir com suas obrigações, dizia abertamente: “Prefiro não fazê-lo”.

Até 2003, Medellín, que tem hoje uma população um pouco maior de 2 milhões de pessoas, registrava uma taxa média anual de homicídios de 440/100 mil habitantes, o que a colocava como a cidade mais violenta do mundo. Em 2012, a taxa caiu em dez vezes, para menos de 40/100 mil. Porém, ainda está alta para os padrões universais de civilidade, que consideram aceitável algo em torno de 10/100 mil. Mas a taxa colombiana continua despencando. Qual foi o milagre? “Meio milagre”, dizem os habitantes, já com a autoestima elevada e certos de que o milagre completo se realizará em poucos anos. A resposta também vem acompanhada de um nome: Sergio Fajardo.

[nggallery id=16183]

Poder reinventado

Foi na própria sociedade medellinense que germinou a salvação da cidade contra a violência e o poder paralelo dos traficantes. Um pequeno grupo de sonhadores teve à frente Sergio Fajardo, um professor de matemática que abandonou a cátedra para entrar na história da política colombiana. Em 2004, ele se elegeu prefeito, convicto de que somente um programa de grandes proporções de educação e cultura poderia construir cidadania e igualdade social e, com isso, retomar o que a população mais almejava: segurança.

Na prática, Fajardo não pretendeu uma repressão radical ao tráfico de drogas. Ele sabia que tal medida só seria eficaz se acompanhada de uma transformação profunda na abordagem desse problema, como a regulamentação de drogas ilícitas, de modo a romper o ciclo vicioso da violência e minimizar o poder dos narcotraficantes. Ou, em vez de dar lugar a uma pena de prisão ou que o tráfico fosse abordado, atuou cada vez mais no tratamento do dependente químico por decisão judicial e no âmbito de programas de acompanhamento médico, também denominado de “injunção terapêutica”. Hoje, a Colômbia se insere no rol dos países que corajosamente entraram nesse debate: como organizar, na prática, um comércio legal das drogas?

(Vale citar que nesse contexto o Brasil também procura reagir a esse problema, ao constatar o avanço do consumo de todos os tipos de entorpecentes. Não falta discussão sobre o tema em nosso País, mas seu foco vem recheado de achismos e teses ultrapassadas e demagógicas, o que acaba emperrando seu avanço. Partidários e adversários da descriminalização continuam a se enfrentar, após a autorização recente da internação involuntária por um prazo máximo de 60 dias, em instituições de saúde pública. Considero correto, embora seja pouco tempo de tratamento, pois a experiência tem demonstrado que o dependente precisa de, no mínimo, seis meses de tratamento para conseguir saltar fora do universo das drogas.)

Fajardo não viu outra escolha. Ele começou a trabalhar com a única arma eficaz disponível contra o narcoestado existente em Medellín. Privilegiou a educação para estudantes de áreas marginalizadas como fator possível, na época, a fim de promover a autoestima cívica e a segurança nas ruas. Foi fundamental nesse sentido o fato de que o então prefeito nunca considerou perdida a guerra contra o narcotráfico. Ele e sua equipe sabiam que lutar contra a dependência química era e é, antes de tudo, preveni-la, protegendo as novas gerações, pois são elas que detêm o futuro nas mãos.

Hoje, Sergio Fajardo é governador da Província de Antioquia, cuja capital é Medellín. Mas, quando era prefeito da cidade, sua primeira medida foi aumentar o orçamento da educação, que saltou de menos de 3% para 25% do valor total da arrecadação municipal. Admirável. O projeto de inclusão social dos mais pobres tornou-se realidade quando milhares de crianças começaram a frequentar centros culturais, bibliotecas, escolas primárias e secundárias, todos com projetos que traziam a assinatura de aclamados arquitetos colombianos, com desenho de vanguarda e equipamentos de última geração.

Suas construções foram edificadas em áreas degradadas, como favelas e antigos lixões. Essa ação se traduziu como arquitetura inclusiva de Medellín. O resultado não poderia ter sido melhor. Os locais passaram a ser procurados por milhares de pessoas que, sem oportunidade de lazer e diante desses espaços que se descortinavam, começaram a utilizar as dependências dos centros culturais como pontos de encontro e salas de visita. Talvez isso tenha a ver com a teoria do filósofo e escritor pop Alain de Botton, relatada em seu livro A Arquitetura da Felicidade (2006), no qual defende que a arquitetura erguida à nossa volta tem impacto sobre a própria felicidade. Ou também pode ser identificada nas palavras do messiânico Mokiti Okada, para quem, observar o belo exterior induz ao bem interior.

Modernidade – Na favela Las Independencias casas foram desapropriadas para a instalação de uma grande escadaria rolante. Os antigos moradores ganharam novas residências

Cidadania em construção

Ao aprofundar essa ideia, Sergio Fajardo pretendeu construir uma “ponte” que partia em duas direções. A primeira se destinava a levar esses centros culturais polivalentes aos bairros mais excluídos de Medellín. A segunda conduzia aos festivais de música, dança, teatro, feiras do livro e de artesanato colombiano (o que me levou à cidade), além de eventos de arte e encontros que até hoje implicam presença de muitos artistas. Essas manifestações se tornaram fre­quentes nas comunidades antes excluídas e provocaram uma revolução. O principal objetivo é integrar o desenvolvimento cultural à vida urbana da periferia, ao invés de isolá-lo em bairros mais centrais e de população com maior poder aquisitivo. Em plena miséria e violência das favelas, Fajardo e seus sucessores Alfonso Salazar e Aníbal Gaviria, o atual prefeito, promoveram programas educacionais e culturais para desviar os jovens das armas e das drogas.

Em minha visita, os guias turísticos de Medellín só queriam mostrar as principais obras construídas após 2004. E olha que lá se encontra a Praça Botero, ornamentada com 20 esculturas desse que é um dos expoentes máximos da arte colombiana e mundial – Fernando Botero. “Museus, catedrais, palácios, todas essas belezas o turista já conhece por tê-las visto em outras cidades”, argumentam os guias. Mas Medellín tem outra peculiaridade que vale conhecer: o Parque Biblioteca José Luis Arroyave, na Comuna 13, área que era considerada a mais violenta da cidade até oito anos atrás.

Construído ao lado de um extinto presídio feminino, ele não funciona apenas como biblioteca. É também centro comunitário, escola de 1o e 2o graus e centro de computação para iniciantes, além de oferecer aulas de tricô e cerâmica, ter creche, prestar assistência jurídica e oferecer refeições gratuitas. Foram construídos dezenas de outros parques, bibliotecas e casas de cultura – como o Centro Cultural de Moravia, no bairro homônimo, projetado pelo arquiteto Rogelio Salmona, onde existia um lixão e cuja área fora invadida por deserdados de moradias. Essa região, uma das muitas castigadas pela violência, é hoje referência de região civilizada.

Outros bolsões de esperança são mostrados pelos guias. É o caso dos jardins de infância do programa Bom Começo, cujas construções também seguem linhas de vanguarda. Alguns anos atrás, a resposta de uma criança à pergunta sobre o que mais gostava na nova escola sensibilizou a população: o piso de tijolos. Ela morava em um bairro onde todas as casas tinham chão de terra batida.

A apresentação dos novos projetos incluiu também uma visita às Escadas Rolantes de Las Independencias, em outro bairro anteriormente violento que passa por processo de pacificação. A escada com seis tramos substitui um ziguezague de 350 degraus, o que levou ao benefício diário de cerca de 12 mil pessoas. Para que esses projetos fossem bem-sucedidos, houve a participação das comunidades, que com as administrações públicas, nesses últimos dez anos, realocaram pessoas que estavam em áreas de risco, entregaram títulos gratuitos de propriedades nos assentamentos informais e iniciaram um inventário para reparar judicialmente as vítimas do conflito de drogas.

Outro aspecto foi a revolução no transporte público. Dotada de um extenso sistema de ônibus rápidos e de uma linha de metrô que corta a zona urbana de norte a sul, Medellín foi a primeira cidade no mundo a utilizar teleféricos (os Metrocables) como meio de locomoção, com duas linhas que se complementam com as do metrô. A propósito, o teleférico do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, foi inspirado no da cidade colombiana.

Em 2012, a ONG americana Urban Land Institute concedeu a Medellín o título de Cidade Mais Inovadora do Mundo, por ter realizado uma das mais notáveis reviravoltas urbanas da história contemporânea.

Questão de escolha

É difícil se manter indiferente à carga histórica de Medellín nos últimos 30 anos e não procurar entender o motivo do domínio dos cartéis de drogas naquela cidade. Mas os “paisas”, como carinhosamente são chamados os medellinenses, não querem mais pronunciar o nome daquelas organizações criminosas e muito menos daquele fascínora que colocou Medellín no mapa-múndi como o lugar mais perigoso do planeta. Não querem tocar nesse assunto. Aquele conflito já passou. É outra época. São outros governos. É preciso virar a página. É preciso esquecer. Em respeito, também não vou citar aqui o nome daquele que dominou a cidade em um período maldito.

O que vem agora? A cidade vai conquistando aos poucos um novo e promissor futuro. Ninguém mais pode ignorar o que acontece em Medellín. Ninguém mais pode ignorar o que ali está em jogo. Mas, quando deixo a cidade em direção ao aeroporto, a mesma névoa que me acompanhou na chegada continuou a encobrir o caminho. Pensei naquelas poucas pessoas que conseguiram mudar a cara de Medellín e, ainda que os medellinenses procurem se esquecer do passado, as imagens do programa de TV com maior índice de audiência na cidade, atualmente transmitido pelo canal 9 (RCN), em horário nobre, Los 3 Cains, exibia o seriado mais violento já levado ao ar no país, que conta a vida criminosa da família do mais famoso chefão das drogas da Colômbia.


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.